Normal, Normais E O Sonho-Mais
TEXTOS-2
Emigração
O momento é tristicômico. Tanto faz o homem dizer como calar — já não diz nem cala nada.
Seu silêncio ou palavra já não significam. E nessa crise de gente, nessa falta de pessoa — o significado das palavras está suspenso.
As palavras, que começaram a soar sem significar, — tiraram férias coletivas: deixaram os seus clones em seu lugar.
Sentido, rumo e nexo emigraram do homem: do homem-mundo, foram para uma plataforma no espaço — entre o planeta Humano e o planeta Chacota. LA 98/03
Fantasmas
Se a mosca zumbe à tua volta, já dobras o jornal tentando eliminá-la.
Mas se os fantasmas sobem, descem as longas escadas entre o porão e o sótão, o que fazer?
Minha mãe me mandava olhá-los bem de frente — dizendo-me que, assim, eles corriam todos...
Mandar, ela mandava, porém, jamais o fiz. Temia que, ao fazê-lo, eles me perseguissem com suas mãos geladas toque-tocando as minhas costas e escondendo-se debaixo da minha cama e dentro do guarda-roupa e malas.
Quando cresci mais um pouco, temia igualmente olhá-los, assim de frente, e espantá-los para sempre da minha casa. Para sempre seria tempo demais...
Se porventura os perdesse, que é, quem é que me restaria? Quem é que iria brincar comigo de dia e, de noite, me fazer cobrir a cabeça? Que amigos me restariam? Com quem conversaria? De que iria sentir aquele medo tão bom?
Me acostumara tanto com as histórias de mistério de minha tia Ofélia, que, quando ela se foi, ficaram-me em seu lugar o medo dos fantasmas de suas frias histórias.
Mais tarde descobri ( já sem aquele medo bom ) que os piores fantasmas são aqueles que perturbam o relacionamento entre as pessoas. São aqueles que os adultos se criam para se aterrorizarem reciprocamente. LA 98/03
O Silêncio De Deus
O silêncio de Deus é a maior presença d’Ele. Um silêncio que pesa sobre a consciência social. E o homem sabe, de soslaio, quando despreza um caminho de luz para pisar veredas feitas por pés mortais.
O silêncio de Deus é o momento aberto em amor em que todos os seus amados têm um conchego quente de falar e ser ouvidos, de ouvir e arrazoar. É a graça à espera do perdido. São os braços abertos à fome, à sede de justiça.
O silêncio de Deus é o momento ruidoso em que o homem deve humilhar-se e consultar no coração o norte daquela cidade cuja lâmpada é o Cordeiro. O silêncio de Deus é pausa e chamamento para refletir e assumirmos. LA 98/03
Coisa Séria
Coisa séria é o suicídio, a extrema unção. Tudo o mais pode tornar-se humor.
O adultério poderá se transformar no gozo de abandonar quem o pratica.
A mentira pode ser as delícias daquele que finge acreditar.
Os advérbios “honesta, sinceramente” podem suscitar um sorriso de claro enigma.
A frase “Eu te amo” pode ser seguida ( enquanto se mexe o cafezinho ) de “Eu também”.
“Falemos sério” — poderá ser seguida de uma frase adversativa: “mas com risadas”.
“O amor se foi” — poderá paralelizar-se com uma ironia rural: “Antes ele que meu boi”.
“O cônjuge foi traído, abandonado, roubado”. Ele foi. Outros milhões, que nem suspeitam, — serão.
“Minha vida tá nas suas mãos, doutor”. “Descanse. Agora, também sou agente funerário”.
Também outra coisa séria é faltar água ou luz. Daí a vela e o fósforo terem o seu cantinho. LA 98/03
Comercial
Fantasmas, aparições são os que têm as contas nas Suíças do mundo. Já quem fica com o dinheiro são os colarinhos-brancos, tão cuidadosamente engomados que, se os puserdes contra a luz, — vereis neles a marca-d'água...
Fantasmas, aparições têm aumentado como gafanhotos bíblicos. Já os colarinhos-brancos não estão, nem precisam estar em proporção direta com esse aumento.
Por isso tais colarinhos são cada vez mais brancos — talvez pela qualidade do sabão que usam, não é, dª. Amélia? — Ah, sim, porque eles só usam Fantasma — o sabão que dá o branco dos colarinhos mais brancos. Fantasma lava, não só tais colarinhos, como também a vida de quem os porta. Fantasma os põe em paz. Elegantes e em paz. Mas Fantasma não é pra qualquer um. LA 98/03
Circuito Da Criação
Quando você intui está ( quase sempre ) sendo original. Quando pensa, geralmente está preso a um molde-modo de pensar. Com a intuição não acontece isso porque ela ainda não dispõe de moldes como acontece com o pensamento. Ela é assim como a luz cujo corpo é o movimento. É luz que vem de muito alto, como toda gama de alto conhecimento. O pensamento é a ferramenta que move a realidade. A intuição é a luz que ilumina tal ferramenta, ao mesmo tempo que revela os desvãos do mistério...
O pensamento se organiza na idéia, a intuição o faz no mental ( cuja fluidez e plástica extrapolam qualquer noção de espaço-tempo ) de onde haure plasma-força para obter um corpo fluido e efêmero — algo muito volátil, homeopaticamente captado pela palavra.
Sentir-pensar-intuir-mentar — dinamizados pelo Espírito, são o circuito da criação.
Aquele que desenvolve uma aparelhagem capaz de distinguir tais elementos agindo de per si e em conjunto — é um mediatizador consciente: este pode conhecer-se mais lucidamente enquanto vai conhecendo o mundo, os homens, o universo e seus degraus.
Ver-se agindo, fazendo, criando: isto é consciência e controle do ego, além de constante aprendizado, e profundo, cada vez mais profundo sobrepor-se a tudo isso. Isto, desde as coisas mais simples — como acender um fósforo, até as mais complexas — como andar por aí com aparelhagem própria, por interdimensões de ser.
Os nossos vários corpos se imbricam para uma principal finalidade: beneficiar, filtrar e metabolizar a energia que por eles passa, e incorporá-la ao ser num processo interminável ( isto é vida ) de consciencialização ôntico-total. LA 98/03
Atravessaremos A Ponte
Escrever é passar-se a limpo em cada texto. Ler é se conhecer através do outro. E a compreensão entre nós, o outro e o mundo se faz entre o ''eu'' e o ''tu'' — tendo como palco o meio. O homem, o seu outro e o universo — eis o nosso campo de vida.
Somos um texto num contexto de intertextos. Começáramos para nos ultimarmos.
Saibamos ou não, somos escritores de um texto-nós-mesmos, durante cuja escritura vamos nos passando a limpo — isto é, vamos nos transcendendo, interminavelmente, de texto em texto, de sonho em sonho, de esperança em esperança.
O importante dessa escritura é irmos conhecendo a trama com que nós fomos tecidos — desde os mais remotos ancestrais até nós mesmos — sabendo que trazemos nos genes as mais distantes civilizações e que nós pertencemos ao acervo da Humanidade.
No final, com o Espírito Santo, dos dois lados conosco, atravessaremos a ponte. LA 98/03
Espelhos
Com meus olhos, vejo quem és. Com os teus, vês quem sou. E para vermos cada um a si é só sabermos que nos vemos no outro. E enquanto te vejo em mim, me vês em ti. E nesse vice-versa, vamos também vendo o universo e crescendo com seus avatares — verbalizados pelo Pão e pelo Vinho cósmicos: em que nossa consciência se reconhece e regenera, imortalizada pelo Espírito de Deus. LA 98/03
O Último Vagão
Quando passar o último vagão me atiro nele e vou-me... Vou-me embora. Vou-me sujo de humano e de mim mesmo. Sujo de mundo e sonho, vou-me embora.
Estive aqui, porque me achei aqui... Que ia embora era tudo o que sabia. Levo o que vim buscar, ou seja: nada. Se me vou outro, isto já é outra coisa...
Fiz o que um homem faz. E em vez de ter ou ser, fiz opção por ver e ver-me. Levo bens de visão, que não se vêem.
No mais, todo papel em branco, e os dias e as noites, enfim, tudo e tudo é meu: até passar o último vagão. LA 98/03
João-Bobo
A voz do joão-bobo é macia e bonita. Além do que, joão-bobo é um pássaro de belas plumas. O ''bobo'' talvez lhe tenha vindo por esse ar de quem não sabe das coisas ( ou finge não saber ).
Será que lhe acho a voz e a plumagem bonitas só por que joão é ''bobo''? LA 98/03
Poema Cristão
A grandeza é dada pela intensidade da fé, da dedicação, da esperança, dos sais do sonho que a fazem grandeza.
A grandeza não se faz apenas de coisas grandes ( é grande porventura a semente de mostarda? ) — mas, principalmente, de muitas coisas pequenas com o sentimento-certeza de se estar a Serviço. LA 98/03
Predicados Ou Poema Pagão
Era bela como um raio caído na cabeça do inimigo.
Era calma como a preguiça da mãe que não troca as fraldas molhadas da criança.
Era humilde como doente terminal já sem forças para falar.
Era amável como empregado promovido e ganhando três vezes mais.
Era grata como quem extermina o pai para livrá-lo de saber que a consorte o trocara por um terrível mancebo.
Era boa como alguém que mata o cão para o bebê poder dormir.
Era fiel como quem jamais adultera na mesma cama do cônjuge.
Era honesta como alguém que, achando na rua lixas de unha, pentes e grampos — procura — pela rádio — o legítimo dono.
Mas ( repito ) era sobretudo bela como a tromba d'água — que engole o carro daquele que te persegue.
Com tantos predicados, coube a Luisinho, o Exagerado, a honra, o dever de amá-la por três noites e meia — até as estrelas despencarem... LA 98/03
Honestidade
A honestidade desta hora é um álibi que lhe simula existência.
A falta de honestidade é perda social de identidade. É perda de coesão entre as pessoas. É perda de continuidade.
A honestidade é o azeite das inter-relações. É o parâmetro entre o homem social e o bandoleiro. LA 98/03
Perda
Mais a torto que a direito o amor agoniza, nesse momento, às portas dos albergues e nas sarjetas.
Infeliz geração, que deixou a economia e o ressentimento estrangular o que o humano sempre teve de sublime: de bom, de belo, de forte — de maior que sonhar.
Infeliz geração, que perdeu a capacidade de amar o amor no outro. LA 98/03
Auto-Impulsão
A vida impele a criatura a saltar de percepção em percepção por espiralados patamares.
A cada patamar a aparelhagem do ser estará mais antenada — bem mais conectada entre o humano e o divino.
O divino astralizará o barro, o húmus: o humano, já então religado aos trigais, às vinhas do universo.
Religado, sua fé construirá a estrada de volta para casa. LA 98/03
Flores Do Mal
O vírus do momento, contra o qual ainda não há vacina, é esse complexo de inferioridade.
Esse tal gera um segundo — o complexo de culpa. E ambos, bem misturados no cadinho das grandes misérias, geram a ferida sempre aberta do ressentimento.
Nasce no coração a urtiga do recíproco desejo de punição. 'Todos são culpados e ninguém tem culpa' — este o arrazoado para todas as doenças do desamor.
E entre inocentes ou culpados, muita noite e muita dor.
Pisa-se sobre o bom, o belo de viver. Cresce a competição e a gula que trocam a beleza, a graça, a sensibilidade pelos saltos de ferro de infinda guerra — covarde e desigual.
E vamos reconstruindo o nosso engano, o nosso drama em bicho-gente. LA 98/03
Lâmina E Flor
Atrás de um semblante duro, de um olhar perquiridor-judicativo — ainda pode ser que adivinhemos o que há.
Já por trás de um sorriso é mais prudente não traduzir de improviso o que lá pode estar, mas resguardar-se: apassivar-se... e tentar descobrir o valor de ''x''.
O sorriso é lâmina e flor. Bem social de consumo — tornado obrigatório. LA 98/03
Forno, Fornos, Fornicações
Se jogarmos um corno no forno — teremos um crime.
Se jogarmos apenas os seus cornos no forno — teremos um cheiro muito forte.
Se jogarmos um dos cônjuges no forno — teremos um crime.
Se jogarmos no forno o pensamento de um dos cônjuges — teremos um cheiro venéreo. LA 98/03
Estações
O outono colhe O inverno guarda A primavera se farta O verão reconstrói
Plantio Transformação Replantio
O tempo é a consciência em estações LA 98/03
Cinismo
O fruto amargo que alguém come ( e com o qual teima em sobreviver ) tem raízes em toda parte — traz os sais da loucura de toda a humanidade.
Os mais inteligentes, os mais sensatos, os mais probos, os mais dignos, os mais honestos, os mais justos dos homens deveriam ser os primeiros a cair de joelhos e suplicar perdão pela loucura de se terem como tais.
A humanidade toda geme, ainda às portas da caverna. E enquanto um só de nós gemer — todos estaremos gemendo.
— Mas são gemidos demais? — ironizará um cínico. De fato, os cínicos têm tido todas as razões. LA 98/03
Caminhos
No amor não há profissionais — só ''amadores''. Seus ais são banais-magistrais, sempre individuais com suspiros geracionais. Ais triviais-formais percorrendo ramais de um sempre querer mais.
Esse amor são caminhos de (se) amar, de (se) ver, (se) conhecer, (se) aprender no Outro. Exercícios de vida que se realizam com e no Outro.
Por tudo isso o amor é tão ridículo. Mais ridículo que o amor só mesmo a pretensão de não se querer passar por seus ridículos. LA 98/04
Novotema
O amor é sempre um canto que, descantado, ou bem provoca encanto ou então desencanto — meio-termo não há no amor, a não ser no meio-amor — aquele polissêmico, amor anêmico ou o próprio desamor.
Ou o amor escalpela e preia, ou passa cremes e penteia. O amor inteiro é raro e quase inverdadeiro. Não pertence ao poeta, tampouco ao milionário. Tem-no por vezes o pateta, e até os beiços do otário. O amor, a todo instante, depende menos do amante que do cenário... LA 98/04
Amour
O humor — um ingrediente imprescindível no amor. O humor embutido, implícito no amor — logo, humor natural, nascido gêmeo do amor. Amor-humorizado. Humor-amorizado. Amor-humor. Humor-amor: Amur-umor>amour. LA 98/04
Processo
Tendo reiteradamente a sensação da verdade enraizada em nós, acabaremos por conhecê-la, acabaremos, não por pensá-la, mas por vivê-la. Só por aí teremos o verdadeiro conhecimento.
Não pensar na verdade, mas conseguirmos vivê-la no quotidiano em nós — sabermos diuturnamente que o sentimento da verdade é já estar com ela, é só vivê-la. LA 98/04
Respostas
40% do material de uma resposta vêm de como e onde se pergunta. 30% são oriundos do meio e da cultura. 20%, — das ideologias e outras armações. Outros tantos, — dos ''podes- -e-não-podes'' de raiz. E 000,9% ficam por conta da pessoa. LA 98/04
Comida Cósmica
O trigo e as uvas no sempre sonho do devir — tornar-se pão e vinho, à luz dos astros, para a fome de muitos caminhantes.
O trigo e o vinho transmutados no alimento que regenera a criatura e, ao mesmo tempo, a imortaliza pelo Espírito de Deus.
E a graça desse contínuo processo: a beleza que desce como vinho, a verdade que nutre como pão — e as duas metabolizando o sonho dessa comida cósmica do ser. LA 98/04
Vale A Pena
Se o que ''é bom'' faz mal, então, mudemos de hábitos: adotemos o ''não-aquilo'' como ''amigo'' e como preferência ao que devemos ingerir.
Falar é fácil. Difícil é cumprir o que se fala. Mas o difícil quase sempre vale a pena, e é bom. Bom porque nos leva a fazer o que só muito poucos fazem. Propor-se a si mesmo o difícil muitas vezes é amar-se, e por que não também ao outro? LA 98/04
Trens
Não sei o que seria pior — se perder o trem ou tomá-lo errado. Não sei não. Só sei que, ante o descompasso do social com o caminho em nós da eterna busca de vida, nexo, finalidade — muitas vezes temos a primeira, outras a segunda daquelas duas sensações.
Uma sensação de mercadoria, de coisa-lixo — sensação suja de um viver sem um rumo interior, sem um nexo.
Para tomar o trem certo há que ser obediente ao sonho-mais lá em si — sim: um estar a bordo de si mesmo.
Quem percebe o abismo que traz em si tem seu grande motivo para guardar a fé. A fé que é ponte entre nós e o que esperamos. LA 98/04
Passos
Em seu andar-se por fora o homem tem tido um outro ritmo de seu andar-se por dentro.
Sua humanidade caminha a pé. Sua gostosa paranóia, esta voa.
Sua vocação para abismos tem sido grande. Sempre impotentes suas máquinas de terraplenar sua loucura.
Os seus pés não concordam em trilhar o mesmo caminho. Está sempre defasado seu andar interior do exterior.
O próprio amor ( que sabe acertar as coisas ) só costuma acontecer tarde. LA 98/04
Têmpera Do Espírito
Melhor que ter privilégios é ter implantado em alma o exato senso do que se quer.
É não vender a alma para o mundo: recorrer ao amor-próprio quanto ao que sabemos inegociável em nossa vida. É endireitar nossas veredas — serena, inabalavelmente em direção ao alvo: o caminho que nos leva à transcendência do mesquinho, do ver fossilizado em nós.
Melhor que encher as mãos de ferrugem é deixá-las livres e limpas para aparar a graça de construir o que nos falta e assim andarmos sobre as águas de nós mesmos. E recebermos a têmpera do Espírito para soarmos ( vasos Seus ) em consonância com a vida. LA 98/04
Mistério
O mistério das coisas é não haver mistério nas coisas. As coisas são ou não são. Não sabê-las é que nos dá o direito de criar o mistério. Além do que, o mistério é saboroso: aquele friozinho na barriga da curiosidade — combustível do desvendar pra se chegar ao Santuário de cada coisa, de cada ser.
O mistério é chamamento — voz sedutora, a convidar praquele cafezinho ( ou vinhozinho, para os românticos discretamente erotizados... ).
Tão sedutor que, como não existisse, o homem correu inventá-lo para si.
O mistério das coisas é a volúpia de sabê-las mais que elas mesmas em seu nexo parte-todo-universo.
O não-mistério das coisas é haver um profundo mistério nas coisas. Não saber isto é quase um mistério. Sabê-lo é criar as delícias de sondar o mistério. LA 98/04
Se É Bom!
I
Pensar é bom. Não pensar é divino. Ou achas que Deus perde tempo em pensar?
Fazer amor é bom. O problema é a laranja que não se pode descascar e chupar enquanto se faz amor.
Escrever é bom. Não escrever é divino. Isto porque Deus só escreve em linhas tortas.
Ter amante já foi chique — era charmoso ter amante. Hoje, é apanhar duplamente: do lado oficial e do lado oficioso, como ainda do próprio ver-se feito(a) ferozmente de besta por dois ou três orgasmos e todo aquele ritual de abobrinhas à milanesa.
II
Disse à mulher que ia escrever-lhe um poema em linhas tortas. — Por que, amor, em linhas tortas? — Pra que o poema seja verdadeiro como aquilo que Deus escreve. — Verdadeiro ou certo, amor? — Poema verdadeiro existe. Poema certo é outra coisa... Mas se eu o escrevesse em linhas tortas, certamente te faria um poema certo-verdadeiro — coisa digna de ti, amor.
( Pensando bem, fazer amor é bom — mesmo sem a laranja pra se chupar durante.)
Ler é bom. Não fazê-lo é divino. Não vás pensar que Deus é analfabeto, hem cara? ( Nem muito menos alfabetizado, né? )
Viver é bom. Não viver é Divino. Ou julgarás que Deus precisaria viver?
Deus deve adorar brincar. O problema são os homens que te poriam a arder no inferno: eternamente. Eternamente, meu velho. LA 98/04
Novaconsciência
A cada fim de época sobra o riso, apenas o riso.
O riso como resposta a todas as grandiosas, monumentais mentiras, sinfônicos equívocos. Unicamente o riso.
A consciência do riso. O coração do Universo deve esperar com paciência por essa novaconsciência.
O que tiver o riso como saldo de tudo o que viu — certamente terá tirado os pés da estrada dos mundanos e cedido para Alguém o trono do seu ego.
E viva o riso, ou o riso do riso — esse saldo sujo de mundo, sujo de humano — mas rico em riso. LA 98/04
Os Seus E Os Não-Seus
Se nossas veredas não dão para o caminho da comunhão, do serviço para e com os outros — certamente esse caminho não é o do Cristianismo.
Se não ajuntarmos com Ele, não cearmos em nosso coração com Ele, não metabolizarmos Sua palavra, não recebermos o Outro que Ele nos enviou — então não seremos dos Seus.
Se estamos Nele, vivemos no dia-a-dia a esperança de que a árvore da vida em nós floresça e nela frutifiquemos os sonhos que saltem para o lado de cá do que vivemos. LA 98/04
Amor E Humor
Há humor no amor? Se não houver o amor se desnamora.
Há amor no humor? Se não houver o afeto vira jacaré. LA 98/04
Continuação De Um Assunto
O amor? Bonitinho mas ordinário. Se fosse possível expurgá-lo de sua beleza vadia, o amor perderia as delícias da irracionalidade.
Por ser profundamente astuto e profundamente irracional é que o amor será sempre uma iguaria fina e ao mesmo tempo ordinária: deliciosamente ridícula e pornocarnalmente atraente.
Bom, bonito e deliciosamente ordinário: justiça seja refeita ao amor.
Calma, senhora! Falamos desse amor toma-lá-dá-cá. Desse amor saborosamente ordinário. LA 98/04
Tirania Ideológica
Na Idade-Média, pedia-se esmola assim: ''Por cada 10 moedas dadas, receba 1.000 ou mais dos céus''.
A graça existe, e feliz de quem busca viver sob seu teto. Daí a quererem vendê-la com altos juros celestiais para aquele que a compra — vai aquela diferença que há entre o cabo da enxada e a tromba do elefante.
Vender a graça foi coisa de ontem, é coisa de hoje e será ( com certeza ) também coisa de amanhã. Guardar-se das ideologias — além de saudável amor-próprio, é questão de sobrevivência. LA 98/04
Molas
A mola faz por nós a outra parte: faz o que não podemos ou não sabemos.
A mola é a nossa terceira mão. Ou a quarta, ou a quinta...
A mola faz por nós tudo o que só sabemos por um saber sem mãos.
Um primitivo talvez chamasse a mola de ser fantástico — gênio, ou mago, ou... nós a chamamos de mola.
Enfim, sabemos a mola alguma coisa em serviço ou a serviço.
Há muitas e muitas molas que nos ajudam sempre. Nem ligamos a elas — nem as vemos ou as sabemos existentes. Mas nem por isso deixam de nos servir: de fazer nossa vida possível.
Para que nossas vidas prosperassem ( e continuem prosperando ) sempre foram precisas inumeráveis criaturas-molas. Pessoas-molas que não vemos, nem sabemos existirem.
É hora de sermos gratos a cada uma dessas molas, que se fundem numa só grande mola: a Humanidade. LA 98/04
A Fruta E Seus Podres
— O que fazer com uma bela maçã apodrecida no miolo?
— Você come o bom das laterais, e joga fora o centro.
Não é isto porventura o que temos feito no convívio com as pessoas?
Não é isto o que fazemos com o que pensamos e sentimos e tudo o mais que vivemos?
O bom, o belo têm suas manchas. Mas nem por isso deixam de ser bom, de ser belo.
Alegria pura, beleza pura, verdade pura existem, sim, senhor. Porém, não para os nossos beiços — a não ser quando brincamos de filósofos cínicos.
O que é comível da fruta, só depois de parti-la é que sabemos.
Os fracos, os delicados não sabem repartir a fruta com seus possíveis bichos. Neste mundo não há prazer que não venha manchado. Porém não cultivemos caraminholas — fruamos os prazeres com suas manchas e tudo. LA 98/04
Os Pés E As Águas
Dentro do olho da tormenta a realidade se dissolve — o que se vê não conta, a não ser como doença.
Assim também nossa emoção há de estar disciplinada, há de caber em nossa mão para o narrado ter história que seja espelhos de histórias.
Todos temos de aprender a andar por sobre nossas águas — sermos donos do que sonhamos e cientes do que criamos. A vida dói porque tem pressa em nos ensinar o amor. LA 98/04
Partícipes
Participei de muitas peças embora nunca o soubesse. Entre a vigília e o inconsciente há todas as luzes e sombras do que fazemos e cremos, do que dormimos e sonhamos.
Há muito menos coisas que sabemos do que gostaríamos de acreditar. Daí o nosso ver normal não ter autoridade... O ver que finge não ver é muito mais rico e honesto.
Participamos de todas as loucuras ( e sanidades ) de toda a História — mergulhados nos genes de sermos humanos.
''Não julgueis'' não é um pedido religioso, mas ético-moral-antropológico. LA 98/04
Noite
Noite de trapos, uivos, canções, frios balidos de fim de mundo. Noite, não no lá longe, mas no aqui dentro em mim. Noite que anseia parir-me dia. Para, quem sabe, se destornar gostosamente em fingimento de estrela.
Noite? Que noite, se o sol decepa a glória das rosas?
Noite de cínicas trevas, mas que haverá de ser tragada pelo dia. LA 98/04
Casulos De Tempo
A rosa diz que não, mas ama o vento — ama deixar-se desfolhar numa única noite. Ama deixar-se amassar até cair morta de amor — despetaladamente.
Quando enterrei meu pai, meu pai estava morto. As rosas, que o cobriam, estas estavam vivas: tentavam me dizer que não apenas nelas, mas em tudo, havia vida — vida saindo de casulos que nossos olhos foram treinados para não ver.
Enterramos meu pai e as rosas, mas elas teimam em dizer o mesmo daquele dia — seja em qualquer buquê, seja em qualquer roseira: que a vida se veste e se reveste de tempo para viajar e repousar — ir da ribalta ao poscênio e vice-versa. LA 98/04
Duplos
Vivemos para morrer ou morremos para viver? Se não sabes, não te mates: ninguém sabe.
Os homens constroem frases para justificar suas conveniências. Constroem seus duplos de ida e volta, preocupados sempre em ir e vir por suas evasivas.
Filosofar é uma droga que seda, acalma — porque explica e permite ao ser explicar-se — pitadas de ópio para a doída inteligência.
Teologizar é outro ópio em cujas emanações falamos do antropológico como se fora de Deus. LA 98/04
Tema Antigo
Há festas na terra e festas no céu. A fé é a anfitriã da vida. A esperança é o viver em dimensões paralelas.
Viver e morrer são atos e entreatos, são ribalta e poscênio de uma só peça — em gamas e roupagem diferentes. LA 98/04
Afeto E Luz
Temos alucinação por explicar — desdobrar, ensinar. E sempre que o fazemos ( honestamente ): percebemos que tentávamos fazê-lo, principalmente, para nós mesmos.
Mas o melhor que fazemos vem da esfera do inexplicável: vem de passos que ousamos por veredas intuitivas — passadas pela experiência humana e retiradas da memória, lá do sabermos só precisarmos recordar...
É então que o difícil se nos torna força de prosseguir. É então que o difícil se nos torna o desafio de transcender as coisas e a nós.
É aí que descobrimos que o outro tem o afeto capaz de iluminar a nossa relação com a vida. LA 98/04
Sintaxes
Com a sintaxe trivial da razão não se ouve o conversar das pedras com as jovens flores, cuja beleza não mora no tempo, tampouco em nossos olhos — mas no infinito da graça de seu jamais saber.
Com a sintaxe oficial da razão no se vê o mais que os seres e as coisas trabalham em sua essência, nem se entende que a soma de 2 + 1 é igual ao que será não precisar ser nada disso, nem coisa alguma.
Com a sintaxe normal da razão a fé não seria a estrada que já nos confere o dom de ter chegado. O amor não seriao que nos devemos. Nem a esperançao antegozo do que se espera.
Sim, entre a trivial-normal e a oficial, há a sintaxe paralógica: multiversal — e é por aí que o homem verbo-supera-se, num salto de ser a ser-se. LA 98/04
Espelho
A realidade exterior espelha a interior, o mais é saber ver especularmente: irmos tirando desse baú-enigma o que nos falta para o processo de conhecer e conhecer-nos. LA 98/04
Forma-Além
Mais ilusório é o que sonhamos ou aquilo que tocamos?
Um sonho tem mil formas e a realidade se deforma. Precisamos da forma para entender o sonho, e do sonho para moldarmos a forma. Esses dois são como óvulo e sêmen. Sem eles a realidade seria ( estática ) não criativa.
A ternura da rosa é tão real como a pedra. ( Isso, se a rosa for rosa e a pedra for pedra.)
Essas coisas aprendemos lá num sem tempo em nós, onde as coisas existem já de um modo além de si. LA 98/04
A Serviço
Quando a verdade é convidada a mentira não comparece. E a solução não é só uma palavra.
Sem honestidade conviver é banditismo, coabitar é pistolagem.
Quando a verdade é convidada a vida se torna viável.
( Verdade, seu Pilatos, é o coração voltado para o que é naquilo que deve ser.)
Quando a verdade é convidada o homem está a serviço da vida. LA 98/04
''Louco''
Para ser filho ilegítimo da nossa vida diária — basta um homem assumir a realidade como sonho e trabalhá-la nele para conhecê-la e a si. Basta dedicar-se à arte que, ao invés de dinheiro, dá crescimento: a poesia, para ser visto ( sim: isto é antigo! ), visto como diferente e chamado de louco.
Um preço ameno para se ser o que se ama ser.
Um preço merecido para se fazer aquilo a que uma pessoa se dedicou dezenas de anos — sendo agora um retorno, uma paga a si mesma. LA 98/04
O Que Fazer?
Sempre engasgado de palavras, o que fazer, senão dispô-las ao pensamento de senti-las, ao sentimento de pensá-las antes de filtrá-las na alma e, assim, dar forma e vida ao poema?
O que fazer senão escrever sempre o penúltimo texto? LA 98/04
Mamíferos Superiores
— Como vai a pornocracia? — Bem: babilonicamente exuberante, suspensa. Feios putos, belas putas: tão feios quanto rapaces, tão belas quanto caríssimas. Belas. A cada uma delas — mil estátuas: uma em cada posição... Haja...
Feios putos, belas putas — exuberância suspensa, luxúria levitante.
Feios putos, belas putas o mundo pilotando.
Feios putos, belas putas — em semprieterna pornocracia, mamíferos de luxo comendo do melhor, bebendo do excelente, morando requintado, divertindo-se com o magnífico, comprando o astronômico. E tudo isso, — sem culpas. Ou, se raríssimo sentidas, levissimamente sentidas — rapidamente absolvidas: perdoadas com autoridade — apagadas para sempre, placidamente transformadas em risotas sem memória.
Feios putos, belas putas enterrando no seu gozo os que eles chamam de incapazes.
Feios putos, belas putas o mundo pilotando. LA 98/04
Contra Inveja E Urucubaca
O cônjuge que te invejam — te seja abençoado. O carro que te cobiçam — seja bom , dure bastante. A profissão — adquira um brilho-charme. A casa — sempre alegre e sob a Graça. O dinheiro — se multiplique. Os orgasmos — bem prolongados e vidrados.
E a tais invejosos se deseja lhes seja a inveja aumentada em proporção geométrica até que se parta ao meio seu ''Titanic''. Assim suceda. Amém. LA 98/04
Os Baixos Tangem Os Tempos
O intelectual é 10% de vocação ( uma predisposição ) e o mais é bunda. E haja-a! De ferro, de pedra ou de fibras de carbono.
E o resto é luta entre cansaços e descansos — ou seja a arte de saber descansar entre cansaços.
Muitos autores ( prosa e verso ) sentindo tais cansaços pígios ( ou nadegais ) de mistura com os fricotes e chiliques de seu tempo — berram-nos as suas dores ( em dilúvios de cantos ) sem sequer suspeitar que tais dores ( entre seus altos e baixos ) venham sobretudo de baixo. LA 98/04
Pastoreio
Em pastos nem sempre verdejantes o tempo é o pastor do ser.
Por entre as estações passamos enquanto somos perpassados por elas.
Tempo e ser, ser e tempo — carne e alma de um mesmo elo-consciência de ser. LA 98/04
Alvatarozes
Estamos ( eu e outros ) à espera de um manual que saia da oralidade e se imprima e nos ensine o que e como escrever. ( Se Deus quiser, logo sai. ) Enquanto não, vamos escrevinhando, órfãos de luz, nossos coisemas e proesias.
Enquanto não, estaremos à espera dos alvatarozes — cruzamento de avatares com albatrozes — que nos dêem seu rumo e rota e mesmo o timbre e o tom do seu grasnar: já que esses tais agem como se soubessem o caminho e desejariam levássemos a sério as suas gurunóias. LA 98/04
Digressões
Aquilo que é no ar ou na pedra mais a maneira espanto de dizê-lo — isso é poesia.
Poesia é o tempo de dizer a coisa antes que o essencial dela voe.
( A rosa cai e ri sua inocência — maior que sua vida. )
Poesia é aquilo que as coisas têm para nos dar. LA 98/04
Violência
Jogaram muito veneno em caixas d'água aqueles que se serviram de um interesse acrítico da violência. Afins geram afins e é aterrador ver essa brutalidade do cinema e/ou da telinha a desserviço do humano — incorporada a cada célula de multidões perdidas em si mesmas — sem rumo e onde pisar: a não ser dentro de um nexo-norte de vida que dê para onde o sangue escorre por entre a indiferença e o sujo do chão. LA 98/04
Água Parada
Pecado é perder a consciência do valor e sentido das coisas.
Doença e sanidade são irmãs gêmeas. Aquela — de emoções exacerbadas — as próprias águas do ser. Esta — de emoções controladas — o andar do ser por sobre elas.
Sermos senhores das nossas emoções — termos consciência e controle do ego — eis o que importa para o nosso autodomínio e interação sadia com as pessoas e a realidade.
A falta de amar e amar-se ( sim: amar os outros e a si ) — isto é doença das bravas, água parada e salobra da emoção. LA 98/04
Poema Das Perguntas
Amor, lealdade, bondade, misericórdia, empatia, justiça, verdade... não têm cotação na Bolsa e é claro que são vistos como desnecessários. Sem essa reciprocidade, como fica o humano do homem? Que é do homem sem essas relações que fazem o homem crescer, esgalhar-se em si e entre si e subir e subir-se pela árvore da vida e realizar-se enquanto pessoa e cidadão e enquanto cúmplice sonhador dentro do sonho-Quem? Sem solidariedade há estrada para Emaús? E ouvindo aquela Voz será que os nossos corações se aqueceriam? E em vindo a noite, nós O convidaríamos a entrar e cear conosco? LA 98/04
Diversidade
O Estado será sempre incapaz de responder às aspirações da sociedade. Daí a necessidade de se incentivar o valor das diferenças — impulsionando a metáfora da diversidade: como beleza e verdade de um vestíbulo que se fecha, de um novo tempo que se abre. LA 98/04
Não Adianta
Os absurdos, as frustrações do dia-a-dia dão ao mundo o seu real sentido: o de uma loucura-realidade que só presta e serve ao momento — por isso mesmo em calafrios de mudança.
Absurdos, frustrações com respingos do humano em nós: esperanças e esperanças.
Durante a nossa vida toda estamos aprendendo a lidar com os nossos fantasmas e os fantasmas dos outros.
Coragem! Não há por que desanimar. Mesmo porque não adianta. LA 98/04
Lanças
As mentiras, as verdades — é tudo verdade-mentira. As mentiras têm suas verdades, as verdades as suas mentiras. Todas as coisas são uma mentira-verdade ou uma verdade-mentira.
Os paladinos buscam quebrar lanças por aquilo que nem a vida faz questão de saber.
Amanhã virá outro dia reluzindo sobre outras mentiras, sobre outras verdades. E nós, igualmente, seremos outros filtros-pessoas ou outras gamas-seres dessa realidade-sendo.
Por vezes é bem difícil ousar não ousar. LA 98/04
Ruflos
A verdade nos é dada de um modo bem fugaz — tão fugaz, que retê-la seria, assim, como reter só por umas poucas penas um pássaro em seu vôo...
A verdade nos é dada em ruflos rápidos até termos ( na mão ) seu vôo inteiro. LA 98/0
Poroso A Ti
Poroso a Ti, meu Pai, recebo a Tua graça — o Teu amor-presença.
Escorre em minha boca a água desta sede, que sinto até as funduras do meu ser. Escorre em minha boca a água desta sede de ser-Te em mim — de jamais ser sozinho, um pedaço de Ti. Um pedaço que deve se fundir e confundir com meu inteiro ser — já, então, transformado, renascido e eternizado pelos Teus genes celestiais plantados na minha sede em cuja boca escorre a vida em estado de água.
Seria esta água, meu Pai, a sede de ter um pai de carne e osso cuja presença me desse o que venho buscando em Ti, mas que nem em eu criança, nem em moço e em adulto Tu me pudeste a mim dar?
Poroso a Ti, meu Pai, recebo a Tua graça — o Teu amor-presença. E espero o que me falta com a fé em bandeja de ouro. LA 98/04
Periscópio-Endoscópio
Não quero o segredo da palavra — este deixo para outros. Quero a sua cumplicidade para raptarmos juntos a esperança que toma sol junto ao velho que já morreu. Para, assim, roubarmos juntos o lingerie da realidade. Para mudarmos juntos o mundo: as coisas só podem mudar quando são vistas — então as descobrimos outras.
Não quero o segredo da palavra — quero o segredo que transforma a palavra em periscópio-endoscópio na recriação expressional das coisas. LA 98/04
Jugal-Dual
Mulher que não fala mal do marido logo pede divórcio. O normal é mulher falar mal. Falam por exigência cultural.
Falam por transferência trivial. Falam porque falar mal não faz mal. Falam porque o conjugal, além de cultural, é soma de amor negativo geracional.
A mulher fala mal, muito mal do marido. Falar bem seria espantosamente anormal.
A mulher fala mal porque, em geral, ambos se fazem mal.
As delícias desta vida seria desaculturar a necessidade jugal: transferir o sexual e o afetual dual para o crescimento pessoal e grupal-impessoal — sem o mal jugal-dual.
O jugal é que é o mal: os que o adoram falam mal. LA 98/04
Presenças
Desligados os aparelhos, a sós na vasta sala, dá para ouvir os objetos e suas emanações. Entre os rumores do silêncio — sinto presenças fugindo em revoadas, em vôos sem pássaros... Um ciciar de sedas, cetins do tempo. Do tempo entrando pelo limiar do destempo — roçando luzes e sombras. Murmúrios de luz interior, talvez de lembranças antigas. Murmúrios de sentimentos, talvez de coisas vividas. Murmúrios de pensamentos desvestidos de palavras — sem forças para acasalar-se no ar e descer por nós dentro, madurinhos de afeto — aspirando e expirando trêmulos... Trêmulos, trêmu... trê... LA 98/04
O Rosto De Cydonia
Sempre bela a utopia, porém, inexistente como o ''Rosto de Cydonia'' — só um jogo de luz e sombras. Final de mais uma delícia de não estarmos sozinhos, de não sermos os únicos cultores da esperança.
A utopia será sempre o sonho ainda não acordado. Nela reside a força e a luz do caminhar de muitos. Por ela muito sonho já despertou verdade.
A utopia é o útero do sonho. LA 98/04
No Barbeiro
— O menino Bill era ''chegado'', chegadíssimo. Moço, continuou mais ''perto'' ainda. Governador, tornou-se chegado-entrão: chegado, lambido e entrão. Presidente, morava em casa: era de dentro, sempre bem alojado: comensal de celestiais delícias. Frio não passava — falo dos frios da vida: dispunha de raros agasalhos — do couro que sonhasse.
Dizem que nem em menino dera tanto trabalho para mamãe. Nem mesmo em moço preocupara tanto a esposa. Tinha um avantajado saxofone e se deliciava quando lho tocavam. Tinha perucas para todas as ocasiões e estações — perucas de primeiríssima que, animadas, o procuravam por si mesmas — cheias de um frio existencial... Sua mulher defendia e incentivava o uso de tais petrechos, a qualquer hora do dia ou da noite. Segundo mulheres russas ( deu no Jornal ) ficavam bem para ele ( esses artigos ) — motivo até de orgulho, segundo algumas. Quem lhes dera... seu Presidente também...
Só aqueles da oposição fingiam não gostar de suas perucagens e das suas modulações de saxista. Sim: era tudo fingimento bem feito.
Apreciava demais frutas frescas, e as comia a qualquer hora — durante o expediente ou fora dele. Às estagiárias, tratava-as com jeito especial.
Quando ameaçavam tirar-lhe o Regalo, o homem mobilizava seu arsenal e jogava bombas e demônios na cabeça de um pobre povo que tinha um presidente que gostava de apanhar ( contanto que fosse de tabela ).
O homem era tão chegado, que nada lhe chegava. Sua mulher lhe segurava as pontas ( e ele a cintura... ). Aí o senhor já viu, né, doutor... com essa compreensão toda, quem é que deixa escapar? ........................................................................................... — Tá pronto? — Prontinho, doutor. — Toma: este é pelo cabelo e este pela história do Tal Chegado... — Deus lhe pague, doutor. — Tomara que sim. LA 98/04
Chumbo Afunda, Dejetos Bóiam
Hoje, as ideologias são inócuas — já ninguém acredita nelas, como já não se confia em homens. A história, a vivência, a maturidade, o sofrimento têm mudado o cenário do humano: lobo e cordeiro todo homem os é a seu modo. Dizer ou não dizer vai se tornando mais e mais a mesma coisa. E isto, longe de gerar indiferença, gera, antes, responsabilidade. Uma responsabilidade cada vez mais pessoal — criando o espaço de uma liberdade que há de ser gerida sempre com muita lucidez e emoção controlada — aquele andar-se sobre as próprias águas como expressão de quem se quer ver senhor do que faz e do que sonha — porque só assim será livre em si mesmo e entre os homens. LA 98/04
Senso E Consenso
Quanto mais longe a cultura de um povo, tanto mais próxima de nós — talvez porque, em nosso ser, já fomos-somos ''aquilo'' — em nossos genes ônticos. Estamos mais ligados com o homem de todas as épocas do que jamais imaginamos. Nós somos a humanidade do homem caminhando na Humanidade de todas as épocas. A verdadeira dimensão humana é dada pelo Espírito ao nosso espírito. Somos um só Caminho com veredas que não sabem sê-Lo. Em nosso recordar profundo sabemos coisas que só Deus sabe que sabemos. Ao homem cabe ( pela sua vontade e pelo dom do Espírito ) endireitar suas veredas. LA 98/04
Semprice ( Herança Do Mesmo Mesmo )
Sempre as mesmas fantasias perseguidas por fantasmas a correr pelos porões e recâmaras de nós.
As mesmas vicissitudestrincando a nossa porcelana, quebrando antigos cristais que espelhavam caros sonhos.
Sempre o brilho e o furor das festas, e o gosto final de nada. O mesmo ir só pelo ire o voltar de riso frouxo.
( Sempre o sempre do mesmo mesmo na mesmíssima semprice de ensimesmar-se desse sempre no mesmo sempre e sempre mesmo.)
As mesmas fragilidades ( mesmo silêncio e solidão ). Mesmo desejo sempre adiado para o talvez-amanhã.
Sempre as mesmas negligências, sempre as mesmas veleidades: as complacentes mentiras, as mornas meias-verdades.
Sempre aquele ''hei de mudar: amar o outro e a mim mesmo''. Sempre a justificativa cortando como navalha.
Sempre o olhar na outra margem, sempre o sorriso social. Sempre os uivos da esperança nas noites do coração.
Sempre a boca em oração e o coração jogando vôlei. Sempre o esquecido relembrado pelas delícias de esquecê-lo.
Sempre o mesmo delicioso hábito de não nos vermos dentre aqueles que julgamos e medimos e pesamos.
Sempre o ver direcionadopara os lados de nós mesmos. Sempre o ''eu'' a conjugar os seus verbos sem o ''tu''.
Sempre as mesmas necessidades tomando as mesmas mamadeiras. Sempre as ocultas muletas da mesma tola suficiência. LA 98/04
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