Normal, Normais E O Sonho-Mais

 

TEXTOS-2

 

Emigração

 

O momento é tristicômico.

Tanto faz o homem dizer

como calar —

já não diz nem cala nada.

 

Seu silêncio ou palavra

já não significam.

E nessa crise de gente,

nessa falta de pessoa —

o significado das palavras

está suspenso.

 

As palavras,

que começaram a soar

sem significar, —

tiraram férias coletivas:

deixaram os seus clones

em seu lugar.

 

Sentido, rumo e nexo

emigraram do homem:

do homem-mundo,

foram para uma plataforma

no espaço —

entre o planeta Humano

e o planeta Chacota.

LA 98/03

 

 

 

 

Fantasmas

 

Se a mosca zumbe à tua volta,

já dobras o jornal

tentando eliminá-la.

 

Mas se os fantasmas sobem,

descem as longas escadas

entre o porão e o sótão,

o que fazer?

 

Minha mãe me mandava

olhá-los bem de frente —

dizendo-me que, assim,

eles corriam todos...

 

Mandar, ela mandava,

porém, jamais o fiz.

Temia que, ao fazê-lo,

eles me perseguissem

com suas mãos geladas

toque-tocando as minhas costas

e escondendo-se debaixo

da minha cama e dentro

do guarda-roupa e malas.

 

Quando cresci mais um pouco,

temia igualmente olhá-los,

assim de frente, e espantá-los

para sempre da minha casa.

Para sempre

seria tempo demais...

 

Se porventura os perdesse,

que é, quem é que me restaria?

Quem é que iria brincar

comigo de dia e, de noite,

me fazer cobrir a cabeça?

Que amigos me restariam?

Com quem conversaria?

De que iria sentir

aquele medo tão bom?

 

Me acostumara tanto

com as histórias de mistério

de minha tia Ofélia,

que, quando ela se foi,

ficaram-me em seu lugar

o medo dos fantasmas

de suas frias histórias.

 

Mais tarde descobri

( já sem aquele medo bom )

que os piores fantasmas

são aqueles que perturbam

o relacionamento

entre as pessoas.

São aqueles

que os adultos se criam

para se aterrorizarem

reciprocamente.

LA 98/03

 

 

 

 

O Silêncio De Deus

 

O silêncio de Deus

é a maior presença d’Ele.

Um silêncio que pesa

sobre a consciência social.

E o homem sabe, de soslaio,

quando despreza

um caminho de luz

para pisar veredas

feitas por pés mortais.

 

O silêncio de Deus

é o momento aberto em amor

em que todos os seus amados

têm um conchego quente

de falar e ser ouvidos,

de ouvir e arrazoar.

É a graça à espera do perdido.

São os braços abertos

à fome, à sede de justiça.

 

O silêncio de Deus

é o momento ruidoso

em que o homem deve humilhar-se

e consultar no coração

o norte daquela cidade

cuja lâmpada é o Cordeiro.

O silêncio de Deus

é pausa e chamamento

para refletir e assumirmos.

LA 98/03

 

 

 

 

Coisa Séria

 

Coisa séria

é o suicídio,

a extrema unção.

Tudo o mais

pode tornar-se humor.

 

O adultério

poderá se transformar

no gozo de abandonar

quem o pratica.

 

A mentira

pode ser as delícias

daquele

que finge acreditar.

 

Os advérbios

“honesta, sinceramente”

podem suscitar um sorriso

de claro enigma.

 

A frase “Eu te amo”

pode ser seguida ( enquanto

se mexe o cafezinho ) de

“Eu também”.

 

“Falemos sério” —

poderá ser seguida

de uma frase adversativa:

“mas com risadas”.

 

“O amor se foi” —

poderá paralelizar-se

com uma ironia rural:

“Antes ele que meu boi”.

 

“O cônjuge foi traído,

abandonado, roubado”.

Ele foi. Outros milhões,

que nem suspeitam, — serão.

 

“Minha vida

tá nas suas mãos, doutor”.

“Descanse. Agora, também sou

agente funerário”.

 

Também outra coisa séria

é faltar água ou luz.

Daí a vela e o fósforo

terem o seu cantinho.

LA 98/03

 

 

 

 

Comercial

 

Fantasmas, aparições

são os que têm as contas

nas Suíças do mundo.

Já quem fica com o dinheiro

são os colarinhos-brancos,

tão cuidadosamente engomados

que, se os puserdes contra a luz, —

vereis neles a marca-d'água...

 

Fantasmas,

aparições

têm aumentado como gafanhotos

bíblicos.

Já os colarinhos-brancos

não estão, nem precisam estar

em proporção direta com esse aumento.

 

Por isso tais colarinhos

são cada vez mais brancos —

talvez pela qualidade

do sabão que usam,

não é, dª. Amélia?

    Ah, sim, porque eles só usam

Fantasma —

o sabão que dá o branco

dos colarinhos mais brancos.

Fantasma lava,

não só tais colarinhos,

como também a vida

de quem os porta.

Fantasma os põe em paz.

Elegantes e em paz.

Mas Fantasma

não é pra qualquer um.

LA 98/03

 

 

 

 

Circuito Da Criação

 

Quando você intui

está ( quase sempre )

sendo original.

Quando pensa,

geralmente está preso

a um molde-modo de pensar.

Com a intuição não acontece isso

porque ela ainda não dispõe de moldes

como acontece com o pensamento.

Ela é assim como a luz

cujo corpo é o movimento.

É luz que vem de muito alto,

como toda gama

de alto conhecimento.

O pensamento é a ferramenta

que move a realidade.

A intuição é a luz

que ilumina tal ferramenta,

ao mesmo tempo que revela

os desvãos do mistério...

 

O pensamento se organiza na idéia,

a intuição o faz no mental

( cuja fluidez e plástica extrapolam

qualquer noção de espaço-tempo )

de onde haure plasma-força para obter

um corpo fluido e efêmero —

algo muito volátil,

homeopaticamente

captado pela palavra.

 

Sentir-pensar-intuir-mentar —

dinamizados pelo Espírito,

são o circuito da criação.

 

Aquele que desenvolve uma aparelhagem

capaz de distinguir tais elementos

agindo de per si e em conjunto —

é um mediatizador consciente:

este pode conhecer-se mais lucidamente

enquanto vai conhecendo o mundo, os homens,

o universo e seus degraus.

 

Ver-se agindo, fazendo, criando:

isto é consciência e controle do ego,

além de constante aprendizado,

e profundo, cada vez mais profundo

sobrepor-se a tudo isso.

Isto, desde as coisas mais simples —

como acender um fósforo,

até as mais complexas —

como andar por aí

com aparelhagem própria,

por interdimensões de ser.

 

Os nossos vários corpos se imbricam

para uma principal finalidade:

beneficiar, filtrar e metabolizar

a energia que por eles passa,

e incorporá-la ao ser

num processo interminável

( isto é vida )

de consciencialização ôntico-total.

LA 98/03

 

 

 

 

Atravessaremos A Ponte

 

Escrever é passar-se a limpo

em cada texto.

Ler é se conhecer

através do outro.

E a compreensão

entre nós, o outro e o mundo

se faz entre o ''eu'' e o ''tu'' —

tendo como palco o meio.

O homem, o seu outro e o universo —

eis o nosso campo de vida.

 

Somos um texto num contexto

de intertextos.

Começáramos para nos ultimarmos.

 

Saibamos ou não,

somos escritores

de um texto-nós-mesmos,

durante cuja escritura

vamos nos passando a limpo —

isto é, vamos nos transcendendo,

interminavelmente,

de texto em texto,

de sonho em sonho,

de esperança em esperança.

 

O importante dessa escritura

é irmos conhecendo a trama

com que nós fomos tecidos —

desde os mais remotos ancestrais

até nós mesmos —

sabendo que trazemos nos genes

as mais distantes civilizações

e que nós pertencemos

ao acervo da Humanidade.

 

No final, com o Espírito Santo,

dos dois lados conosco,

atravessaremos a ponte.

LA 98/03

 

 

 

 

Espelhos

 

Com meus olhos, vejo quem és.

Com os teus, vês quem sou.

E para vermos cada um a si

é só sabermos que nos vemos no outro.

E enquanto te vejo em mim, me vês em ti.

E nesse vice-versa,

vamos também vendo o universo

e crescendo com seus avatares —

verbalizados

pelo Pão e pelo Vinho cósmicos:

em que nossa consciência

se reconhece e regenera,

imortalizada

pelo Espírito de Deus.

LA 98/03

 

 

 

 

O Último Vagão

 

Quando passar o último vagão

me atiro nele e vou-me... Vou-me embora.

Vou-me sujo de humano e de mim mesmo.

Sujo de mundo e sonho, vou-me embora.

 

Estive aqui, porque me achei aqui...

Que ia embora era tudo o que sabia.

Levo o que vim buscar, ou seja: nada.

Se me vou outro, isto já é outra coisa...

 

Fiz o que um homem faz. E em vez de ter

ou ser, fiz opção por ver e ver-me.

Levo bens de visão, que não se vêem.

 

No mais, todo papel em branco, e os dias

e as noites, enfim, tudo e tudo é meu:

até passar o último vagão.

LA 98/03

 

 

 

 

João-Bobo

 

A voz do joão-bobo

é macia e bonita.

Além do que, joão-bobo

é um pássaro de belas plumas.

O ''bobo'' talvez lhe tenha vindo

por esse ar

de quem não sabe das coisas

( ou finge não saber ).

 

Será que lhe acho a voz e a plumagem

bonitas

só por que joão é ''bobo''?

LA 98/03

 

 

 

 

Poema Cristão

 

A grandeza

é dada pela intensidade

da fé,

da dedicação,

da esperança,

dos sais do sonho

que a fazem grandeza.

 

A grandeza

não se faz apenas

de coisas grandes

( é grande porventura

a semente de mostarda? ) —

mas, principalmente,

de muitas coisas pequenas

com o sentimento-certeza

de se estar a Serviço.

LA 98/03

 

 

 

Predicados

Ou

Poema Pagão

 

Era bela como um raio

caído na cabeça

do inimigo.

 

Era calma

como a preguiça da mãe

que não troca as fraldas molhadas

da criança.

 

Era humilde

como doente terminal

já sem forças para falar.

 

Era amável

como empregado promovido

e ganhando três vezes mais.

 

Era grata

como quem extermina o pai

para livrá-lo de saber

que a consorte o trocara

por um terrível mancebo.

 

Era boa

como alguém que mata o cão

para o bebê poder dormir.

 

Era fiel

como quem jamais adultera

na mesma cama do cônjuge.

 

Era honesta

como alguém que, achando na rua

lixas de unha, pentes e grampos —

procura —  pela rádio —

o legítimo dono.

 

Mas ( repito ) era sobretudo bela

como a tromba d'água —

que engole o carro

daquele que te persegue.

 

Com tantos predicados,

coube a Luisinho, o Exagerado,

a honra, o dever de amá-la

por três noites e meia —

até as estrelas despencarem...

LA 98/03

 

 

 

 

Honestidade

 

A honestidade desta hora

é um álibi

que lhe simula existência.

 

A falta de honestidade

é perda social

de identidade.

É perda

de coesão entre as pessoas.

É perda

de continuidade.

 

A honestidade é o azeite

das inter-relações.

É o parâmetro

entre o homem social

e o bandoleiro.

LA 98/03

 

 

 

 

Perda

 

Mais a torto que a direito

o amor agoniza,

nesse momento,

às portas dos albergues

e nas sarjetas.

 

Infeliz geração,

que deixou a economia

e o ressentimento

estrangular o que o humano

sempre teve de sublime:

de bom, de belo, de forte —

de maior que sonhar.

 

Infeliz geração,

que perdeu a capacidade

de amar o amor no outro.

LA 98/03

 

 

 

 

Auto-Impulsão

 

A vida impele a criatura

a saltar

de percepção em percepção

por espiralados patamares.

 

A cada patamar

a aparelhagem do ser

estará mais antenada —

bem mais conectada

entre o humano e o divino.

 

O divino astralizará

o barro, o húmus: o humano,

já então religado

aos trigais, às vinhas

do universo.

 

Religado,

sua fé construirá a estrada

de volta para casa.

LA 98/03

 

 

 

 

Flores Do Mal

 

O vírus do momento,

contra o qual

ainda não há vacina,

é esse complexo

de inferioridade.

 

Esse tal gera um segundo —

o complexo de culpa.

E ambos, bem misturados

no cadinho das grandes misérias,

geram a ferida sempre aberta

do ressentimento.

 

Nasce no coração a urtiga

do recíproco desejo

de punição.

'Todos são culpados

e ninguém tem culpa' —

este o arrazoado

para todas as doenças

do desamor.

 

E entre inocentes ou culpados,

muita noite e muita dor.

 

Pisa-se sobre o bom,

o belo de viver.

Cresce a competição e a gula

que trocam a beleza,

a graça, a sensibilidade

pelos saltos de ferro

de infinda guerra —

covarde e desigual.

 

E vamos reconstruindo

o nosso engano,

o nosso drama em bicho-gente.

LA 98/03

 

 

 

 

 

Lâmina E Flor

 

Atrás de um semblante duro,

de um olhar

perquiridor-judicativo —

ainda pode ser

que adivinhemos o que há.

 

Já por trás de um sorriso

é mais prudente

não traduzir de improviso

o que lá pode estar,

mas resguardar-se:

apassivar-se...

e tentar descobrir

o valor de ''x''.

 

O sorriso é lâmina

e flor.

Bem social

de consumo —

tornado obrigatório.

LA 98/03

 

 

 

 

Forno, Fornos, Fornicações

 

Se jogarmos um corno no forno —

teremos um crime.

 

Se jogarmos apenas os seus cornos

no forno —

teremos um cheiro muito forte.

 

Se jogarmos um dos cônjuges

no forno —

teremos um crime.

 

Se jogarmos no forno

o pensamento de um dos cônjuges —

teremos um cheiro venéreo.

LA 98/03

 

 

 

 

Estações

 

O outono colhe

O inverno guarda

A primavera se farta

O verão reconstrói

 

Plantio

Transformação

Replantio

 

O tempo

               é a consciência

                                        em estações

                                        LA 98/03

 

 

 

 

Cinismo

 

O fruto amargo que alguém come

( e com o qual

teima em sobreviver )

tem raízes em toda parte —

traz os sais da loucura

de toda a humanidade.

 

Os mais inteligentes,

os mais sensatos,

os mais probos,

os mais dignos,

os mais honestos,

os mais justos dos homens

deveriam ser os primeiros

a cair de joelhos

e suplicar perdão

pela loucura

de se terem como tais.

 

A humanidade toda geme,

ainda às portas da caverna.

E enquanto um só de nós gemer —

todos estaremos gemendo.

 

    Mas são gemidos demais? —

ironizará um cínico.

De fato, os cínicos

têm tido todas as razões.

LA 98/03

 

 

 

 

Caminhos

 

No amor

não há profissionais —

só ''amadores''.

Seus ais

são banais-magistrais,

sempre individuais

com suspiros geracionais.

Ais

triviais-formais

percorrendo ramais

de um sempre querer mais.

 

Esse amor

são caminhos

de (se) amar,

de (se) ver,

(se) conhecer,

(se) aprender

no Outro.

Exercícios de vida

que se realizam

com e no Outro.

 

Por tudo isso

o amor é tão ridículo.

Mais ridículo que o amor

só mesmo a pretensão

de não se querer passar

por seus ridículos.

LA 98/04

 

 

 

 

Novotema

 

O amor é sempre um canto

que, descantado,

ou bem provoca encanto

ou então desencanto —

meio-termo não há no amor,

a não ser no meio-amor —

aquele polissêmico,

amor anêmico

ou o próprio desamor.

 

Ou o amor escalpela e preia,

ou passa cremes e penteia.

O amor inteiro

é raro e quase inverdadeiro.

Não pertence ao poeta,

tampouco ao milionário.

Tem-no por vezes o pateta,

e até os beiços do otário.

O amor, a todo instante,

depende menos do amante

que do cenário...

LA 98/04

 

 

 

 

Amour

 

O humor —

um ingrediente

imprescindível no amor.

O humor embutido,

implícito

no amor —

logo, humor natural,

nascido gêmeo

do amor.

Amor-humorizado.

Humor-amorizado.

Amor-humor.

Humor-amor:

Amur-umor>amour.

LA 98/04

 

 

 

 

Processo

 

Tendo reiteradamente

a sensação da verdade

enraizada em nós,

acabaremos por conhecê-la,

acabaremos, não por pensá-la,

mas por vivê-la.

Só por aí

teremos o verdadeiro

conhecimento.

 

Não pensar na verdade,

mas conseguirmos vivê-la

no quotidiano em nós —

sabermos diuturnamente

que o sentimento da verdade

é já estar com ela,

é só vivê-la.

LA 98/04

 

 

 

 

Respostas

 

40% do material de uma resposta

vêm de como e onde se pergunta.

30% são oriundos

do meio e da cultura.

20%, — das ideologias

e outras armações.

Outros tantos, — dos ''podes-

-e-não-podes'' de raiz.

E 000,9%

ficam por conta

da pessoa.

LA 98/04

 

 

 

 

 

 

Comida Cósmica

 

O trigo e as uvas

no sempre sonho do devir —

tornar-se pão e vinho,

à luz dos astros,

para a fome de muitos caminhantes.

 

O trigo e o vinho transmutados

no alimento que regenera

a criatura e, ao mesmo tempo, a imortaliza

pelo Espírito de Deus.

 

E a graça

desse contínuo processo:

a beleza que desce como vinho,

a verdade que nutre como pão —

e as duas metabolizando o sonho

dessa comida cósmica do ser.

LA 98/04

 

 

 

 

Vale A Pena

 

Se o que ''é bom'' faz mal,

então, mudemos de hábitos:

adotemos o ''não-aquilo''

como ''amigo''

e como preferência

ao que devemos ingerir.

 

Falar é fácil.

Difícil é cumprir o que se fala.

Mas o difícil

quase sempre vale a pena,

e é bom.

Bom porque nos leva a fazer

o que só muito poucos fazem.

Propor-se a si mesmo o difícil

muitas vezes é amar-se,

e por que não também ao outro?

LA 98/04

 

 

 

 

Trens

 

Não sei o que seria pior —

se perder o trem

ou tomá-lo errado.

Não sei não.

Só sei que, ante o descompasso

do social

com o caminho em nós

da eterna busca

de vida, nexo, finalidade —

muitas vezes temos a primeira,

outras a segunda

daquelas duas sensações.

 

Uma sensação de mercadoria,

de coisa-lixo —

sensação suja de um viver

sem um rumo interior,

sem um nexo.

 

Para tomar o trem certo

há que ser obediente

ao sonho-mais lá em si —

sim: um estar a bordo de si mesmo.

 

Quem percebe o abismo

que traz em si

tem seu grande motivo

para guardar a fé.

A fé que é ponte

entre nós e o que esperamos.

LA 98/04

 

 

 

 

 

Passos

 

Em seu andar-se por fora

o homem tem tido um outro ritmo

de seu andar-se por dentro.

 

Sua humanidade caminha

a pé.

Sua gostosa paranóia,

esta voa.

 

Sua vocação para abismos

tem sido grande.

Sempre impotentes suas máquinas

de terraplenar

sua loucura.

 

Os seus pés não concordam

em trilhar o mesmo caminho.

Está sempre defasado

seu andar interior

do exterior.

 

O próprio amor

( que sabe acertar as coisas )

só costuma acontecer

tarde.

LA 98/04

 

 

 

 

Têmpera Do Espírito

 

Melhor que ter privilégios

é ter implantado em alma

o exato senso

do que se quer.

 

É não vender a alma

para o mundo:

recorrer ao amor-próprio

quanto ao que sabemos inegociável

em nossa vida.

É endireitar nossas veredas —

serena, inabalavelmente

em direção ao alvo:

o caminho que nos leva

à transcendência do mesquinho,

do ver fossilizado em nós.

 

Melhor que encher as mãos de ferrugem

é deixá-las livres e limpas

para aparar a graça

de construir o que nos falta

e assim andarmos sobre as águas

de nós mesmos.

E recebermos

a têmpera do Espírito

para soarmos ( vasos Seus )

em consonância com a vida.

LA 98/04

 

 

 

 

Mistério

 

O mistério das coisas

é não haver mistério nas coisas.

As coisas são ou não são.

Não sabê-las

é que nos dá o direito

de criar o mistério.

Além do que,

o mistério é saboroso:

aquele friozinho na barriga

da curiosidade —

combustível do desvendar

pra se chegar ao Santuário

de cada coisa,

de cada ser.

 

O mistério é chamamento —

voz sedutora,

a convidar

praquele cafezinho

( ou vinhozinho,

para os românticos

discretamente erotizados... ).

 

Tão sedutor

que,

como não existisse,

o homem correu inventá-lo

para si.

 

O mistério das coisas

é a volúpia de sabê-las mais

que elas mesmas

em seu nexo parte-todo-universo.

 

O não-mistério das coisas

é haver um profundo mistério

nas coisas.

Não saber isto é quase um mistério.

Sabê-lo

é criar as delícias

de sondar o mistério.

LA 98/04

 

 

 

 

Se É Bom!

 

          I

 

Pensar é bom.

Não pensar é divino.

Ou achas que Deus

perde tempo em pensar?

 

Fazer amor é bom.

O problema é a laranja

que não se pode descascar

e chupar

enquanto se faz amor.

 

Escrever é bom.

Não escrever é divino.

Isto porque Deus só escreve

em linhas tortas.

 

Ter amante já foi chique —

era charmoso ter amante.

Hoje, é apanhar duplamente:

do lado oficial

e do lado oficioso,

como ainda do próprio ver-se

feito(a) ferozmente de besta

por dois ou três orgasmos

e todo aquele ritual

de abobrinhas à milanesa.

 

                     II

 

Disse à mulher

que ia escrever-lhe um poema em linhas tortas.

    Por que, amor, em linhas tortas?

    Pra que o poema seja verdadeiro

como aquilo que Deus escreve.

    Verdadeiro ou certo, amor?

    Poema verdadeiro existe.

Poema certo é outra coisa...

Mas se eu o escrevesse em linhas tortas,

certamente te faria

um poema certo-verdadeiro —

coisa digna de ti, amor.

 

( Pensando bem,

fazer amor é bom —

mesmo sem a laranja

pra se chupar durante.)

 

Ler é bom.

Não fazê-lo é divino.

Não vás pensar que Deus

é analfabeto, hem cara?

( Nem muito menos

alfabetizado, né? )

 

Viver é bom.

Não viver é Divino.

Ou julgarás que Deus

precisaria viver?

 

Deus deve adorar brincar.

O problema são os homens

que te poriam a arder

no inferno: eternamente.

Eternamente, meu velho.

LA 98/04

 

 

 

 

Novaconsciência

 

 

A cada fim de época

sobra o riso,

apenas o riso.

                                                              

O riso como resposta

a todas as grandiosas,

monumentais mentiras,

sinfônicos equívocos.

Unicamente o riso.

 

A consciência do riso.

O coração do Universo

deve esperar com paciência

por essa novaconsciência.

 

O que tiver o riso

como saldo de tudo o que viu —

certamente terá tirado os pés

da estrada dos mundanos

e cedido para Alguém

o trono do seu ego.

 

E viva o riso,

ou o riso do riso —

esse saldo

sujo de mundo,

sujo de humano —

mas rico em riso.

LA 98/04

 

 

 

 

Os Seus E Os Não-Seus

 

Se nossas veredas

não dão para o caminho

da comunhão,

do serviço para e com os outros —

certamente esse caminho

não é o do Cristianismo.

 

Se não ajuntarmos com Ele,

não cearmos

em nosso coração

com Ele,

não metabolizarmos

Sua palavra,

não recebermos o Outro

que Ele nos enviou —

então não seremos dos Seus.

 

Se estamos Nele,

vivemos no dia-a-dia a esperança

de que a árvore da vida em nós

floresça

e nela frutifiquemos os sonhos

que saltem

               para o lado de cá

do que vivemos.

LA 98/04

 

 

 

 

Amor E Humor

 

Há humor no amor?

Se não houver

o amor se desnamora.

 

Há amor no humor?

Se não houver

o afeto vira jacaré.

LA 98/04

 

 

 

 

Continuação De Um Assunto

 

O amor?

Bonitinho mas ordinário.

Se fosse possível expurgá-lo

de sua beleza vadia,

o amor perderia as delícias

da irracionalidade.

 

 Por ser

          profundamente astuto

e profundamente irracional

é que o amor será sempre

uma iguaria fina

e ao mesmo tempo ordinária:

deliciosamente ridícula

e pornocarnalmente

atraente.

 

Bom, bonito

e deliciosamente

ordinário:

justiça seja refeita

ao amor.

 

Calma, senhora!

Falamos desse amor

toma-lá-dá-cá.

Desse amor saborosamente

ordinário.

LA 98/04

 

 

 

 

Tirania Ideológica

 

Na Idade-Média,

pedia-se esmola assim:

''Por cada 10 moedas dadas,

receba 1.000 ou mais dos céus''.

 

A graça existe,

e feliz de quem busca

viver sob seu teto.

Daí a quererem vendê-la

com altos juros celestiais

para aquele que a compra —

vai aquela diferença

que há entre o cabo da enxada

e a tromba do elefante.

 

Vender a graça

foi coisa de ontem,

é coisa de hoje

e será ( com certeza )

também coisa de amanhã.

Guardar-se das ideologias —

além de saudável amor-próprio,

é questão de sobrevivência.

LA 98/04

 

 

 

 

Molas

 

A mola faz por nós

a outra parte:

faz o que não podemos

ou não sabemos.

 

A mola

é a nossa terceira mão.

Ou a quarta, ou a quinta...

 

A mola faz por nós

tudo o que só sabemos

por um saber sem mãos.

 

Um primitivo

talvez chamasse a mola

de ser fantástico —

gênio, ou mago, ou...

nós a chamamos de mola.

 

Enfim, sabemos a mola

alguma coisa

em serviço ou a serviço.

 

Há muitas e muitas molas

que nos ajudam sempre.

Nem ligamos a elas —

nem as vemos

ou as sabemos existentes.

Mas nem por isso

deixam de nos servir:

de fazer nossa vida

possível.

 

Para que nossas vidas prosperassem

( e continuem prosperando )

sempre foram precisas

inumeráveis criaturas-molas.

Pessoas-molas que não vemos,

nem sabemos existirem.

 

É hora de sermos gratos

a cada uma dessas molas,

que se fundem

numa só grande mola:

a Humanidade.

LA 98/04

 

 

 

 

A Fruta E Seus Podres

 

    O que fazer

com uma bela maçã

apodrecida no miolo?

 

    Você come o bom das laterais,

e joga fora o centro.

 

Não é isto porventura

o que temos feito

no convívio com as pessoas?

 

Não é isto o que fazemos

com o que pensamos e sentimos

e tudo o mais que vivemos?

 

O bom, o belo

têm suas manchas.

Mas nem por isso deixam

de ser bom, de ser belo.

 

Alegria pura,

beleza pura,

verdade pura

existem, sim, senhor.

Porém, não para os nossos beiços —

a não ser quando brincamos

de filósofos cínicos.

 

O que é comível da fruta,

só depois de parti-la

é que sabemos.

 

Os fracos, os delicados

não sabem repartir a fruta

com seus possíveis bichos.

Neste mundo

não há prazer

que não venha manchado.

Porém não cultivemos

caraminholas —

fruamos os prazeres

com suas manchas e tudo.

LA 98/04

 

 

 

 

Os Pés E As Águas

 

Dentro do olho da tormenta

a realidade se dissolve —

o que se vê não conta,

a não ser como doença.

 

Assim também nossa emoção

há de estar disciplinada,

há de caber em nossa mão

para o narrado ter história

que seja espelhos de histórias.

 

Todos temos de aprender

a andar por sobre nossas águas —

sermos donos do que sonhamos

e cientes do que criamos.

A vida dói porque tem pressa

em nos ensinar o amor.

LA 98/04

 

 

 

 

Partícipes

 

Participei de muitas peças

embora nunca o soubesse.

Entre a vigília e o inconsciente

há todas as luzes e sombras

do que fazemos e cremos,

do que dormimos e sonhamos.

 

Há muito menos coisas que sabemos

do que gostaríamos de acreditar.

Daí o nosso ver normal

não ter autoridade...

O ver que finge não ver

é muito mais rico e honesto.

 

Participamos

de todas as loucuras

( e sanidades )

de toda a História —

mergulhados nos genes

de sermos humanos.

 

''Não julgueis''

não é um pedido religioso,

mas ético-moral-antropológico.

LA 98/04

 

 

 

 

Noite

 

Noite de trapos,

uivos, canções,

frios balidos

de fim de mundo.

Noite, não no lá longe,

mas no aqui dentro

em mim.

Noite que anseia

parir-me dia.

Para, quem sabe,

se destornar

gostosamente

em fingimento

de estrela.

 

Noite? Que noite,

se o sol decepa

a glória

das rosas?

 

Noite de cínicas trevas,

mas que haverá

de ser tragada pelo dia.

LA 98/04

 

 

 

 

Casulos De Tempo

 

A rosa diz que não,

mas ama o vento —

ama deixar-se desfolhar

numa única noite.

Ama deixar-se amassar

até cair

morta

de amor —

despetaladamente.

 

Quando enterrei meu pai,

meu pai estava morto.

As rosas, que o cobriam,

estas estavam vivas:

tentavam me dizer

que não apenas nelas,

mas em tudo,

havia vida —

vida saindo de casulos

que nossos olhos

foram treinados para não ver.

 

Enterramos meu pai e as rosas,

mas elas teimam em dizer

o mesmo daquele dia —

seja em qualquer buquê,

seja em qualquer roseira:

que a vida se veste

e se reveste de tempo

para viajar

e repousar —

ir da ribalta ao poscênio

e vice-versa.

LA 98/04

 

 

 

 

Duplos

 

Vivemos para morrer

ou morremos para viver?

Se não sabes,

não te mates:

ninguém sabe.

 

Os homens constroem frases

para justificar

suas conveniências.

Constroem seus duplos

de ida e volta,

preocupados sempre

em ir e vir

por suas evasivas.

 

Filosofar é uma droga

que seda, acalma —

porque explica

e permite ao ser explicar-se —

pitadas de ópio

para a doída inteligência.

 

Teologizar é outro ópio

em cujas emanações

falamos do antropológico

como se fora de Deus.

LA 98/04

 

 

 

 

Tema Antigo

 

Há festas na terra

e festas no céu.

A fé

é a anfitriã da vida.

A esperança é o viver

em dimensões paralelas.

 

Viver e morrer

são atos e entreatos,

são ribalta e poscênio

de uma só peça —

em gamas e roupagem

diferentes.

LA 98/04

 

 

 

 

Afeto E Luz

 

Temos alucinação

por explicar —

desdobrar,

ensinar.

E sempre que o fazemos

( honestamente ): percebemos

que tentávamos fazê-lo,

principalmente,

para nós mesmos.

 

Mas o melhor que fazemos

vem da esfera do inexplicável:

vem de passos que ousamos

por veredas intuitivas —

passadas

pela experiência humana

e retiradas da memória,

lá do sabermos

só precisarmos recordar...

 

É então que o difícil

se nos torna força

de prosseguir.

É então que o difícil

se nos torna o desafio

de transcender as coisas

e a nós.

 

É aí que descobrimos

que o outro tem o afeto

capaz de iluminar

a nossa relação com a vida.

LA 98/04

 

 

 

 

Sintaxes

 

Com a sintaxe trivial da razão

não se ouve

o conversar das pedras

com as jovens flores,

cuja beleza

não mora no tempo,

tampouco em nossos olhos —

mas no infinito da graça

de seu jamais saber.

 

Com a sintaxe oficial da razão

no se vê o mais

que os seres e as coisas

trabalham em sua essência,

nem se entende que a soma

de 2 + 1

é igual ao que será

não precisar ser nada disso,

nem coisa alguma.

 

Com a sintaxe normal da razão

a fé não seria a estrada

que já nos confere o dom

de ter chegado.

O amor não seria

o que nos devemos.

Nem a esperança

o antegozo do que se espera.

 

Sim, entre a trivial-normal

e a oficial,

há a sintaxe paralógica:

multiversal —

e é por aí que o homem

verbo-supera-se,

num salto de ser a ser-se.

LA 98/04

 

 

 

 

Espelho

 

A realidade exterior

espelha a interior,

o mais é saber ver

especularmente:

irmos tirando

desse baú-enigma

o que nos falta

para o processo

de conhecer e conhecer-nos.

LA 98/04

 

 

 

 

Forma-Além

 

Mais ilusório é o que sonhamos

ou aquilo que tocamos?

 

Um sonho tem mil formas

e a realidade se deforma.

Precisamos da forma

para entender o sonho,

e do sonho

para moldarmos a forma.

Esses dois

são como óvulo e sêmen.

Sem eles

a realidade seria ( estática )

não criativa.

 

A ternura da rosa

é tão real como a pedra.

( Isso, se a rosa for rosa

e a pedra for pedra.)

 

Essas coisas aprendemos

lá num sem tempo em nós,

onde as coisas existem

já de um modo além de si.

LA 98/04

 

 

 

 

A Serviço

 

Quando a verdade é convidada

a mentira não comparece.

E a solução

não é só uma palavra.

 

Sem honestidade

conviver é banditismo,

coabitar é pistolagem.

 

Quando a verdade é convidada

a vida se torna viável.

 

( Verdade, seu Pilatos,

é o coração

voltado para o que é

naquilo que deve ser.)

 

Quando a verdade é convidada

o homem

está a serviço da vida.

LA 98/04

 

 

 

 

''Louco''

 

Para ser filho ilegítimo

da nossa vida diária —

basta um homem assumir

a realidade como sonho

e trabalhá-la nele

para conhecê-la e a si.

Basta dedicar-se à arte

que, ao invés de dinheiro,

dá crescimento: a poesia,

para ser visto ( sim: isto é antigo! ),

visto como diferente

e chamado de louco.

 

Um preço ameno

para se ser

o que se ama ser.

 

Um preço merecido

para se fazer

aquilo a que uma pessoa

se dedicou dezenas de anos —

sendo agora um retorno,

uma paga a si mesma.

LA 98/04

 

 

 

 

O Que Fazer?

 

Sempre engasgado de palavras,

o que fazer, senão dispô-las

ao pensamento de senti-las,

ao sentimento de pensá-las

antes de filtrá-las na alma

e, assim, dar forma e vida ao poema?

 

O que fazer

senão escrever sempre

o penúltimo texto?

LA 98/04

 

 

 

 

Mamíferos Superiores

 

    Como vai a pornocracia?

    Bem: babilonicamente

exuberante,

suspensa.

Feios putos, belas putas:

tão feios quanto rapaces,

tão belas quanto caríssimas.

Belas. A cada uma delas —

mil estátuas:

uma em cada posição...

Haja...

 

Feios putos, belas putas —

exuberância suspensa,

luxúria levitante.

 

Feios putos, belas putas

o mundo pilotando.

 

Feios putos, belas putas —

em semprieterna pornocracia,

mamíferos de luxo

comendo do melhor,

bebendo do excelente,

morando requintado,

divertindo-se com o magnífico,

comprando o astronômico.

E tudo isso, — sem culpas.

Ou, se raríssimo sentidas,

levissimamente sentidas —

rapidamente absolvidas:

perdoadas com autoridade —

apagadas para sempre,

placidamente transformadas

em risotas sem memória.

 

Feios putos, belas putas

enterrando no seu gozo

os que eles chamam de incapazes.

 

Feios putos, belas putas

o mundo pilotando.

LA 98/04

 

 

 

 

Contra Inveja E Urucubaca

 

O cônjuge que te invejam —

te seja abençoado.

O carro que te cobiçam —

seja bom , dure bastante.

A profissão —

adquira um brilho-charme.

A casa —

sempre alegre e sob a Graça.

O dinheiro —

se multiplique.

Os orgasmos —

bem prolongados

e vidrados.

 

E a tais invejosos se deseja

lhes seja a inveja

aumentada em proporção geométrica

até que se parta ao meio

seu ''Titanic''.

Assim suceda.

Amém.                                     

LA 98/04

 

 

 

 

Os Baixos Tangem Os Tempos

 

O intelectual

é 10%

de vocação

( uma predisposição )

e o mais é bunda.

E haja-a! De ferro, de pedra

ou de fibras de carbono.

 

E o resto é luta

entre cansaços

e descansos —

ou seja a arte

de saber descansar

entre cansaços.

 

Muitos autores ( prosa e verso )

sentindo tais cansaços pígios

( ou nadegais )

de mistura

com os fricotes e chiliques

de seu tempo —

berram-nos as suas dores

( em dilúvios de cantos )

sem sequer suspeitar

que tais dores

( entre seus altos e baixos )

venham sobretudo de baixo.

LA 98/04

 

 

 

 

Pastoreio

 

Em pastos

nem sempre verdejantes

o tempo

é o pastor do ser.

 

Por entre as estações

passamos

enquanto somos perpassados

por elas.

 

Tempo e ser,

ser e tempo —

carne e alma

de um mesmo elo-consciência

de ser.

LA 98/04

 

 

 

 

Alvatarozes

 

Estamos ( eu e outros )

à espera de um manual

que saia da oralidade

e se imprima e nos ensine

o que e como escrever.

( Se Deus quiser, logo sai. )

Enquanto não,

vamos escrevinhando,

órfãos de luz,

nossos coisemas e proesias.

 

Enquanto não,

estaremos à espera

dos alvatarozes —

cruzamento de avatares

com albatrozes —

que nos dêem seu rumo e rota

e mesmo o timbre e o tom do seu grasnar:

já que esses tais agem

como se soubessem o caminho

e desejariam levássemos

a sério

as suas gurunóias.

LA 98/04

 

 

 

 

Digressões

 

Aquilo que é

no ar

ou na pedra

mais a maneira espanto

de dizê-lo —

isso é poesia.

 

Poesia

é o tempo de dizer a coisa

antes que o essencial dela voe.

 

( A rosa cai

e ri sua inocência —

maior que sua vida. )

 

Poesia

é aquilo que as coisas têm

para nos dar.

LA 98/04

 

 

 

 

Violência

 

Jogaram muito veneno

em caixas d'água

aqueles que se serviram

de um interesse acrítico

da violência.

Afins geram afins

e é aterrador

ver essa brutalidade

do cinema

e/ou da telinha

a desserviço do humano —

incorporada a cada célula

de multidões

perdidas em si mesmas —

sem rumo e onde pisar:

a não ser dentro de um nexo-norte

de vida

que dê para onde o sangue escorre

por entre a indiferença e o sujo do chão.

LA 98/04

 

 

 

 

Água Parada

 

Pecado

é perder a consciência

do valor

e sentido das coisas.

 

Doença e sanidade

são irmãs gêmeas.

Aquela —

de emoções exacerbadas —

as próprias águas do ser.

Esta —

de emoções controladas —

o andar do ser por sobre elas.

 

Sermos senhores

das nossas emoções —

termos consciência e controle do ego —

eis o que importa

para o nosso autodomínio

e interação sadia

com as pessoas e a realidade.

 

A falta de amar e amar-se

( sim: amar os outros e a si ) —

isto é doença das bravas,

água parada e salobra

da emoção.

LA 98/04

 

 

 

 

Poema Das Perguntas

 

Amor, lealdade,

bondade, misericórdia,

empatia, justiça,

verdade...

não têm cotação na Bolsa

e é claro que são vistos

como desnecessários.

Sem essa reciprocidade,

como fica

o humano do homem?

Que é do homem

sem essas relações

que fazem o homem

crescer,

esgalhar-se em si

e entre si

e subir e subir-se

pela árvore da vida

e realizar-se

enquanto pessoa e cidadão

e enquanto cúmplice sonhador

dentro do sonho-Quem?

Sem solidariedade

há estrada para Emaús?

E ouvindo aquela Voz

será que os nossos corações

se aqueceriam?

E em vindo a noite,

nós O convidaríamos

a entrar e cear conosco?

LA 98/04

 

 

 

 

Diversidade

 

O Estado será sempre incapaz

de responder às aspirações

da sociedade.

Daí a necessidade

de se incentivar

o valor das diferenças —

impulsionando a metáfora

da diversidade:

como beleza e verdade

de um vestíbulo que se fecha,

de um novo tempo que se abre.

LA 98/04

 

 

 

 

Não Adianta

 

Os absurdos,

as frustrações do dia-a-dia

dão ao mundo

o seu real sentido:

o de uma loucura-realidade

que só presta e serve ao momento —

por isso mesmo

em calafrios de mudança.

 

Absurdos,

frustrações

com respingos do humano em nós:

esperanças e esperanças.

 

Durante a nossa vida toda

estamos aprendendo a lidar

com os nossos fantasmas

e os fantasmas dos outros.

 

Coragem!

Não há por que desanimar.

Mesmo porque não adianta.

LA 98/04

 

 

 

 

Lanças

 

As mentiras, as verdades —

é tudo verdade-mentira.

As mentiras têm suas verdades,

as verdades as suas mentiras.

Todas as coisas

são uma mentira-verdade

ou uma verdade-mentira.

 

Os paladinos

buscam quebrar lanças

por aquilo que nem a vida

faz questão de saber.

 

Amanhã virá outro dia

reluzindo sobre outras mentiras,

sobre outras verdades.

E nós, igualmente, seremos

outros filtros-pessoas

ou outras gamas-seres

dessa realidade-sendo.

 

Por vezes é bem difícil

ousar não ousar.

LA 98/04

 

 

 

 

Ruflos

 

A verdade nos é dada

de um modo bem fugaz —

tão fugaz,

que retê-la

seria, assim, como reter

só por umas poucas penas

um pássaro em seu vôo...

 

A verdade nos é dada

em ruflos rápidos

até

termos ( na mão ) seu vôo inteiro.

LA 98/0

 

 

 

 

Poroso A Ti

 

Poroso a Ti, meu Pai,

recebo a Tua graça —

o Teu amor-presença.

 

Escorre em minha boca

a água desta sede,

que sinto

até as funduras do meu ser.

Escorre em minha boca

a água desta sede

de ser-Te em mim —

de jamais ser sozinho,

um pedaço de Ti.

Um pedaço

que deve se fundir

e confundir

com meu inteiro ser —

já, então, transformado,

renascido e eternizado

pelos Teus genes celestiais

plantados na minha sede

em cuja boca escorre

a vida em estado de água.

 

Seria

esta água, meu Pai,

a sede de ter um pai

de carne e osso

cuja presença me desse

o que venho buscando em Ti,

mas que nem em eu criança,

nem em moço e em adulto

Tu me pudeste a mim dar?

 

Poroso a Ti, meu Pai,

recebo a Tua graça —

o Teu amor-presença.

E espero o que me falta

com a fé em bandeja de ouro.

LA 98/04

 

 

 

 

Periscópio-Endoscópio

 

Não quero o segredo da palavra —

este deixo para outros.

Quero a sua cumplicidade

para raptarmos juntos

a esperança que toma sol

junto ao velho que já morreu.

Para, assim, roubarmos juntos

o lingerie da realidade.

Para mudarmos juntos

o mundo:

as coisas só podem mudar

quando são vistas —

então as descobrimos outras.

 

Não quero o segredo da palavra —

quero o segredo

que transforma a palavra

em periscópio-endoscópio

na recriação expressional

das coisas.

LA 98/04

 

 

 

 

Jugal-Dual

 

Mulher que não fala mal

do marido

logo pede divórcio.

O normal

é mulher falar mal.

Falam por exigência

cultural.

 

Falam por transferência trivial.

Falam porque falar mal

não faz mal.

Falam porque o conjugal,

além de cultural,

é soma de amor negativo

geracional.

 

A mulher fala mal,

muito mal

do marido.

Falar bem

seria espantosamente

anormal.

 

A mulher fala mal

porque, em geral,

ambos se fazem mal.

 

As delícias desta vida

seria desaculturar

a necessidade jugal:

transferir o sexual

e o afetual dual

para o crescimento pessoal

e grupal-impessoal —

sem o mal jugal-dual.

 

O jugal é que é o mal:

os que o adoram

falam mal.

LA 98/04

 

 

 

 

Presenças

 

Desligados os aparelhos,

a sós na vasta sala,

dá para ouvir os objetos

e suas emanações.

Entre os rumores do silêncio —

sinto presenças fugindo

em revoadas, em vôos sem pássaros...

Um ciciar de sedas,

cetins do tempo.

Do tempo

entrando pelo limiar

do destempo —

roçando luzes e sombras.

Murmúrios de luz interior,

talvez de lembranças antigas.

Murmúrios de sentimentos,

talvez de coisas vividas.

Murmúrios de pensamentos

desvestidos de palavras —

sem forças para acasalar-se

no ar

e descer por nós dentro,

madurinhos de afeto —

aspirando e expirando trêmulos...

Trêmulos, trêmu... trê...

LA 98/04

 

 

 

 

O Rosto De Cydonia

 

Sempre bela a utopia,

porém, inexistente

como o ''Rosto de Cydonia'' —

só um jogo de luz e sombras.

Final de mais uma delícia

de não estarmos sozinhos,

de não sermos os únicos

cultores da esperança.

 

A utopia será sempre

o sonho ainda não acordado.

Nela reside a força e a luz

do caminhar de muitos.

Por ela muito sonho

já despertou verdade.

 

A utopia

é o útero do sonho.

LA 98/04

 

 

 

 

No Barbeiro

 

    O menino Bill era ''chegado'',

chegadíssimo.

Moço, continuou mais ''perto'' ainda.

Governador, tornou-se chegado-entrão:

chegado, lambido e entrão.

Presidente, morava em casa: era de dentro,

sempre bem alojado: comensal

de celestiais delícias.

Frio não passava —

falo dos frios da vida:

dispunha de raros agasalhos —

do couro que sonhasse.

 

Dizem que nem em menino

dera tanto trabalho para mamãe.

Nem mesmo em moço preocupara tanto a esposa.

Tinha um avantajado saxofone

e se deliciava quando lho tocavam.

Tinha perucas para todas as ocasiões

e estações —

perucas de primeiríssima que, animadas,

o procuravam por si mesmas —

cheias de um frio existencial...

Sua mulher defendia e incentivava

o uso de tais petrechos,

a qualquer hora do dia ou da noite.

Segundo mulheres russas ( deu no Jornal )

ficavam bem para ele ( esses artigos ) —

motivo até de orgulho, segundo algumas.

Quem lhes dera... seu Presidente também...

 

Só aqueles da oposição

fingiam não gostar de suas perucagens

e das suas modulações de saxista.

Sim: era tudo fingimento bem feito.

 

Apreciava demais frutas frescas,

e as comia a qualquer hora —

durante o expediente ou fora dele.

Às estagiárias, tratava-as com jeito especial.

 

Quando ameaçavam tirar-lhe o Regalo,

o homem mobilizava seu arsenal

e jogava bombas e demônios

na cabeça de um pobre povo

que tinha um presidente que gostava de apanhar

( contanto que fosse de tabela ).

 

O homem era tão chegado,

que nada lhe chegava.

Sua mulher lhe segurava as pontas

( e ele a cintura... ).

Aí o senhor já viu, né, doutor...

com essa compreensão toda,

quem é que deixa escapar?

...........................................................................................

    Tá pronto?

    Prontinho, doutor.

    Toma: este é pelo cabelo

e este pela história do Tal Chegado...

    Deus lhe pague, doutor.

    Tomara que sim.

LA 98/04

 

 

 

 

Chumbo Afunda, Dejetos Bóiam

 

Hoje, as ideologias são inócuas —

já ninguém acredita nelas,

como já não se confia em homens.

A história, a vivência, a maturidade,

o sofrimento

têm mudado o cenário do humano:

lobo e cordeiro

todo homem os é a seu modo.

Dizer ou não dizer vai se tornando

mais e mais a mesma coisa.

E isto, longe de gerar indiferença,

gera, antes, responsabilidade.

Uma responsabilidade cada vez mais

pessoal —

criando o espaço de uma liberdade

que há de ser gerida sempre

com muita lucidez

e emoção controlada —

aquele andar-se sobre as próprias águas

como expressão de quem se quer ver senhor

do que faz e do que sonha —

porque só assim será livre

em si mesmo e entre os homens.

LA 98/04

 

 

 

 

Senso E Consenso

 

Quanto mais longe a cultura de um povo,

tanto mais próxima de nós —

talvez porque, em nosso ser,

já fomos-somos ''aquilo'' —

em nossos genes ônticos.

Estamos mais ligados

com o homem de todas as épocas

do que jamais imaginamos.

Nós somos a humanidade do homem

caminhando na Humanidade

de todas as épocas.

A verdadeira dimensão humana

é dada pelo Espírito

ao nosso espírito.

Somos um só Caminho

com veredas que não sabem sê-Lo.

Em nosso recordar profundo

sabemos coisas

que só Deus sabe que sabemos.

Ao homem cabe

( pela sua vontade

e pelo dom do Espírito )

endireitar suas veredas.

LA 98/04

 

 

 

                     

Semprice

            ( Herança Do Mesmo Mesmo )

 

Sempre as mesmas fantasias

perseguidas por fantasmas

a correr pelos porões

e recâmaras de nós.

 

As mesmas vicissitudes

trincando a nossa porcelana,

quebrando antigos cristais

que espelhavam caros sonhos.

 

Sempre o brilho e o furor das festas,

e o gosto final de nada.

O mesmo ir só pelo ir

e o voltar de riso frouxo.

 

( Sempre o sempre do mesmo mesmo

na mesmíssima semprice

de ensimesmar-se desse sempre

no mesmo sempre e sempre mesmo.)

 

As mesmas fragilidades

( mesmo silêncio e solidão ).

Mesmo desejo sempre adiado

para o talvez-amanhã.

 

Sempre as mesmas negligências,

sempre as mesmas veleidades:

as complacentes mentiras,

as mornas meias-verdades.

 

Sempre aquele ''hei de mudar:

amar o outro e a mim mesmo''.

Sempre a justificativa

cortando como navalha.

 

Sempre o olhar na outra margem,

sempre o sorriso social.

Sempre os uivos da esperança

nas noites do coração.

 

Sempre a boca em oração

e o coração jogando vôlei.

Sempre o esquecido relembrado

pelas delícias de esquecê-lo.

 

Sempre o mesmo delicioso

hábito de não nos vermos

dentre aqueles que julgamos

e medimos e pesamos.

 

Sempre o ver direcionado

para os lados de nós mesmos.

Sempre o ''eu'' a conjugar

os seus verbos sem o ''tu''.

 

Sempre as mesmas necessidades

tomando as mesmas mamadeiras.

Sempre as ocultas muletas

da mesma tola suficiência.

LA 98/04