VIAJANTE DO TEMPO
Todas de Laerte Antonio
Árvore-Ipê
Era uma companheira à beira-estrada...
Quantas vezes não vim me agasalhar
( ficava-me no meio da jornada )
à sua basta fronde a pipilar...
Pelo prazer do tombo e da estalada,
por ambição de uns paus para serrar,
por isso ou sabe Deus que coisa-nada,
é que insensível mão a fez tombar!
Aves sentirão frio na alvorada...
nem seu colo terão quando ao sol-posto.
Já não terá o vento a humilde amada
a quem narrar a sua valentia...
que ela ouvia calada e, após, vertia
as suas roxas lágrimas de agosto...
Distância-Sonho
Se pegas nas mãos uma flor,
e a examinas e a admiras,
bem de perto,
acabas por tirar-lhe o brilho...
e logo tens em tuas mãos
uma haste escura ...uma corola
desfalecida sobre si mesma.
É que chegaste perto,
muito perto...
É que tocaste ( ou com as mãos,
ou com os sentidos )
muito forte...
Assim também com um quadro...
Assim também com uma escultura...
Assim também com um poema...
Assim também com alguém,
uma pessoa a quem admiras...
Um monte, visto de longe, é azul-macio...
( abraço neblinante de ternura. )
Se te aproximas, vês que é de um verde pobre e...
escabroso. Assim também um livro
é seu autor visto de longe.
Já tentaste definir alguma coisa?
Ah, nem tentes!
O belo, o profundo, a vida —
não aceitam definições.
Definir é tentar chegar perto
e esquadrinhar e dissecar
e rasgar as entranhas
e tirar as tripas... e...
Enquanto o teu estômago
trabalha complicadamente
o alimento que ingeriste,
podes discursar sobre as Pirâmides.
A vida não depende de ti.
Nem te exige nada,
apenas dá-te.
Não a vês em ti, no seu mistério.
Ela é tão profundamente tu,
que não a vês, tu apenas a és...(sim: tu a és).
Ah, isto, sim, é amor!
Amar é mais que chegar perto:
é ser o perto
e ser ( em outro ) o outro.
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Goza a beleza de longe...
e vive perto em amor,
e vive a coisa amando-a —
enquanto saboreias em tudo a distância-sonho
e te molhas no orvalho da presença.
Ela Ia Descalça...
Ela ia descalça à nossa frente,
às vezes fraca, muitas vezes forte,
mas sempre-sempre, quase sempremente,
ela ia à frente com seu rico porte.
Por vezes nos sumia longamente
até que a vida parecesse morte...
Mas ei-la: já voltava, diligente,
alegre, a nos trazer o seu aporte.
E falava-nos sempre tão baixinho
que só o coração podia ouvi-la,
feliz, a ir e vir pelo caminho.
Forte, feliz: um jeito de criança —
transmitia uma fé sempre tranqüila...
Os que a viam chamavam-na Esperança.
Instituto E Sua Adega De Agosto
Na bandeja do pátio,
as taças:
hastes longas, encimadas
de bojos plenos de vinho...
Deslizando entre as mãos
da natureza,
eis-las roxo-róseas, aos cachos,
viajantes de agosto,
chegadas lá do indizível...
Vinho de agosto,
que as brisas bebem,
bebericam suaves
entre lagunas de azul...
Vinho e graça para o ver...
Graça macia e rósea,
bebericada de brisas...
de gorjeios
e ventos...
Respingos
... lá ...
... aqui ...
... ali ...
... além ...
na alva toalha de linho
da manhã.
Vinho e graça a tremer,
a leve-ondear
no bojo hialino
das taças...
No agosto das brisas,
no agosto dos ventos,
de cheias taças
em finas hastes
respingam
pé
ta
las
de
i
pê
sssssssssssssss
Monólogo Do Silêncio
Nada é. Tudo está passando.
Estás triste? Alegra-te com isso. É uma bênção:
a tristeza é o outro lado da alegria,
ou ( se quiseres ) vice-versa.
Não houvesse nuvens negras,
por que haverias tu de amar o céu azul?
O que julgas infortúnio
tem lá seu quê de belo: dura pouco...
Foste injuriado, detratado, odiado, invejado?
Parabéns! És um homem que faz.
Quem iria injuriar, ou detratar, ou odiar, ou invejar
um mendigo de albergue, um sem-vontade?
Contenta-te com isto:
tudo cheira a morte, e na verdade tudo é vida.
Tudo sabe a pó, e na verdade a Essência é eterna.
Há coisas importantes porque assim as julgamos
e não porque o são deveras.
Rir é bom: distrai. Chorar concentra.
Ri vendo o mundo, e chora concentrado.
Se o dia que passou te foi nefasto,
lembra-te que esse mesmo dia foi propício para outros!
O Bem e o Mal transcendem nosso egoísmo.
Se assistes a umas núpcias e logo após a um enterro,
não te percas em filosofias vãs:
é preciso existir o oposto das coisas
para a compreensão das mesmas.
O errado está certo como está:
o homem não soluciona, — modifica.
Damos muita importância ao estado das coisas,
desejando que este sempre fosse outro
e fazemos desse outro o pedestal mitológico
da nossa felicidade.
Pensa, sente e vê, só depois aceita, — duvidando.
Não temas. A instabilidade do infortúnio
compensará o teu sorriso instável.
Todos os ventos são bons e favoráveis:
há moinhos em todas as direções
e a ânsia de movimento é eterna.
Não exageres na importância das coisas:
tudo são metamorfoses...
Deseja sempre o menos que puderes —
assim irás te libertando...
Queiras apenas isto: amar os homens e as coisas.
O mais...
O mais é pó, e ao pó somente o Amor sobrevive.
Ostra De Água Doce
Títulos, teses, universidades,
cargos, mandos, mundanas iguarias...
palmas, prestígios, régias mordomias,
fama, fãs, férvidas festividades...
Aviões, conferências, mil cidades,
méritos e comendas e honrarias...
Brilho, elegância, luzes, galerias...
Palanques, ovações, solenidades...
E posse, muita posse reunida
em mãos sem fundo, mãos que exortam, plenas,
as papilas da gula e da ambição.
Sem Cristo, o Verbo santo em nossa vida,
todas essas conquistas são apenas
dourada espuma, glórias de sabão.
Outonal
Os lagares e silos, lentamente,
vão absorvendo as bênçãos sazonadas.
Uma vez mais ,a terra, boamente,
centuplica as lavouras semeadas.
No ar, o cheiro dourado e reluzente
de vindimas e ceifas realizadas.
Há um frenesi alegre nas estradas:
são os ceifeiros maitacando, ao poente...
Por caminhos, veredas vindimais,
ciciados de madura suavidade,
passeiam sonhos, contos outonais...
O sol desperta brisas lá no vale,
trazendo o branco aroma do convale
a me lembrar você, morna saudade...
Quando Tivermos Abraçado...
com tal ímpeto
que ninguém nos distinguirá
de um torrão —
ainda continuaremos como número
nalgum papel, nalgum arquivo,
disquete, capa de livro
ou no alfarrábio dos mortos —
arremessados no era-foi.
Teremos seguido o caminho interior —
a margem espiral da vida:
aquela que não sobe nem desce,
não é direita nem esquerda,
não vem nem vai —
apenas segue-sendo
seu caminho de ser.
Dentro de nós, Deus nos espera
em cada volta da espiral —
e cada vez mais em nós dentro
quanto mais amplo for o círculo
que nos dá a tola ilusão
de abraçarmos o infinito.
E assim será até o dia
em que re-saberemos
que o infinito cabe, de sobra,
dentro da nossa finitude.
Rosa do Templo
Quanta vez nos fazemos em pedaços
e temos de ajuntar nossos caquinhos.
E dói ver tantos sonhos e cansaços
sujos de chão, doendo em pedacinhos.
Então, — é repousarmos mente e braços,
cautela com os odres, com os vinhos...
Sentimo-nos mesquinhos, sós, escassos...
aves em pleno cio, mas sem ninhos...
E desse azul abismo de fraqueza
é que uma certa força poderosa
nos faz de frágil carne fortaleza...
Tal força nos acode o estarmos sós,
e nos reintegra à vida, e é luz e é rosa...
O próprio amor de Deus, que se abre em nós.
Sensações-Viagens
Há sensações que são barcos
enquanto velejamos
no oceano interior da vida.
Há sentimentos que são portos
num gosto adiado de chegar:
um sabor de lonjuras,
cristalizadas em azuis,
lembrando o verde das vagas
de um nômade fluir,
distantes, azulizantes...
Sensações barcos,
sentimentos portos —
enfunados de um vento azul,
indo e vindo,
daqui, dali,
azul azul azul...
Sinestesias de um viajar interno,
vestido de amplidão e pensamento
no vasto sabor anil e sal,
entre o glauco arfar das ondas
e vôos lonjuras de gaivotas...
o silêncio irial de flavas salas:
tuas mãos floresciam charmes-sonhos
aperolando sons, brilhos inconhos...
Teus dedos —Bailarinos— deslizavam
sobre o claro das teclas que cantavam
em cascatas de claros, raros tons
num cortejo imperial de sonhos-sons...
Ferias almas com o perfume brando
de notas irisadas entre os vãos
de sentimentos e emoções ecoando...
Hoje o teclado é mudo ( o tempo vence-o... ),
mas lembra o opalescer de tuas mãos
e os sonhos tropeçados no silêncio.
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