REMOALHOS  (Textos 2)

                      Laerte Antonio

 

Remoalho: bolo de alimentos que os ruminantes fazem retornar à boca para ser remoído ( Aurélio

 

 

 

 

Canção Final

 

Sorria, meu amor, sorria,

que o mundo vai acabar

e não devemos, amada,

nenhum medo aparentar.

Ao contrário, minha amiga,

devemos cantarolar

tal como duas crianças

que não sabiam que o mundo

pudesse um dia findar.

Sorria, meu amor, sorria:

já não há nada a temer —

o mundo só vai acabar.

Sorria, vai ser bonito

ver tudo se espatifar.

Vamos comprar um sorvete

e lambê-lo devagar —

pode até ser que o mundo

finde antes de ele acabar.

Sorria, meu amor, sorria,

que a doce possibilidade

de o mundo poder findar

já nos liberta do medo

de viver sem esperar.

LA 99/02

 

 

 

 

Contexto Orbital

 

Há um fundo musical,

uma trilha sonora

por detrás do que leio:

dedos-notas

a percutir em mim

o óvulo do sonho

do meu fazer-criar —

outros assuntos-notas

sobre que apóio

meu escrever,

em que uma música

( que nunca ouvi )

vai brotando do poscênio

da minha escrita...

Ler-escrever tem notas

de muitos musicais

no contexto orbital

de universal sinfonia.

Mas não leve,

não leve a mal —

foi só uma euforia.

LA 99/02

 

 

 

 

Fala Uma Coisa...

 

Fala uma coisa, amor,

de não entristecer

ou de apenas lembrar

que podemos esquecer.

Fala uma coisa, amada,

que seja bela como a estrada

que sustenta os nossos sonhos

pelos pés.

Fala uma coisa

fresca feito a madrugada

com uma brisa de viés.

Fala uma coisa, amiga,

que não seja nova ou antiga,

que não dependa da história

nem de perda ou de glória —

de algo que nem precisa de algo

para ser algo:

de algo que quando se engana

nem lembre falha humana.

Fala uma coisa, amor,

boa como ter mãe

que nos ajude a construir

uma tranqüila infância.

LA 99/02

 

 

 

 

Tenta De Novo

 

Se tudo desafinou,

tenta de novo

ou busca um outro tom —

mas tenta, tenta de novo.

 

Não tenhas medo

se tudo desafinar —

e vier a vaia e o vexame.

Ser vaiado ou vexado

é estar na estrada

do desafio —

ter no mínimo aceitado

os venceres e os perderes da jornada.

Aprender a lidar com as perdas

como lidamos com os ganhos.

 

Se tudo desafinou,

que bom!

Busca em ti um tom, um ritmo

maior e diferente.

Um novo alento dedilhado

pela vida em teu ser profundo.

LA 99/02

 

 

 

 

Estradeiros

 

Buscar o tom perdido na harmonia

e afinar-se outra vez com toda a orquestra,

principalmente quando essa orquestra

é aquela da nossa vida

ligada a muitas outras.

Perder-buscar esse tom

para as nossas passadas

interiores

é uma das nossas tarefas

de estradeiros antigos.

LA 99/02

 

 

 

 

Consciência Da Consciência

 

Bater os pés como escolar

querendo que o rio passe

nos fundos da nossa casa —

porque gostamos de pescar...

Não soam mais que ridículas

pretensões como estas?

Sim, soam mais que ridículas...

No entanto, as pretendemos sempre

sem ao menos nos vermos pretendê-las.

Assim que vamos começando

a ter aparelhagem

para nos ver ridículos —

iniciamos por desenvolver

a consciência da consciência:

nascemos em “novo eu”

( aquele que enfrentou mil desafios

para poder despontar )

e tem olhos de ver ( e respeitar )

o nosso “antigo eu”

que bem ou mal

nos carregou até aqui.

A consciência da consciência

é o salto que se espera da consciência —

aqui começa o outro...

e o outro é conhecer.

LA 99/02

 

 

 

 

Autoconsciência

 

Essa consciência da consciência

em várias gamas espirais

não é senão o fio do inconsciente

( o real de lá pra cá )

que vai sendo trazido para fora

pela consciência.

Vamos virando

todo o funil do avesso.

Sem a moral do Processo

isso é loucura e perdição —

duplamente loucura e perdição.

 

Isto de que hoje muitos riem

é algo por que um dia vão passar —

falo de transformação,

de emergência espiritual.

Folo dessa aparelhagem

que há de ligar-nos a canais,

interligar-nos a ramais

plugados com a Fonte.

LA 99/02

 

 

 

 

Sinais Dos Tempos

 

Gulatria.

Uma insatisfação habitual

gerando uma ambição sem margens

ao encalço de objetivos irracionais.

Grave falta de consciência —

de si, do meio, do outro.

Predisposição à violência.

Banalização da vida.

Alienação social.

Apassivação do indivíduo —

em seu pensar e sonhar.

Perda das forças morais

e dos valores espirituais.

Vida interior autodevoradora.

Os gulatras se perderam

e querem perder o mundo.

O homem devora o homem.

Esta, a marca, os sinais

dos tempos, —

dos tempos de todos os tempos.

LA 99/02

 

 

 

 

Sombra Do Vôo

 

Seja sempre maior o que nos une

que aquilo em que nos diferimos.

Seja a vida menos luta,

mais aventura

e jogo fascinante —

uma contínua barganha

em que gostosamente

ensinemos-aprendamos

o ofício de viver.

E conhecendo a nós e as coisas

deixemos para trás o velho homem

( aquele em nós que nos amarra e pune )

em favor de uma consciência

que saiba transcender-se e interpor-se

tal como a sombra do vôo

em relação ao chão e à ave.

LA 99/02

 

 

 

   

Crises De Percurso

 

É durante uma tempestade,

uma crise de ser

que podemos encontrar

as raízes

dos aspectos destrutivos

ou autodestrutivos

da nossa natureza humana,

e superá-los —

trazendo-os completamente

para a nossa consciência.

Uma vez entendida a causa

do problema, ele é lançado

no fluxo de consciência

( do interior para o exterior ) —

na água viva do ser,

e a cura se processa.

 

A raiz de todo mal

é quase sempre interior —

precisamos de ajuda para vê-la.

Então podemos arrancá-la

e atirá-la na correnteza

que a levará para a praia...

Afeto e discernimento

são os dois ingredientes

que mais ajudam

numa crise de percurso.

LA 99/02

 

 

 

 

Forças De Evolução

 

Não está só no homem.

Assim como existe no Instinto,

o Espírito de Solidariedade

permeia toda a Criação.

Tal Espírito pode agir

de pessoa para pessoa,

de nação para nação,

ou de plano para plano —

nas interdimensões de ser.

Quando o livre arbítrio da criatura

a conduz em grupo, em raça

a um curso de autodestruição —

Forças de Evolução disparam

seu mecanismo de solidariedade,

ou melhor: de socorro,

ajuda-resolução desse Impasse.

Tem sido assim através das várias Raças

de Humanidade.

O Homem vai... e se perde até certo ponto...

O Desígnio de Vida,que permeia tudo, —

Esse, nada, ninguém toca.

LA 99/02

 

 

 

 

Diante Do(s) Holocausto(s)

 

Posso amar

ou tolerar o homem.

Levá-lo muito a sério,

ou nele acreditar, — não posso.

Se não o soubesse

uma criatura a transcender-se —

não poderia amá-lo

( nem a mim ).

A criatura desligada

( da Fonte )

é a coisa mais temível do universo.

A vida sem amor

cheira a gordura animal —

queimando.

Se podemos valer alguma coisa,

essa valia

só pode estar na solidariedade:

no viver

e ajudar a viver.

LA 99/02

 

 

 

 

Afagos De Unhas

 

O amor só fala mal

porque deseja mais amor.

Se não for insaciável

nem falar mal —

não é amor.

 

E entre tantos bem-me-queres

e tanto me queres mal —

haja força, haja fôlego

pra tanto amor,

amada.

LA 99/02

 

 

 

 

Tentativas

 

O artista não precisa

fazer muito —

só o máximo

em cada tentativa

de superar-se.

E após cada tentativa

saber apenas

que o resultado dela

foi só mais um tentar.

O verdadeiro artista

sabe-se arteiro —

criança-marmanjo-adulto.

E não se leva a sério

a ponto de embaçar

o ver a si e o mundo.

LA 99/02

 

 

 

 

N’Ele Em Nós

 

Se a maioria soubesse para onde vai,

a estrada estaria pronta.

Como não sabe,

cabe a cada um construí-la

lá em si.

O caminho de todos

não vai dar em lugar nenhum,

a não ser aonde todos

pensam que vão.

O Caminho e a Vida

são um desafio e um chamado —

e está n'Ele em nós.

LA 99/02

 

 

 

 

Então Vai

 

Queres ir?

Então vai...

Senão vais pensar sempre

que devias ter ido.

Vai, e um dia verás que o ir

só faz chegar

quando chegar é um porto em nós

entre o partir e o sabermos

que não pode haver distância

entre o sonho e o sonhado.

LA 99/02

 

 

 

 

Lillian Witte Fibe

 

Seu jeito oblíquo de dizer

nos cai tão direitinho.

Sua simplicidade matreira

é o açúcar

para os limões da notícia.

Seu sorriso de menina

exilada da infância

gera empatia existencial

e o cheiro

daquele pão feito em casa.

Seus comentários

fingem dificuldades

para saber explicar —

e pela simpatia

decodifica.

Com você, Witte Fibe,

a gente aprende gostosamente

que as coisas “são assim”

de um “outro jeito”...

E aprendemos a tirar

mel das pedras

e doçuras do absinto:

as notícias azedas ( em seu narrá-las )

têm o perfume humano

de que poderiam ser outras.

Com você, Witte Fibe, as meias-noites

têm mais conchego.

Seu sorriso e seu boa-noite

foram tombados

pelo nosso coração.

LA 99/02

 

 

 

 

1.7

                

Meus amigos me ensinaram

a não levá-los a sério.

E em mim também aprendi

a não depositar fortunas...

Sério, só terremoto.

Assim mesmo só acima

de 1.7 —

quando rabana como crocodilo.

 

Comamos-descomamos.

Bebamos-vertamos.

E cocemo-nos, amada,

que o resto é quase nada.

LA 99/02

 

 

 

 

Pois É

 

Pois é.

Você não conseguiu,

nem eu.

Por mais que tenhamos feito,

não conseguimos

aplacar a insatisfação —

esse desassossego.

O tempo tem nos machucado

e já estamos cansados

do nosso pacto social

com a bobeira.

Bobos do mundo,

dos próprios sonhos

e de nós mesmos.

 

Pois é.

Nada fizemos

a não ser nos deixar fazer de bobos.

A não ser termos a coragem

de nos vermos a nós e as coisas

com terrível serenidade —

e o humor, o riso, a ironia

transformados em remédio.

 

Pois é.

Nada fizemos

a não ser nos fazermos de bobos.

Não temos outra saída

a não ser a de tentar

fazer de nossas derrotas

nossa vitória.

E vamos lá!

Que Deus não faz ao homem

o que é trabalho do homem:

a vida precisa

das mãos do ser.

LA 99/02

 

 

 

 

Entre Não Ser E Ser

 

Me vou rolo-rolando,

rolo-narrando

por esses poemas-rio

sem nascente nem foz —

pelas águas em mim sem fim

que sabem morar no mar.

 

Me vou conto-fluindo

por palavras que nascem

de um tempo de dizer

as coisas que se vão

levando por si mesmas.

 

E há contos de saudade

de coisas que nem foram,

de sonhos que serão

lá no futuro de não sei

com alevinos de presente.

 

E há contos de nós todos

bailando como ninféias

num sentimento-Um

que a vida me segreda

entre não ser e ser.

 

É um trabalho solitário

este a que me proponho:

encontrar-me com você

entre o murmúrio das águas

de meus poemas-rio.

LA 99/02

 

 

 

 

Meditação

 

Um ver-sentir-pensar sem margens,

e saber, nesse estado,

que a criatura está no Criador —

como a árvore está na semente,

e se sentir abrir dentro do amor,

dentro do seio dessa terra cósmica...

e crescer pela graça do infinito

dentro do infinitésimo a sonhar-se:

respirar fundo essa verdade

em alma-coração —

saber-se uma centelha

dentro do Sol,

um pisco

dentro de todas as estrelas,

um espelho de vida

a recriar-se.

LA 99/02

 

 

 

 

Trans

 

Uma modalidade

translógica de conhecimento —

esta a meta.

Saber a que porto dirigir-se

torna todos os portos favoráveis.

Entre o pessoal e o transpessoal

há uma escada que sobe e desce

entre os anjos, os santos, as almas,

os seres de várias gamas

e a presença de Deus —

sabida com o coração.

Vida-transição-vida.

Quando as pedras falarem

nos contarão

o que as rosas já não têm voz

para contar.

LA 99/02

 

 

 

 

Sobriedade

 

O homem deve ser o dono,

o senhor dos seus sonhos —

saber a hora de incubá-los,

de soprá-los na forma...

e o momento de reciclá-los

em outras coisas-sonhos.

 

Incentivar o coração

a construir

uma casa de sonhos

é ajudá-lo a fazer de si

um espelho auto-enganador —

água espelhando estrelas...

que o sol vem desencantar —

mas que ele, auto-seduzido,

continua saboreando:

sempre à espera da noite

para perder-se novamente

em sua casa de sonhos —

a sua adega

de embriaguez celestial.

 

A saúde na jornada

é a sobriedade de espírito —

com o discreto perfume

da verdade e da beleza.

LA 99/02

 

 

 

 

Visita

 

Por vezes somos visitados

por Deus

em forma de alegria —

sentimo-nos Um

com toda a Criação.

Uma beleza celestial

pinta seus quadros

na sala do coração.

LA 99/02

 

 

 

        

Retalhos

 

A navalha afiada

( narcísica ) da razão

apenas corta e recorta,

apenas talha e retalha —

sem saber o que fazer

com tais recortes e retalhos...

 

Quando a razão se esquece

de sentir,

de intuir

ou transcender-se —

fica sozinha:

só razão —

um pedacinho só do homem.

LA 99/02

 

 

 

 

Discernimento

 

Sempre uma geração passa à outra

seus recibos de tolices,

misérias e loucuras

ao lado de seus frutos

e transcendências.

Tanto do lado positivo

quanto do negativo

todos os homens são “bons mestres” —

tudo vai depender

do nosso discernimento:

“Examinai todas as coisas

e retende o que é bom”, —

eis o conselho inspirado

do mais zeloso dos cristãos.

LA 99/02

 

 

 

 

Velhos Pistoleiros

 

Os marginais do sistema,

opositores da dominação —

os velhos “pistoleiros”,

em geral são procurados

pelos seus ex-alunos,

amigos e curiosos —

que vêm ( competir com eles ),

roubar-lhes algum segredo,

ver-lhes a decadência...

( e/ou que fazem no momento )

e sempre que possível —

matá-los pelas costas.

Mas aleluia! Aos marginais

do sistema

cabe viver em saboroso

desassossego.

LA 99/02

 

 

 

 

Donos

 

Os donos da verdade?

Deixemo-los curtir

sua loucura sagrada,

bebendo o leite divino

de sua paranóia.

 

As suas línguas bífidas,

seus olhares venenosos

são o crachá

das suas intenções.

 

Podemos conhecê-los

pela sua monolítica

intolerância.

LA 99/02

 

 

 

 

Quem É Que...

 

Quem é que nunca teve

aquela ingenuidade

vizinha da tolice —

só percebida

pelo rabo do olho

do conhecer-se?

LA 99/02

 

 

 

 

Fico, Ficas, Ficamos

 

Que saboroso, amada,

é esse neo-amar.

Aquele paleodever

é que era de fazer chorar.

 

Te quero, você me quer —

e já podemos ficar.

E de ficar em ficar

ficamos mais convencidos

de que o bom do amor é amar

sem precisar ter nada havido...

Não é, amada?

 

Com esse neo-sentimento,

tudo, amor, fica mais belo:

já podemos ler o livro

bem antes de estar no prelo.

 

Amar ficou neoliberal

( longe do paleomoralismo ) —

ficou entre a democracia

e o falecido comunismo.

 

Te quero, você me quer,

sou homem, você mulher —

mas nem precisávamos ser

beija-flor com bem-me-quer.

LA 99/02

 

 

 

 

Que Agora O Mais...

 

Temos a nossa pacotilha.

Calma, minha alma,

que, agora, o mais é viajar.

LA 99/02

 

 

 

 

Amor De Escambo

 

Corpolatria ululante.

Amor de escambo.

( Com bossa nova ou mambo? )

Amor, amor de escambo.

( Na cama ou dançando tango? )

Amor sujo, ó pura amante.

Amor que a boca mancha, Amanda.

Amor chupando manga, Sandra.

Amor de escambo, não sambo —

almoço e janto com morangos,

mas com você, Luanda:

com você, sim, escambo.

Corpolatria uivando.

LA 99/02

 

 

 

 

Medo

 

O medo, sempre o medo.

Ora o medo disto e daquilo,

ora o medo de tudo —

inclusive o de ter medo.

O medo de morrer

e o de depois de morrer.

O medo de viver.

O medo de não morrer...

O medo de não viver...

Medo de amar, não amar

e aquele de não ser amado.

Medo do mundo, do outro

e até o medo de si mesmo.

Medo do “sim”, medo do “não”.

O medo de dar certo

ou dar errado.

O medo de estar só

e o de estar acompanhado.

Medo de Deus e do Diabo.

O medo e a angústia de ter medo.

Maior que a solidão é o medo —

um medo até de não ter medo.

Um morrer antes de morrer:

morrer de medo.

Medo de...

Desaforo, meu Deus,

tanto medo

por quase nada.

LA 99/02

 

 

 

 

Sempre Assim

 

Que tristeza que é o “sempre assim”,

que não se percebe “assim”.

Que coisa horrível são os homens

tragicamente normais.

LA 99/02

 

 

 

 

    Amizade Octogonal

 

     Fizera vasectomia

     e não contara à esposa.

     ...........................................

     A mulher engravida

     do oitavo filho.

 

     O consorte vai ao médico

     que lhe mudara o encanamento

     e, infinitamente calmo,

     ( era faquir ) quis saber

     se fora “barberagem”

     ou fora corneação.

— Como assim, homem de Deus? —

     o médico lhe pergunta.

     O homem lhe explica:

     Se a coisa vem do senhor

     ou do meu vizinho e amigo

     que dá carona a minha esposa

     ( trabalham na mesma escola )

     já faz mais de vinte anos.

 

     O médico o examina

     e lhe afirma que filho —

     dali pra frente só “in-vitro”.

 

     Manso como uma pomba,

     diz à mulher que pati, patê, patá...

     fora bem operado e patu, patô, pató...

     desconfiava do seu amigo pati,

     patu, patê, patô, patá...

     E ela lhe responde tranqüila

     ( praticava ioga tântrica )

     que só se fosse por telepatia,

     porque budi, budô, budê,

     budá, budu...

 

     O marido ferido conseguiu

     com a mulher do fulano suspeito

     ( que trabalhava num laboratório

     cujo médico-dono era seu amante )

     proceder ao exame de DNA —

     não só do último filho

     como também dos outros sete.

 

     Quando foi buscar o resultado

     notou que a vizinha analista

     e seu esculápio-amante

     ostentavam um sorriso

     mais terrível que o de Gioconda...

 

     Foi para casa,

     tomou um copo de café bem forte,

     sentou-se na velha poltrona —

     abriu o envelope e viu:

     Se o desgraçado do amigo

     era um telefilhopata,

     isto ele não sabia,

     mas que tinha feito os seus oitos filhos —

     ah, isto tinha!

     LA 99/02

 

 

 

 

Coisas Soltas

 

Acreditar é bom, nos situa

lá em nosso mundo em nós.

Eu, quando o tempo escurece,

venta muito, troveja

e o chão se molha de escorrer —

acredito que choveu.

LA 99/02

 

 

 

 

Infelizes e mentirosos

são os bocejos que o tempo

imprime nos casais.

LA 99/02

 

 

 

 

Um amigo é bom.

Dois bota o escroto em perigo.

Três não há cristão que agüente.

LA 99/02

 

 

 

 

Nunca teve uma amiga

para quem não olhasse torto

e de quem não adorasse

as tortuosidades.

LA 99/02

 

 

 

 

Rico casa porque bebeu.

Pobre, porque vê no casamento

algum licor

que não bebeu na infância.

LA 99/02

 

 

 

 

Homem e mulher se dão

quando esse dar-se é trabalho.

E entram num acordo apenas

quando cada um deles pensa

que ficou com a maior parte.

LA 99/02

 

 

 

 

Longe de mim o pessimismo!

Que ganharia com isso?

Quando não acredito,

invento minhas crenças —

assim, jamais descri

da beleza das mulheres.

LA 99/02

 

 

 

 

O Herói De Mil Faces

 

O amor é um velho de mil faces,

contando histórias que aprendera

das cavernas e palácios,

dos monges e camponesas,

dos marujos e das tias...

 

O mundo inteiro adora ouvi-lo —

principalmente aqueles

que disfarçam senti-lo.

 

O amor é um jovem que fabrica

lindas máscaras de cera

que em vindo o sol do meio-dia

e a tarde cheia de mormaço —

vão derretendo e demudando

fisionomias e intenções...

 

O mundo inteiro adora usá-las —

principalmente aquela gente

que sempre afirma detestá-las.

LA 99/02

 

 

 

 

Com Mil Razões

 

Deixo-me ir

trilhas adentro

pelas pegadas

de te lembrar

( noites e sóis,

astros de dentro

de um sonho azul,

ou rosa aflita

lá entre a tarde

e um forte vento... ).

 

Deixo-me ir

por trilhas, rastros

de tua voz

até chegar

àquela sala

com pão e vinho,

chamas ao lado

e as ilusões

brindando, alegres,

coisas e sonhos

que nem seriam...

porém já sendo

( e ainda e sempre ).

Sempre brindando

fiéis, alegres —

as ilusões:

rindo, cantando

e planejando,

sempre brindando

com esses dois

por nós falando,

em nós sonhando

com mil razões

de corações.

LA 99/02

 

 

      

 

Amor

 

Do amor nunca se sabe.

Como nunca se sabe

do juiz,

do tempo,

da boca do gerente financeiro,

dos fundilhos da criança,

do sermão do pastor,

do sorriso do patrão,

do elogio do amigo,

da visita do genro,

dos agrados do filho,

do presente da empregada...

 

O amor anda no arame

do paradoxo —

o mais certo do amor

é sua assídua incerteza.

O seu melhor bocado, —

o não durar.

O mais sério de si, —

a mentira.

Suas delícias, — o engano.

Seu charme, — a traição.

Sua beleza, — durar pouco.

Sua verdade, —

a que as pedras contam pro mar.

Sua ventura, —

as macias penumbras.

Seu maior tédio, —

a dedicação.

O amor é o ser humano

visto por dentro

em seus degraus de tempo.

 

O amor é bom

quando existe e não sabe.

E é feliz

quando não sabe que não é.

 

O amor é engraçado:

se tem não gosta,

se gosta não tem.

Se interessa, não dura.

Quando dura, não serve.

 

Por isso tudo o amor é belo.

De uma beleza que temos

a pretensão de conhecer.

 

O amor é um boneco de neve

dentro do nosso coração —

à espera de se tornar um lago

e fluir para outros corações.

 

Lá no fundo, o amor é bom.

Apenas não é melhor

porque às vezes se esquece

de amar.

LA 98/12

 

 

 

 

Passos

 

O homem, por dentro,

caminha muito devagar.

Por fora,

dá a impressão de estar voando.

Há um descompasso

entre fazer e ser nas mãos do homem.

Sempre que as pernas exteriores

não acompanham as de dentro —

o homem tem de parar

para acertar seu passo coletivo,

o que em geral ele tem feito

pela tragédia.

Desde sua infância

o homem vive às voltas

com o seu caminhar —

esquece que seus passos

são ecos de outros passos.

LA 99/02

 

 

 

 

Multiconsciencialmente

 

Há um sentir-pensar de multidão,

de bando ou de cardume —

consciência-monobloco.

E, assim, em família,

em casal,

em pessoa —

consciências dentro de consciências,

neuromental-eletromagnetizadas

por si, em si e de per si:

consciências que se sabem

e consciências sem se saberem.

 

A qualidade e a dimensão

da liberdade humana

depende desses graus

de como e quanto se souber ou não

uma consciência

dentro e fora de consciências.

LA 99/02

 

 

 

 

Desejo Inconsútil

 

Aberta em flor

tua presença em mim —

flor mordiscada de chuva e vento,

pendendo do lado esquerdo

da varanda de lembrar-te.

Flor machucada de vida,

chorando o inefável

de não poder extasiar-se

num dos ângulos obtusos

do desejo inconsútil de esfolhar-se

até as últimas pétalas —

esfolhadas em múltiplos orgasmos.

LA 99/02

 

 

 

 

Porões E Quintais

 

Dentro e fora dos porões,

bem ao lado

de dálias doloridas —

vozes gritam matriarcais:

salvando a rosa

de primas enrubescidas...

Jabuticabeiras vestidas de branco,

cheirosas e visitadas de abelhas,

ouvem o respirar apressado

da carne túmida dos púberes.

...................................................................

Prístino vento despetala rubro

rosas, dálias, gerânios, bem-me-queres...

lambendo os corrimãos

entre os degraus roídos pelo tempo.

LA 99/02

 

 

 

O Pé E O Passo

 

Andando na verdade,

topas com a beleza.

No êxtase da beleza

vês que o sonho é verdade.

 

( A verdade seria

um ter achado —

um momentâneo deliciar-se.

Já a beleza seria

a empatia

[ o pé e o passo ]

bem entre o ver e o visto.)

 

Andando na beleza,

topas com a verdade.

No vinho da verdade —

o buquê da beleza.

LA 99/02

 

 

 

 

Cantada Em Lá Maior

 

Topas fazer amor

debaixo da pitangueira?

Se não topas, diz não,

e agradece o convite.

Eu, por mim, te espero lá.

LA 99/02

 

 

 

         

Desfile

 

Os homens se molharam

quando a “escola” ( com arte! )

esfregou pígios e míjios

na cara da avenida.

LA 99/02

 

 

 

Charmosamente

 

Serei o cônjuge ideal,

amor:

meus olhos não verão nada.

Nem meus ouvidos ouvirão.

A minha boca não dirá.

Nem desconfiarei de coisa alguma.

Esconderei o olhar

por detrás dos jornais.

Não presumirei tolices.

Cochilarei nas horas indiscretas.

Desprezarei quaisquer suposições.

Não estarei quando for bom não estar.

Conjeturas? Nem pensar —

contra-argumentarei inamovível,

com álibi infalível.

Se me disserem que é quarta-feira,

e me afirmares que é domingo —

preparo-me para ir à missa

e volto xingando o padre ( se for o caso ),

que não cumpriu com seu dever...

enquanto arranjo filosóficos,

poéticos argumentos

para dizer que cabe em qualquer dia

a alegria niquelada dos domingos.

...............................................................................

Direi num tom religioso-metafísico

que para o ser humano — em abertura espiritual —

não pode haver crime acima do perdão.

E prometo que assim viverei:

charmosamente bobo

por todos os dias da minha vida.

LA 99/02

 

 

 

 

Vontade E Destino

 

Não poucas vezes

é mais forte o destino

que a vontade do homem

pela sua jornada de suplantar-se.

 

Ciência e religião têm-se esforçado

para aclarar ao homem

o que ( nele ) é destino,

o que ( nele ) é vontade —

enquanto os sábios lhe revelam

que ( incorporada àqueles dois )

caminha soberana

a Grande Finalidade.

LA 99/02

 

 

 

 

... Se Entendendo...

 

Senta aqui, minha marmanja.

Meu coração tem uma coisa

pra te dizer.

Bastante canja,

chenelo aerodinâmico,

bocejos cor-de-rosa,

azul espreguiçar —

isto o que espero da vida.

De ti, minha marmanja,

espero alguma ternura

e muita tecnologia

de cintura

( sei que não é nada canja... ).

Se topas, minha moleca,

vem: me ajuda a fazer a janta,

ou vai lavar esta cueca.

LA 99/02

 

 

 

 

Sanchos E Quixotes

 

Os Quixotes e os Sanchos

mostram ao mundo inteiro

que eles têm o que todos

hipocritamente pensam que não têm —

até que ( escondidamente ) em seu coração

cada um vá se envergonhando

e comecem a mudar —

olhando por uma fresta de si mesmo.

 

Os Sanchos e os Quixotes

correm nas veias morais

e no caráter mimético

de homens de todas as épocas.

 

Os Sanchos e os Quixotes

são aqueles que se nos mostram

( lá em nós ) Sanchos e Quixotes.

São aqueles de quem rimos,

mas aqueles que somos.

LA 99/02

 

 

 

 

Troca De Lado

 

Se não trocarmos de lado

como compreendermos as coisas?

Tão fácil criamos “realidades”

( pelo ver )

que acreditamos no que vemos.

Só quando olhamos por um outro lado

é que sabemos que a “realidade”

criada pelo(s) nosso(s) ponto(s) de vista

( e defendida com chumbo grosso )

não era nada “daquilo”...

Trocamos de ângulo,

vemos outra coisa —

e compreendemos.

De ver e de rever

é que a visão cria o mundo

e a revisão o recria.

LA 99/02

 

 

 

 

Micromaquinaria

 

A nanotecnologia, amor,

vai puxar as orelhas de moléculas

e até de átomos.

Vai até melhorar a qualidade

do nosso desempenho e orgasmo,

querida.

Como nanófilo, amada,

vou pôr os nanozinhos

para catar em mim

aqueles carrapatinhos microscópicos

que habitam a miami beach

do meu escroto.

Uma massagem nanológica

em nossas coceirálias,

em vívido funcionamento, —

também deve ajudar bastante,

não é mesmo, amor?

Aleluia, querida! Está falado:

esta nova ciência — para nós —

terá funções fálico-vagínicas:

implicitíssimas —

atravessaremos paredes

com os nossos corpos-mentais,

amada,

e — charmosamente invisíveis —

nos treparemos

até ao céu em nós.

LA 99/02

 

 

 

 

O Fio E A Trama

 

Para cada um dos sonhos

há uma pedra que o sustém.

Sonho de lá,

pedra de cá —

neste aquiverso é o lugar

da corporificação

do nosso lado abstrato.

Para cá vimos

para aprendermos a lidar

com as interdimensões em nós —

interligados que estamos

com toda a realidade.

O fio ( em nós ) invisível

é trazido para fora

enquanto vai costurando

nosso fazer e nossas experiências

em reiterada tessitura

de uma infindável malha

de consciência —

virtualizações da criatura

aprendendo a trabalhar

consigo mesma e com o mundo.

O ser a trabalhar a sua essência —

pela metabolização

da energia que respira.

LA 99/02

 

 

 

 

Coisa-Pedra

 

Enquanto não soubermos

transubstantivar o amor,

amada,

é irmos degustando-o

assim cru

e sempre mal digerido —

travestido em rio poluído

sem nenhuma visão ( ainda )

de sua terceira margem —

aquela que não sendo

direita nem esquerda

há de nos libertar

do leito —

o sonho coisificado,

a mágoa feita pedra

e calha para o amargo.

LA 99/02

 

 

 

 

     Rotatória

 

      Seres-coisas que saem,

      seres-coisas que chegam —

      automaticamente saem

      e chegam,

      neste porto em nós em viagem.

 

      Sabes que horas são

      no relógio da vida?

      Ou onde estamos

      em relação ao coração de Deus?

      Sequer para onde estamos indo?

      Não sabes?

      Não faz mal. Nem só de saber

      vive o homem.

      Vou voltar para a festa...

      Após a última dança —

      recolho-me.

      LA 99/02

 

 

 

 

Condão

 

Ressuscitamos

contos adormecidos,

insuflando-lhes na boca

novos ósculos de sonhos.

Damos-lhes outras temporalidades,

outros nervos, almas, corpos

a fim de transitarem conosco —

serem nossos companheiros

por esta longa estrada

que nossos pés inventam.

 

Ressuscitar dos mortos

é prístino condão da arte —

sua oxigenização

pelas águas do inconsciente.

 

Ressuscitar dos mortos

para adiar a morte.

LA 99/02

 

 

 

 

Depressão De Amor          

 

Amor quebrou a rabeca

na cabeça do óbvio,

e foi jogar peteca.

Amor estava revoltado —

em crise de transição:

um tanto desacomodado

lá em alma-coração.

Amor estava deslocado,

por isso foi jogar peteca —

descalço, só de cueca.

Amor estava arrasado.

Foi quando conheceu Amora...

Ah, esta, sim, lhe esticou

tanto os sentidos para fora,

que de tanto desfrutá-la

ficou roxo, cor de aurora —

mas logo recobrou a fala,

a voz, o canto, a cantada...

Comprou Amor uma guitarra,

jogou de novo o pé na estrada

e anda rolando aquela farra.

LA 99/02

 

 

 

 

Senão...

 

O amor é bom quando só dura

enquanto ama. No mais, Teresa:

uma andrajosa loucura.

 

O amor tem lá sua beleza,

enquanto inventa uma ternura

que se dissolve em gentileza.

 

O amor é bom quando se ama

sem penhorar a cama.

LA 99/02

 

 

 

 

Gulas Pastos

 

Velhos burgueses,

por que execrar-vos,

se já não sois?

Se já passastes

e bem piores

são os que estão?

Piores?

Digamos: cães maiores —

mais treinados, mais vorazes.

Com mestrado em feitorias,

doutorado em despotismos.

 

Burgueses,

o lado bom da vida

é tudo ser um cochilo:

enquanto a moça afaga a rosa,

o rapaz coça os mimos

e os velhos seguem gemendo

( ou contando bravatas ) —

tudo passa depressinha,

e tão depressa —

que já não sois,

burgueses,

mais do que o esterco do capim

que o chão ( vosso ) torna em pasto

sob o focinho dos bois ( vossos ).

 

Ah, burgueses, foi bom,

muito bom ver-vos passar.

Enquanto dáveis as cartas

muitos esperávamos o dia

em que devolvêsseis à vida

o que é da vida.

Ficai em paz,

se é que a construístes para vós.

 

Sei que virão outros

( e até piores )

mas todos eles serão pasto

de sua própria gula:

sua maldade e ignorância

serão lembradas e execradas.

 

A vós, ó donos, ó notáveis —

as nossas gargalhadas.               

LA 99/02

 

 

 

 

Mel E...

 

Abelha, em serviço,

não tem tempo para nada,

senão para fazer seu mel.

Poeta, com caneta e sulfite,

tem todo o tempo água viva

que corre nele como um rio.

Abelha faz mel.

Poeta faz o sonho parir à beira-rio

e o entrega nos braços do tempo

que o lava com jeito de mãe

e lhe diz que procure ( quando for hora )

o senhor Proust

para que o ajude a ver

que não há tempo nenhum perdido —

se o atual estiver sendo

metabolizado em consciência —

e ligado em essência

com a Fonte.

 

Abelha faz mel.

O homem faz merda.

Principalmente

se for um bicho arrogante,

charmosamente bobo —

que “pega” de todos,

empilha para si

e para Ego, seu senhor —

sempre a serviço de si mesmo

para si próprio.

LA 99/02

 

 

 

 

Ficar-Partir

 

Se nunca mais voltarmos a nos ver,

não vai deixar a rosa de florir

nem o dia deixar de amanhecer.

Meu cão não fará greve em seu latir.

 

Nem meu melhor amigo vai saber.

( Só conheço um alguém que vai sentir.)

Nem minha mãe irá se surpreender...

E o mundo, o mundo inteiro nem vai rir.

 

Se nunca mais voltarmos a nos ver,

a vida vai deixar acontecer...

e Deus, Deus vai deixar-nos decidir...

 

Só nosso coração pode doer.

Ele, sim, poderá se ressentir

desse ir ou não ir, ficar-partir...

LA 99/02

 

 

 

 

Cinismo

 

Nesta hora de cinismo agudo,

teúdo e manteúdo —

no entre nações,

no entre pessoas,

no entre cachorros...

Nesta hora em que o cinismo

concentra fortunas,

reparte misérias,

fabrica trapaças —

que fazer, ó Calíope,

já que a Ciência não pode?

Que fazer, meus heróis?

Meus anti-heróis?

Meus irmãos, que fazer?

Que fazer, santos homens?

Bandidos, que fazer?

Que fazer, ó normais?

Teóricos, concretas,

que fazer?

Que fazer, ó vocês,

que cultivam respostas

para todas as coisas?

 

Ó tu, ó nós, ó sábios

de todas as sabenças,

haverá uma saída —

que não a de transitivar o humano

nesta hora intransitiva?

LA 99/02

 

 

 

 

A Nave

 

Sem a substância do imaginar,

como construir a nave

em nós ( e vice-versa ) para os outros e as coisas?

Como ver que o visto é o ver em revisões?

Como contar sabendo recontado

não somente o que conto

como também o que me foi contado?

 

O imaginar

vai trazendo do nada coletivo

( o nada também tem dono )

“coisas” de que depois nos cobram

um senso, um rumo ( fora e dentro ).

 

O imaginar é sociogênico:

nasce de depreender relações,

de vasculhar universalidades...

O imaginar se transforma

na coisa que imagina —

sendo que o imaginador a é,

bem antes dela. Uma espécie de seu deus.

 

Sem a substância do imaginar,

a nave não se constrói,

e sem ela —

como viajar-nos

por nós e pelas coisas?

E como recriar a realidade

por nossa vida inteira?

LA 99/02

 

 

 

 

Caça Aos Morcegos

 

Fiap-fiap-fiap-fiap-fiap-fiap-fiap ...

André, com um caniço,

fustigava o ar no quintal —

estava caçando morcegos.

 

 

A vizinha, curiosa e sorridente,

lhe pergunta o que fazia.

Debruçado no muro, e cavalheiro,

pede-lhe que pule do seu lado

( e o ajude ) e a ensina

a vibrar o caniço...

Ficaram até às três da manhã

vibrando a vara ( por sorte

mataram três ), — até o marido

chamá-la para dormir.

 

 

Na outra noite, às nove,

telefonou a André

perguntando se iriam caçar.

Respondeu-lhe que decerto:

havia morcegos demais

e era mister vibrar a vara —

o que era bom para os dois:

após se aliviarem de seus bichos,

haveriam de se sentir mais leves,

langues-lassos-relaxados.

E assim foi: despertares divinos,

anoiteceres ansiosos.

Sim, toda santa noite,

por charme, prazer ou vício —

se dedicavam

cada vez mais entusiasmados

a fazer vibrar a vara

na deliciosa caça aos morcegos:

fiaaaaaaaaap fiaaaaaaaap fiaaaaaaaap fiaaaa...

LA 99/02

 

 

        

 

Quase Inexistente

 

Há os que aportam entre o existente

e a dois degraus de já quase não se estar...

Aí trabalham, amam e morrem —

mas como garimpeiros do que os homens desprezam,

como lapidadores de coisas esquecidas,

construindo no seu imaginar a oficina

cúmplice do seu viver.

E a vida inteira constroem e reciclam

as coisas, a si mesmos, o que sonham

em trânsito permanente

de si para os outros, dos outros para o mundo

e para si: sempre em saltos-transcendências —

maneira de se sentirem água viva...

 

Esses tais, em suas casas-naves

( entre o partir e o cais ) —

têm uma vida quase inexistente...

São os mineiros da vida.

LA 99/02

 

 

 

 

Penas Limpas

 

Jamais desvalorizo

a minha dor com lágrimas,

sequer reprovações.

Tudo o que me acontece,

se profundamente entendido,

me ajuda a sofrer o mal

até que me seja bem.

 

Turvar com mágoas,

manchar com imprecações —

apequena, amesquinha:

joga água no fogo

que iria separar

o ouro

da ganga.

Ouro?

Digamos, então, prata...

 

Jamais me desvalorizo

com autodó:

preciso das minhas asas

( não-molhadas... )

para poder atravessar-me

e prosseguir minha viagem.

LA 99/02

 

 

 

      

 

Lindos Fricotes

 

Nossa amizade foi sempre cheia

de licenças poéticas

e das metáforas

da justificação.

Só poderia ser mesmo

uma amizade de mer...

pois quem é que ousaria

tocá-la com colher?

 

Ah, minha desamada,

que saudades que não tenho

daqueles lindos fricotes

jamais terem sido nada.

 

Quem sabe Proust,

com algum reajuste,

não lhe ensina a recobrar

o que não soube se dar?

 

Saudades do seu tornozelo

esquerdo.

LA 99/02

 

 

 

 

Via Piranhas

 

A guerra, amada,

tem o seu lado bom —

cria empregos,

corta supérfluos,

evita a explosão demográfica,

põe a população

em saltitante estado de medo —

resignando-a como a um santo

que se quer despojar do mundo.

Além de fazer uma triagem

( via piranhas )

com boiadas e boiadas e boiadas...

Além do seu lado belo:

a beleza de se ver o massacre

via-satélites —

sentadinhos em poltronas

e comendo pipocas.

A guerra, amada, é coisa linda,

e nem precisa de motivos:

qualquer um serve —

um dos melhores

é a falta de motivos.

Não é o que vemos todo dia?

LA 99/02

 

 

 

 

O Mundo Mágico De Um Gajo

 

Deixou as barbas de molho

por tanto e tanto tempo,

que quando se lembrou delas

piranhas a tinham comido.

Extraiu disso um aprendizado

que passou para a pobre mulher:

''Sabe, Eudócia, aprendi

que os inimigos do homem

agem até por dentro das metáforas...”

A mulher lhe atirou dois palavrões

e o mandou ir buscar quinhentos gramas

de lingüiça para a janta.

LA 99/02

 

 

 

           

Invidia

 

Mais que a embalagem

deveria valer o conteúdo,

mas a inveja

desmente este enunciado.

Hoje, o que os olhos vêem

é o que conta —

já que o ver do momento

é um ver de superfície:

ver hedonista

que só vai até enquanto

o objeto está na luz...

O homem parece estar perdendo

o seu ver criativo

( sua porção de luz própria ) —

aquele que recria a realidade

porque deseja ver-se ( a si mesmo ) outro.

O mundo é como o vemos.

E como o vemos somos nós por dentro.

LA 99/02

 

 

 

 

Entre Um Bolinho E Outro

 

Uma loucura falsa,

sem brilho interior —

a dos que se fingem loucos.

Um fogo de folhas secas —

pouca chama,

muita fumaça.

 

A amizade pretensiosa,

mas medíocre,

cansa a alma.

 

Se não for pretensiosa,

tudo bem.

É uma delícia

comer bolinhos-de-chuva

com cafezinho fresco.

 

Doidice que se preza

tem luz própria.

LA 99/02

 

 

 

 

Quem vê cara

não vê o que o espera.

LA 99/02

 

 

 

 

Iron Lady

 

Era de ferro a dama.

Porém, foi se esquecendo

de usar algum azeite

para poder abrir-fechar,

dobrar-se, desdobrar-se,

agachar-levantar-se,

cair, rolar, reerguer-se —

e sorrir sem ranger.

 

A dama,

que não soube fazer assim,

logo virou

um punhado de pó de ferro

que o parlamento inglês

jogou no Tâmisa.

LA 99/02

 

 

 

 

Os Fundilhos Do Momento

 

No momento, o humano

está em banho-maria.

Se esquentar, — evapora.

Se desligar, — congela.

As mãos do Capetalismo

é que controlam o fogo.

 

No entanto, viver é possível.

Será sempre possível —

principalmente para os loucos.

LA 99/02

 

 

 

           

Eleição

 

Elegeu a ficção

por lhe ser mais verdadeira.

Por ver nela o terceiro lado da vida:

aquele a que confluem

os arroios do tempo

e formam o grande rio Agora-Sempre,

que rola sob os pés

de toda criatura —

e liga tudo a tudo.

O rio que finge ser

o que realmente é:

a realidade a remoldar-se

em infinitos moldes —

tão facilmente quanto respiramos.

 

Elegeu a ficção

por lhe ser mais verdadeira.

Nem por isso deixou

de dar ao mundo o que é do mundo.

LA 99/02

 

 

                       

 

                         

     Mural

 

     Ouviu umas pedrinhas no telhado.

     Saltou da cama ao muro: era a vizinha.

     Trazia sobre o corpo uma calcinha

     e um penhoar de luar, bem decotado.

 

— Meu marido ressona transportado...

      E eu a remoer a noite, tão sozinha...

      Pensei: vou ver se André está acordado

      para passear com ele pela vinha...

 

      — Que bom, amor, nós sempre continuamos,

      sobre este muro, o que jamais findamos —

      por isso mesmo lindo quanto infindo.

 

      — Ajuda, amor: faz escadinha... Estou subindo...

     Ai, devagar! Assim... assim... eu te seguro...

     Vamos fazer tremer o puto deste muro!

     LA 99/02

 

 

 

                

 

Pela Fresta Do Muro

 

Em geral os covardes

têm voz e timbre sonoros,

dicção eufórica

e arrojos de animal no cio.

 

Os covardes

vivem sempre empurrando

os outros a fazerem

aquilo a que jamais se atreveriam.

     

Citando frases lustrosas

de poetas e filósofos enfermos

incentivam o mergulho,

o pulo,

a escalada,

a travessia,

as aventuras desgrenhadas,

o risco,

o jogo,

as paixões —

e tudo mais o que jamais fariam.

 

Incentivam,

e ficam vendo

( por uma fresta do muro )

se o leão deixa que lhe trancem a juba...

LA 99/02

 

 

 

 

Bom Proveito!

 

Calma.

Vocês terão a vida inteira

para manipular,

para guerrear

e dominar.

 

A vida inteira

para serem os donos,

os notáveis:

dar as cartas —

ter a voz e o comando.

 

Resta saber

o que vocês farão

com todos esses “brinquedos”

que fizeram da vida...

no tratar como a esterco

a tanta e tanta gente.

 

Os “briquedos” são seus:

são coisas que vocês fizeram —

são coisas suas.

A vida não é de ninguém

que seja homem.

 

Bom proveito, senhores!

LA 99/02

 

 

 

                

Lucifazer-Se

 

Muitas vezes subimos, subimos, subimos...

mas a vida chocalha a árvore.

Subimos outra vez,

e pumba!

Outra e outra,

e pumba! pumba!

Aprendemos

que o ir faz voltar,

que o subir faz descer

( ou cair ).

Compreendemos

que tudo isso é a vida:

ganho-perda, perda-ganho.

Estar aqui ou lá

é só uma questão

de estar aqui ou lá:

isto pode importar

apenas para o ser —

a vida não se importa.

A vida serve.

A vida apenas serve.

A vida serve enquanto

o ser não a desserve...

( No caso há um desvio

para acertar os comboios... )

A vida é consciência-desígnio,

o ser, — consciência-arbítrio —

consciência a ser-se,

a demandar um rumo-em-si

pelo caminho da luz:

essa mesma cuja semente

sonha em campos do devir.

Subir-descer,

ir-e-vir,

chegar-voltar —

o ser se desloca em si,

como se desloca fora —

mas chegar é transcender-se:

chegar-se em degraus de consciência —

levar-se por si mesmo em essência:

transição-vida-transição —

o ser vai-se tecendo

as vestes  de lucifazer-se

com divinos fios de luz               

LA 99/02

 

 

 

Depois De Ler Um Livro

 

A vida nos exige

uma coerência subjetiva —

indo de nós para os outros

e voltando a filtrar-se

em nós.

 

O só compromisso com a verdade

( o ser e o seu destino ) —

faz o homem respirá-la.

Sem esse sentimento

a vida se divorcia

da beleza —

se desvia daquele fulcro

que sustém seu valer-a-pena.

Viver assim

é estar desenganado,

ter-se perdido

da Intrínseca Finalidade.

LA 99/02

 

 

 

 

Amor De Vento

 

Deponhamos as armas,

amor.

Se já nem mais te quero

nem tu já és o mesmo —

por que continuarmos

a derrubar os muros

já todos derrubados?

 

De vento sou, de vento és.

De vento são nossos moinhos.

De muito vento os nossos sonhos.

Cheias de vento, amor,

nossas cabeças.

 

Amor, amor,

já não te cansas

de quebrar tantas lanças

com defuntos e fantasmas?

De queimar tantas velas

contigo e com os amadores?

 

Amor, amor,

que bom já não exista

o que eu pensava de ti!

Que bom, amor, já nem saibas

de ti nem dos amantes.

 

Já que somos de vento, amor,

de fortes ventos feitos —

vamos nos dar o braço

e sentando num espinho,

mandarmo-nos pro espaço,

que também é de vento.

LA 99/02

 

 

 

 

Quem Não Consegue, Amor?

 

Sem teus serviços, amor,

sem tua generosidade,

teu jogo de cintura,

sem as cantadas cálidas

do teu sorriso,

sem tuas meigas canalhices,

teus jeitosos surrupios,

teus charmosos calotes,

sem as tuas mentiras

cheirando a perfume vencido,

sem teus flertes habilidosos,

sem tuas delicadezas

com o sexo oposto,

sem teus olhos sem-vergonha,

sem tuas trepadas extras,

sem teus incestos,

sem teus depoimentos falsos

com testemunhas compradas,

sem teus processos,

sem tuas insinuações

de bicho mal-amado,

sem teu trabalho assíduo

para pôr o moral do outro em dúvida,

bem como a sua sanidade...

sem teus roubos e desfalques e calotes

( ah, teus calotes, amor! ),

sem o teu narcisismo

servindo em finas bandejas

tuas carnes malpassadas,

sem tua estupidez,

sem a tua frieza,

a tua indiferença,

sem teu falar mal do outro

( para o sexo oposto),

sem teus flatos tão discretos,

sem teus doces adultérios,

sem teu fazer

diuturnamente de besta,

sem a inveja e a competição

e a lavagem cerebral

que promoves nos filhos

e a culpa que transferes

para o teu cônjuge,

sem teus fiadores assíduos

( sempre do outro sexo ),

sem roubares a própria casa

para dar a parentes

e outras gentes,

sem o veneno do teu vinho —

quem é que não consegue, amor,

ser feliz sem tudo isso?

LA 99/02

 

 

 

 

Títeres

 

Já não é hora, amor,

de renasceres com a criatura

de tuas próprias mazelas,

de teu ridículo descrédito?

De trocares a adstringência

pelo maduro da vida?

De converteres em dia

a tua longa noite

disfarçada de luas e estrelas?

De deixares de chamar teus crimes

( teus desacertos psicogenéticos )

de cálidas paixões?

Já não é hora, amor,

de acertar o relógio

com o brilho do meio-dia

e aprender o caminho da luz?

O caminho de volta

pela porta da frente da casa.

Já não é hora, amor,

de seres o cocheiro dessa carruagem

em que viajas bêbado e inconsciente?

Já não é hora de dares o salto

do amor-doença para o amor-consciência —

e assim os homens irem se libertando

de serem títeres teus lá em si mesmos?

LA 99/02

 

 

          

 

Do Diário De André

 

Quando bem menino,

e que minha mãe não estava por perto

( na sua fábrica de costura )

eu espiava as empregadas —

subindo e descendo a grande escada...

Uma delas até me dava medo,

um medo terrivelmente bom:

tinha uma vassoura de piaçava entre as pernas...

com cerdas lindas... cor de fogo e ...

quando andava fazia caretas...

Por vezes eu tremia inteiro —

sentia uns fricotes gostosos

pela barriga acima,

pela barriga abaixo.

Quando me trancava no banheiro

pensava no que Virgínia

havia feito com aquele frasco de perfume...

Sempre que ela me via sem-graça —

esticava um sorriso onisciente...

e me espetava com um olhar sem-vergonha...

Olha, meu Deus, que vi,

vi muita coisa na vida,

mas nenhuma tão curiosa,

tão sublimística igual à de Virgínia.

.........................................................................................

A tosse de meu pai às vezes me fazia

procurar agulhas, alfinetes, grampinhos,

tarraxinhas de brinco, pulgas, coisas microscópicas

entre os vãos, pelas tábuas da escada...

..............................................................................................

Mas o povo está certo:

o que é bom dura pouco.

Logo me puseram numa escola interna.

E me recordo de que por muito tempo

prestei homenagens assíduas

ao que vira naquela generosa escada.

LA 99/02

 

 

 

 

É Assim Mesmo

 

Se o amor não tem te procurado,

não entres em crise, que o amor

tem trazido à cabeça muitos problemas —

inclusive apêndices mirabolantes

e artefatos de românticos antiquários...

Esse senhor, a quem chamamos de amor,

tem deveras deformado o bolso

e a cabeça do mundo

( mundo a que, aliás, foi ele próprio,

sim, foi amor quem deu feiçoes ).

Uma das muitas coisas boas desse arrivista

é o doce de cidra com queijo fresco

que ele jamais tem nem sabe fazer —

mas faz vontade contando-nos histórias

de suas bondosas avós e mamães...

O irresistível do amor é que ele precisa

driblar, forjar, mentir, lograr, trair

para continuar

em cima de seu burro ou limusine.

Mesmo assim,

se o amor te procurar,

jamais lhe digas não:

atende-o pela noite

e antes de amanhecer já não estejas.

Manda-lhe rosas, versos,

tâmaras, passas e cerejas,

licor de jenipapo —

e mantenha azeitada a conivência.

Trata o amor por antítese,

que ele adora.

Enquanto não o levares a sério,

ele irá sendo lindo.

Quem chora por amor

é porque não aprendeu a brincar.

Amor é como jabuticaba:

quanto mais se chupa mais se quer —

o problema são os caroços que se engolem...

O amor é tão divino,

que diabo nenhum resiste.

O amor é tão diabólico,

que todos os deuses foram cornos —

exemplarmente cornos.

A quem a vida dá um amor torto,

bobo dele se vai querê-lo direito —

aí é que o direito vira esquerdo.

Amor é assim mesmo.

Cada um com o seu

e todos com cada um.

Que guarde bem sua medalha

quem nunca foi feito de besta.

LA 99/02

 

 

 

 

Acertos E Erros

 

Aprendemos mais com os acertos

ou com os erros?

Até aprendermos,

erramos mais que acertamos.

Nossos mestres, portanto,

são os nossos primeiros

e nossos últimos erros.

Os erros são desafio,

são amor-próprio —

torna-se questão de honra

superá-los.

Torna-se satisfação,

prazer, orgulho,

compensação,

reconhecimento,

fama e prestígio...

suplantá-los.

Por isso, tornam-se

nossos professores particulares,

nossos guarda-costas.

Os erros vão se transformando

em pais superados

em relação aos acertos.

Quando isso acontece

em todos os setores

da vida humana —

temos alguém privilegiado.

Os opostos

são a maior ajuda

da nossa aprendizagem.

No final, os erros

terão sido maneiras de acertar.

LA 99/02

 

 

 

 

Moldes

 

Moldes e moldes e moldes

num fervilhar de formas

que um rio vai preenchendo

e corporificando

pelas sombras das margens —

realidade-sendo

e transitando por si mesma.

 

Moldes e moldes e moldes,

todos eles preenchidos

pelo sonho que traz em si

a essência a ser trabalhada

pelo ser através da estrada

que ele abre por si dentro

e pelos finitos do infinito —

pelos unos dos versos

em seu chegar-se-partir.

 

Moldes e moldes e moldes —

casulos de tempo e ser

por onde o sonho de Deus

ilumina o recriarem-se

das criaturas:

o tamisar-se da vida

através das finas sedas

do silêncio de saber-se mais —

bem maior que o auto-engano

permite que nos vejamos.

LA 99/02

 

 

 

 

Mordomo

 

Se te avassalas,

a outro superestimas

e, assim, te decepcionas.

 

“Super” é um tanto muito

( ao menos por enquanto )

a quem não deu o salto

de si, do humano que é,

lá para o seu mais humano...

 

Ao que parece,

o que somos é pouco:

a vida nos quer mais.

Daí ter contratado

seu mordomo, o Viver,

para nos conduzir

ao que nos falta.

LA 99/02

 

 

 

 

Cá Pra Nóis...

 

A nossa pobre lógica

é só uma maneira

de nos situarmos

em nosso tolo realismo

que a vida

não parece conhecer.

 

A beleza de tudo

é exatamente tudo

não lecionar nenhuma lógica.

 

Muitas vezes inventar

pode ser mais verdadeiro

que a realidade.

Não tenhas medo de sonhar,

trabalhar —

e sobretudo inventar

a tua felicidade.

LA 99/02

 

 

 

 

O Duende E A Pedra

 

Só a ficção é real,

porque sabe fingir

que pode se apoiar na realidade.

O mais são cristalizações

de tempo.

 

A verdade é termos o faro

que a percebe

atrás de sua sombra.

 

O sonho é a mão de Deus

que faz

segundo a obra e a fé.

 

Já para a poesia,

para a filosofia

o verbo é ser —

que nem é verbo,

mas uma espécie

de duende de pedra.

LA 99/02

 

 

 

 

Trabalho-Experiência

 

Essa simplicidade

a que só se chega

com o não saber do que sabemos —

é antes um cuspir as sementes

da maturidade.

 

Essa simplicidade

( que diz sem parecer dizer ),

além de trabalho-experiência,

além de evolução —

é o simples sempre aparente:

uma tormenta de fundo

com calma de superfície.

LA 99/02

 

 

 

 

Consolo

 

O medo de fazer-dizer

nos amarra à derrota,

conserva-nos mortais.

E a nossa única vingança

sobre a derrota

é vencer

pelo caminho estreito:

o só consolo

do inconsolável —

na escalada do impossível

que o querer-ousadia

vai aos poucos transformando

em possibilidade

e vitória de ser.

LA 99/03

 

 

 

 

No Prelo

 

Nós, homens e mulheres,

e nosso amor sempre no prelo —

grandiosamente belo,

e lindo-infindo,

porque não lido

nem vivido.

No prelo.

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Poema Lavado

 

Se tens sido mais infeliz

que feliz,

não te assustes não, meu velho,

que estás dentro

da mais normal normalidade.

A vida não faz concessões.

E se vivemos

para nos reconstruir —

muito natural tenhamos

mais trabalho que lazer...

Mas é bom ter o cuidado

de não dizer “não” ao que apenas

começamos a construir —

o nosso estarmos bem em nós.

O mais é uma luta brava,

e a maior delas

é a de nos transcendermos,

ou irmos nos transcendendo

de nossas irrealidades

para o sonho de Deus em nós.

LA 99/03

 

 

 

 

Cardiomania

 

Disse ao meu coração

que era chegada a hora

de deixar de ser babaca.

Não sei se ele me compreendeu,

ou se só concordou.

Como dizem,

nunca se sabe.

O coração, por mais que pense,

tem a mania de sentir.

LA 99/03

 

 

 

 

Órbitas De Barro

 

Precisamos tomar nas mãos

a caveira

dos que nos precederam,

e retirar-lhe a terra

de onde se prolongam

os nossos olhos.

Saber que como eles

também teremos enxergado

bem pouco aos olhos que virão.

Saber que o nosso ver

cria e recria realidades

que muitas vezes nos prendem

em tempo e espaço outros

também criados por nós:

por nosso ver consciência,

tresmalhado

do Desígnio-Finalidade

a que nos chama

com voz sutil ( mas incessante )

o Espírito de vida.

LA 99/03

 

 

 

 

Para Todos

 

É possível ( a quem  queira )

ajudar a diminuir

a infelicidade —

pelo amor,

pela solidariedade,

pela arte,

pelo “sim” e pelo “não” —

na hora certa.

LA 99/03

 

 

 

 

Beluga

 

Meu amor, minha beluga,

ajuda aqui neste mar.

O mar é bravo, beluga,

tenho medo de afogar.

 

Ajuda, amiga beluga,

este menino do mar...

Toda a pessoa, “beluga”,

é uma criança ao singrar.

 

Com teu afeto, beluga,

fica mais manso este mar.

Ter-te na mente ou ao lado

assopra o meu navegar.

LA 99/03

 

 

 

 

Penúltima Saída

 

Ou transcendemos

a estupidez do real,

ou morreremos

estupidificados.

 

Acredito no amor,

no crer das mãos,

na boa-vondade,

na arte

como penúltima saída...

A última

dá para os lados do nada.

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Força Humana

 

Os grandes sentimentos

fazem sempre do homem

senhor da realidade

e facilitam transmudá-la.

Os grandes sentimentos

são a síntese

de toda a força humana

a percutir aquela nota

no âmago do ser —

seu sonho, seu grande sonho

que se torna em verdade.

LA 99/03

 

 

 

      

Cuidado

 

Cuidado com a mulata,

que ela mata —

mata, esquarteja, mói.

Seu amor vale prata

ou ouro em pó.

Mas a mulata mata.

Ao que lhe desata 

a alça do desejo,

não por pejo,

mas por molejo —

é que a mulata mata.

Aproveitem que a mulata,

despida,

desliza pela avenida,

suada de libido

e remelexo atrevido —

esfregando suas plumas

( rebolando lentamente )

na cara e na careta

de toda gente.

Cuidado, que a mulata

desbarata, mata

e mói —

mas não dói.

LA 99/03

 

 

 

 

Invenção

 

Se a mulher existisse,

até que os homens

poderiam “reclamar”

de não terem encontrado

a alta quantia de sonhos

que nela depositaram.

 

Se igualmente existisse o homem,

talvez surtisse efeito

falarem tão mal dele

as mulheres —

decepcionadas por apenas

haverem encontrado

o cavalo do príncipe...

 

( Não mencionemos o fato

aos não iniciados,

mas a mulher e o homem

não existem. )

Existe o ser humano,

desiludido de si —

inventando uma extensão-felicidade

de si para si mesmo.

LA 99/03

 

 

 

 

Deixas

 

Uns deixam isso,

outros aquilo.

Pedaços da mão,

da alma,

do espírito.

Gestos do coração

e a linguagem dos pés.

 

Muitos e muitos

só-apenas

deixam saudades.

LA 99/03

 

 

 

 

Precisão

 

Certamente

não é de inteligência

o de que o homem precisa.

Mas de algo que não se aprende

no banco das escolas

nem nas fórmulas da ciência.

Precisa de algo

que ele tem na raiz

do próprio coração —

Misericórdia.

 

A inteligência é o vinho,

a misericórdia, — o pão.

Sem esses dois não haverá banquete.

LA 99/03

 

 

 

 

Enfoques

 

Na mocidade,

com a cabeça entre temporais

e céus esfuziantes,

o amor é épico —

maior que a vida,

desbravador de mundos.

 

Na meia-idade,

com a cabeça entre a família

e a dominação social,

o amor é belo —

do tamanho do sonho

do que cremos com as mãos.

 

No caminho do fim,

com as mãos em beirais de pluma

e pés já sujos de terra,

o amor é ponte —

de nós-sonhos que vêm

e pessoas que vamos.

LA 99/03

 

 

 

 

Diálogo Íntimo

 

“Se já não temos tempo

de não sermos bobos no passado,

façamo-lo no hoje” —

imaginei meu coração

dizendo-me isso

num cardiodesabafo.

 

Ao que lhe respondi:

Assim é que se diz, meu velho!

Nunca se deve dar

o ventrículo a torcer.

LA 99/03

 

 

 

 

Rosas Que Eu Não Lhe Prometera

 

Quero escrever um poema

que seja claro como o meio-dia

para quando você o ler

deliciar-se à sua sombra.

 

Um poema que fale de tal modo

do amor,

que quando o ler, rápido sinta

que amor assim

nunca ninguém já amou,

e fique com vontade, não de amar,

mas de saber se valeria a pena.

 

Um poema que fale da beleza

de nem precisar havê-la —

já que ela de fato não existe

naquilo em que mais nos deslumbra.

 

Um poema, enfim, que diga

( bem lá detrás das palavras )

que as rosas orvalhadas de vermelho

não chorem sobre o ombro do ontem

por não as ter mandado a você —

uma vez que eu nunca soube

se você tem ou não um vaso

lá em seu coração.

LA 99/03

 

 

 

 

     Cada Uma!

 

      Minha alma me disse

      ( sem nenhuma pieguice )

      que no céu

      os poetas e os bobos

      não pagam ingresso.

 — Por que os poetas e os bobo? —

      quis saber, revoltado.

 

    
 — Porque os poetas são poetas.

      Porque os bobos são bobos.

      Poetas e bobos são recompensados

      quando desta para melhor.

 

 — Melhor?! E quem não crê

      que isso é melhor?

 

 — Melhor seria crer que sim.

      Uma, que não custa nada...

      e outra, que nunca se sabe...

      LA 99/03

 

 

 

 

Jeito

 

Entre o princípio e o fim,

entre o sentir e a razão

o amor gosta porque-sim

e não gosta porque-não.

 

Não é que o amor é mau, Maricota, —

é que ele se esquece à toa.

Vive errando de porta

e do nome da pessoa.

 

Num jeito quase sem jeito

o amor se ajeita.

E se ajeita de tal jeito

que ninguém nem suspeita.

LA 99/03