NEM ISTO NEM AQUILO
Textos 1
Laerte Antonio
Nem isto nem aquilo, mas
uma vereda de soslaio,
um caminho que não leve,
mas onto-seja —
não trilho de lugar-chegar,
e, sim, brilho de ser em ser-se:
brilho a auto-escavar-se
com a crística consciência
de sabermos que éramos nela
(desde o princípio)
essa luz que nos vertebra a vida.
Nem isto nem aquilo,
sequer Aquiles
(nem o mundo e suas glórias,
nem a parte que as negue),
mas algo-liberdade —
nem isto nem aquilo.
Algo que nos ajude a passar
por debaixo do pêndulo...
Algo que nos livre de ser
escravos orgulhosos
da nossa liberdade.
Nem isto nem aquilo,
mas um outro caminho
(semovente)
que se esgueire da dialética
com os seus pobres pés de sal
pisando as próprias águas...
Nem isto nem aquilo,
mas outra coisa em nós
em que já nos saibamos
caminhos-caminhantes
de um sentimento lúcido
de sermos mais que o sonho
entre partir-chegar.
Nem isto nem aquilo,
mas algo-espanto
de (ao acordarmos)
nos vermos Ele-Nele
num sempre sem passado
nem futuro.
(Em)pilhamento
Ah, não (em)pilhem tanto
de um lado só,
que afunda.
Esse perene
criar-distribuir
(sempre reproduzido)
de mil e mil necessidades —
para a satisfação
de uma sempre maior insatisfação.
Essa repartição
constante da pobreza,
essa centralização
perversa da riqueza —
essa descompensação
não vai quebrar de novo o Titanic?
O que te resta, ó mundo,
senão a cartilha insana
da deusa Economia,
cujos sacerdotes sacrificam
( nas aras da demência )
o corpo ( “sem defeito”) da pobreza?
Que liberdade nos forjam,
senão aquela
do capital?
Ó sábios,
vossas “nomias”sabichosas
que é que têm elas feito
além de empurrar gentes
para o cinzento amargo da anomia
que pulveriza identidades
e despessoaliza o humano das criaturas?
Ah, não (em)pilhem
o que é de todos —
há olhos por toda parte
(até na sola dos sapatos)
que apontam em voz alta:
Ladrões-ladrões-ladrões!...
(Ao norte da ambição,
ao sul da carne,
o momento é (em)pilhamento.)
Ladrões charmosos,
mamíferos de luxo,
putos de belas putas!
Nossas retinas
serão vossas prisões.
LA 03/001
Quem Sabe A Vida...
Quem sabe a vida nem seria isso,
mas outra coisa menos infeliz —
não esse denso e canibal chouriço
feito de sangue humano e seus ardis.
Quem sabe as nossas relações-ouriço
não mudassem em gestos mais gentis —
através de um fazer menos omisso,
um fazer que acredita em ser feliz.
Quem sabe dois mais três nem fossem cinco,
nem minha porta precisasse trinco...
nem seu olhar dissesse o que não sei.
Quem sabe a vida nem fizesse doce...
e o que não foi virasse o que sonhei
e houvesse o bem, embora o bem não fosse.
LA 03/001
Pelo Ver
É pelo ver
e não-gostar do visto
que vamos remoldando
a realidade.
O ver põe no moinho o visto
e, pelo remoer de remoagens,
a gente faz o pão
de cujo metabolismo
vai surgindo outra visão-consciência.
Essa visão-em-revisões
( em transgenia
com a boa vontade )
há de fazer nascer
uma tal solidariedade,
que vai envergonhar
aquelas árvores folhudas
lá no alto de si mesmas —
vociferando
bochechudas de vento
mas sem sequer um pobre fruto.
LA 03/001
Não Teve Jeito
Não teve jeito —
o camponês encheu de mel
a cumbuca da princesa,
mesmo sabendo que o degolariam.
Quem houvera de crer nele ( ? )
quando tentasse explicar:
Majestade,
sua Alteza ordenou-me tal trabalho
( quase morri, senhor meu e meu rei! )
por mais de doze horas me obrigou,
com uma segunda ordem:
“Não-me-desças(que-morres!)-não-me-desças!!!”
........................................................................................
Sim, feito e dito,
ou melhor: dito e feito.
Mais que depressa e sem ritual,
sua cabeça então rolou.
E ao vê-la assim rolar,
a princesa chilicou ( pelo nariz )
mais um espesso orgasmo.
LA 03/001
O Hábito Faz O Monge, O Ípsilon...
Estourou-lhe a avelã,
e lhe comeu a castanha.
O noivo achou até bom —
seus dentes eram mesmo fracos...
Perdou. Casou.
Colecionou hipsilos —
que se fossem postos em seqüência,
dariam para segurar
os quepes do quartel
do qual era vizinho.
Quando a consorte o deixou,
entrou em mortal depressão —
perdera o cognome:
já ninguém o chamava de André,
o Ipsilonado.
Morreu de tédio
e saudade.
LA 03/001
Inche-Inche-Inche...
Inche-inche-inche, e exploda.
Se não der, inche mais,
ainda mais —
e a explosão será garantida.
Exploda como a rã esópica —
pelo menos você tentou
ser do tamanho
de sua inveja.
...................................................................
Tendo estourado,
jamais irá saber
que ser do tamanho de um boi —
isso, para a vida, nem é nada.
LA 03/001
Conte Até...
Conte até dez, e viva.
Invente ( chega de evasiva! )
coisa de viver-viver,
e não de viver-morrer.
Conte até dez, e diga,
diga ao seu coração
que construa uma loriga
contra o espinho-solidão.
Conte até dez, e creia
que a fera não é tão feia —
quando vista a légua e meia,
ou pela televisão.
Conte até dez, e juízo!
Saiba que o humor e o riso
não são o saldo de tudo,
mas até que nos ajudam.
Conte até dez, até cem,
se o sono ainda não vem —
levante e vá depressinha
jogar gamão com a vizinha.
LA 03/001
Quem Nunca Pegou Bi...
Quem nunca pegou bicho-de-pé?
Azar seu!
Agora, quem não teve uma namorada
que o acusasse de ter dito
o que nunca dissera?
De estar pensando
no que realmente não estava?
De ter incursionado...
Ah, dessas nem o padre escapa.
Quanto ao bicho-de-pé,
se a senhora nunca pegou,
é até covardia
dizer-lhe o que perdeu:
o bicho dava uma coceirinha...
que era o maior dos tesões.
LA 03/001
Por Que, Meu Pai...
Por que, meu Pai,
a vida foi tão dura com a gente?
Seu prolongado ai
teria mesmo, Pai, de nos ser tão pungente?
Tudo teria de nos ser tão frio e obscuro,
tão sem carinho?
Teria de existir aquele muro...
impedindo qualquer caminho?
Ah, com o Teu silêncio não respondas,
nem, Pai, com as Tuas demoras...
Prefiro ouvir, Senhor, o que dizem as ondas...
e racionalizar o gosto das amoras...
LA 03/001
Ordem-Desígnio
Permeando as instituições,
sonhos, vontades e desejos —
há uma ordem sólida:
espécie de desígnio interior,
ou de rumo computado —
que nada faz descarrilar.
Esse caminhar da vida —
rota-missão, trazendo em si
a marcha para casa...
é bem mais inarredável
que se possa imaginar.
Essa marcha da vida
está jungida
a um elo-voz interior —
carreando a cósmica finalidade.
O homem, a história, nada
jamais a deterá,
não obstante os obstantes.
Ordem-desígnio,
viagem dentro de outra viagem:
roteiro-cumprimento.
As células
são apenas o laboratório
em que a vida se desdobra e organiza.
O mais: metabolismos
em gamas de consciência.
Do acervo coletivo
da Humanidade
fervilham vivas
as conquistas do passado
num material que passa
pelas mãos do presente
e vai virando o plasma do futuro —
e a evolução se guarda
na memória das células.
A cada passo dado
o todo se faz mais rico
e as partes mais autônomas —
nessa rota-missão, trazendo em si
a marcha para casa.
Feliz o coração
que se lembra
do caminho de casa.
LA 03/001
Na Consciência De Nossa Existência
Na consciência de nossa existência,
bem no cerne de nosso ser —
sabemos que o vero saber
vem do soslaio de não-saber —
uma desobstrução de entulhos sabichosos
para que — por canais em nós — reflua
o saber que é dom: graça demiúrgica —
sempre inovado e renovado
e concedido pelo Espírito
que ensina o coração que arde na busca
e assesta a calma esperança
para os lados de Deus nele.
Eis o segredo, o modo-graça
de sermos conduzidos
de verdade em verdade —
a toda verdade.
Eterna busca,
eterno recebimento.
Dobram-se os montes,
os caminhos se aplanam,
as águas me suportam.
Dou-me ao Espírito
para ser trabalhado,
ganho-me outro —
livre de mim.
Sei o caminho
de casa.
LA 03/001
Os Homens Precisam Do Herói...
Os homens precisam do herói,
e o fabricam desesperadamente —
sentem que ele traz algo em si
que transcende a realidade:
aquele lado-mais da vida
que faz a criatura
subir-se interiormente —
como a levar a si mesma
o que lhe falta.
Esse homem-mais
aprendeu a transitar
pelos tempos —
que guardam o acervo coletivo
(todo o feito e o factível)
da Humanidade.
A jornada do herói,
seus rastros e pegadas.
Seus rastros e pegadas
abrem veredas
que encurtam o caminho —
sim, fazem-no verdade
e beleza.
LA 03/001
Reproduções
Segundo turno de eleições.
Uma exibição de esgrima
para distrair a platéia.
O povo?
Em desamparo original.
O mesmo desamparo
do casal da parábola.
O povo põe a esperança
na triste mortalidade
daqueles que não aprenderam
ainda nem o básico
de necessário autodomínio.
O povo —sempre pensado—
lixo atômico de pensamentos
que o manipulam em sua ideologia.
O povo a digerir
os enlatados da dialética
que o fazem sempre pensado
e repensado—
segundo velhos interesses
de seus pensadores.
O povo defecado
pelo pensar de pensamentos
que o repensam por sofismas —
até encarná-los
como verdade...
até senti-los
como beleza...
O povo. Meu Deus,
será mesmo que o povo existe?
LA 03/001
Ela Me Prometeu...
Ela me prometeu que voltaria,
e fiquei esperando-a calmamente.
Minha mãe, ao me ver, por vezes ria...
Me dava livros zen, anestesicamente.
Claro que eu trabalhava todo dia —
saía cedo e vinha com o poente.
Mas dentro em mim ( a qualquer hora ) havia
aquele que a esperava assiduamente.
Minha mãe, ao me ver, por muitas vezes,
se atristava com meus verdes reveses —
sabia-me esperando-a... eternamente...
Um dia ela voltou. De um modo-monge,
foi que vi claro ( tendo-a à minha frente)
que o bom de amá-la era sabê-la longe.
LA 03/001
Nem Crápula, Nem Santo...
Nem crápula, nem santo.
Deus me livre do primeiro,
nem me puna com o segundo.
Quero ser bicho normal —
um pouco de anjo e de besta.
Mamífero sem luxo,
nem bosta de galinha.
LA 03/001
É Preciso Esquecer...
É preciso esquecer os dias maus
( sem descarrego de guiné e arruda ) —
buscar o sul da minha amiga Duda,
e curtir seu carinho a trinta e sete graus...
Esquecer os fantasmas e babaus
da nossa ingenuidade ( manteúda )
e tão cara com sua sabichuda
mania de franguear em bons saraus...
Esquecer as políticas elipses
do que podia ser, mas nunca foi —
e andar nas águas dos apocalipses...
Esquecer, inclusive, o esquecimento.
De vez em quando ir amolar o boi...
e amar a minha Duda, em carne e sonhamento.
LA 03/001
Uma Alegria Enorme...
Uma alegria enorme de estar só —
de cumprir o destino-solitude...
Saber que a vida é doce quanto rude
e entre outras coisas, o seu prêmio é o pó.
Ouvir o bem-te-vi e o curió:
se não pode aliviar... até que ilude
essa dor amasiada com o mamute
que nos quer tripudiar sem pejo ou dó...
Convidei a vizinha certa vez
a cruzar sua fox com o meu pequinês...
Mas veio só: cruzamos a nós mesmos.
Meu macaco sagüi ( meio sandeu )
não gosta de cerveja nem torresmos...
Mas votar? Isso faz melhor que eu.
LA 03/001
Amor Com Manga
Daqui... aí, Glorinha,
chego por dentro
de um pensamento.
Conta até cem,
caça o nariz —
e estou em corpo,
enquanto, de memória,
vou saboreando os chiliques
da nossa última vez.
Daqui... aí, Glorinha,
a distância são nuanças
entre o real e o virtual...
E amor com manga
nunca fez mal.
Além do mais, Glorinha,
amor foi sempre coisa chique —
é toujours uma honra
sofrer os seus chiliques.
LA 03/001
Tobias Or ...
Fiquei pensando ( cá nas minhas tripas )
se não seria, amor, melhor
voltar ( naquela noite ) a procurar-te...
Mas não: botei pra fora o pensamento.
Virei pro canto. Dormi.
Dormindo, voltei lá ( no quarto teu ):
fazendo amor contigo...e...
ó!... e... ó!... e... ó!... e...
..........................................................................
Até hoje não sei
se sonhos são sonhos só
ou nesse só tem coisa...
É como disse aquele Cheirespirre:
Tobias or not Tobias,
eta peste!
LA 03/001
Tradução Jeitosa
... quanto aos mais, os não incluídos,
ficarão sob a mesa —
e lhes serão atiradas
as sobras da história.
Certas alas sociais
fingirão trabalhar
para incluí-los —
mas resto não se mistura
com a comida do dia.
Além do mais, traduziram
o aramaico do Filho
da seguinte maneira:
“Pobres, sempre os tereis.”
Isso alivia, não?
LA 03/001
O Amigo
O amigão lhe acalmava a tenra esposa
de/em múltiplas maneiras e ocasiões.
Versátil, descantava-a (verso e prosa)
na vertical de longas sensações...
Aconselhava a grávida chorosa
( não sem antes sutis pinxotações )
a voltar para a sua vida honrosa —
mas com direito a outras incursões...
E, amigo, fora assim tão serviçal,
que jamais lhe negara algum socorro
em favor de seu leito conjugal.
Ocultista de cósmico saber —
estava sempre pronto, heróico zorro,
a ouvir-lhe a pobre, a infeliz mulher.
LA 03/001
Cirberfodências
Volta e meia, a mulher o repudiava,
e lhe trocava a casa por pensões.
Ia atrás das razões das emoções
e dos plúmeos encontros que agendava.
Sua fome de mundo saciava
com os notáveis e donos: figurões
da cidadela... e, então, aos borbotões,
lhe endossavam. Seu cônjuge pagava...
Trepava de vexar um alpinista...
Dedilhava colhões como o pianista
brinca sobre o sorriso do teclado...
Fodeu-fodeu-fodeu-fodeu-fodeu...
gostosamente e muito variado...
No fim, se arrependeu: quer ir pro céu.
LA 03/001
Um Cheiro Bom...
Esse teu jeito prêt-à-porter
de lidar com os fricotes da emoção,
pondo-os ao lado
dos chiliques da razão —
delícias de um tempo
que nem tem tempo
de tirar os sapatos
pra fazer vaginação.
Esse teu jeito descontrai,
não só a mim,
mas toda a praia e quem lá anda
com a nudez fazendo sombras
com olhares de orelha em pé
e esperanças de alojamento.
Talvez o mar tenha saudade,
também o vento as tenha,
igualmente mil e mil olhos
tenham saudade
de te afagar pígios e peitos
e lambiscar-te
a ameixa de centro-sul
e a romã de extremo norte.
Um cheiro bom de virgem
querendo ser imolada
por uma boa espada
ou mesmo um espadim.
LA 03/001
Tempo De R-M
Ela o amava, sim, pero no mucho.
Aliás, nem era mais tempo de amor.
Quem tivesse um tiquinho ( a régio custo )
erguesse as mãos pro céu pelo favor.
Nem era tempo de exigir-se muito:
podia ser terceira ou quarta mão, e cor,
ano, tamanho, estofamento e quanto for —
ficassem, pois, por conta do fortuito...
Não era tempo de frescura ou luxo —
mal dava pra forrar de leve o bucho
e palitar os dentes da esperança...
O que os donos jogassem sob a mesa,
era dar graças pela gentileza...
Era tempo de roubo e de matança.
LA 03/001
Fugas? Só Para A Frente...
Fugas? Só para a frente,
senão ficamos
(cheios de qualidade).
Saudades do amanhã
cuja velocidade
se acople à tecnologia
do orar-rezar pelo breviário
de ecumênica visão —
visão-em-revisões.
( Desconfiemos sempre da pressa
que relativiza a velocidade
e seu produto,
levando à competitividade
perversa e tola,
tolíssima e gratuita.)
Se tais fugas, no entanto,
não se centrarem
na verdade-beleza focada
no humano da criatura —
no caminharmos
por uma estrada de consciência,
através das veredas
do coletivo humano:
sem esse nexo,
sem tais conecções —
construir o futuro
jamais será transcendência:
sem tal,
o homem será escravo ( alegre )
de sua liberdade.
Não ser feliz seja o termômetro
que há de relativizar
a tecnologia
com a velocidade —
sempre que houver
a ruptura do político
a coordenar o processo.
Tudo o que perder de vista
o Homem e seu Destino
e sua vontade de transcender-se —
não haverá de acrescentar,
mas sim de reduzir
o humano da criatura.
Deve, portanto, receber
o nosso escancarado ra-ra-rá.
O povo mais veloz
não será o que está mais à frente
em seu fazer-criar de ponta —
mas aquele que, conjuntamente,
resolve os seus problemas
e humanamente cresce
em solidariedade
e bem-estar:
será aquela comunidade
que se sente com um só corpo —
jamais se desamparando
ou se excluindo,
mas ao contrário,
tem como sanidade
o incluir —
o compromisso-felicidade
de juntos caminhar.
A consciência de vencer
será todos conseguirem —
na responsabilidade
de todos para com todos.
LA 01/001
Pisões Na Bola
Muitas vezes dormimos
durante o show,
e ao outro dia
dizemos que não gostamos —
e com muitos pormenores.
Também há os que comentam livros
sem nunca tê-los lido.
Há os que comem as nozes
e reclamam que estavam chochas.
Os que fazem amor,
trincam-se de prazer —
e chamam de leviana
a tal pessoa....
Comemos todo o doce,
e afirmamos que não estava bom.
Reivindicamos num pai-nosso
a metade das estrelas
ou noventa por cento da ventura
de toda a humanidade.
Prejudicamos pessoas,
e nem damos por isso.
Vamos muito mal na vida,
e fingimos não saber por quê.
Nem nos envergonhamos
de ter perdido a vergonha.
Tratamos mal as pessoas,
e não atinamos
por que somos tão sós.
Vamos à igreja tal,
apregoamo-nos salvos —
e aos de outras dizemos entachados:
goiabada de Satanás.
Ou entramos no binóculo
e atravessamos a rua e os vidros
em direção a nus anônimos —
esperando aquela posição-quase...
Quantas vezes escrevemos
e só na última linha
vemos que não era isso...
nem isto nem aquilo.
LA 03/001
Não Quis Jogar A Vossa...
Não quis jogar a vossa amarelinha
por sabê-la cretina e programada.
Dos amigos comi a marmelada
a fingir ignorar que gosto tinha.
Jamais gostei de extremos: tudo ou nada.
Tudo é demais; nada (se é bom) convinha
ser ao menos um pouco... é o caso da vizinha:
flerta, sorri, faz charme, mas... murada!
Bom seria ser índio ianomâmi
com uma ianomama que me ame
e me arrume uma prima pra lazer.
Pensando bem, melhor me fora ser
quem sabe quenga ou freira (em Paris?...) —
sim, uma coisa ou outra, mas feliz.
LA 03/001
Ao Que Não Sabe Repartir...
Ao que não sabe repartir dói mais.
A sociedade nos criou pra não,
mas ela própria exige eventuais
nãos-sins entre razão e coração.
Há que se peneirar vermelhos ais —
torná-los em teúda comoção.
Esperar pelos ventos lá no cais
e ordenar-lhes uma outra direção.
Dói mais ao que não sabe que não tem.
Dói muito mais a quem nunca aprendeu —
que meu ou seu é só um sonho-além...
Dói mais ( perder ) à mão que segurou,
e com a outra mais e mais prendeu —
mas o sonho — ensaboado — lhe escapou.
LA 03/001
Era Belo Pensar...
Era belo pensar em Manoela —
no seu delírio, seu amor de elipses:
seu coração a melodiar apocalipses
com infusões periódicas de estrelas...
Era belo sabê-la assim singela,
coçando a xota enquanto assiste a eclipses
que lhe põem sombras-charmes ,de trivela,
por entre a tenridade ainda nuela...
Melhor imaginar-lhe o que seria
do que tocar-lhe a pluma do que era:
no caso , o virtual é mais que o real...
Mais belo era sonhá-la, em meu ramal,
nas delícias de tê-la, e não querê-la —
sabê-la sobre o chão, e amá-la entre as estrelas.
LA 03/001
Maquinavélico
et certas-mil-outras...
não são nenhum problema —
mas programas
que uma classe computa
( sim: sempre a conivência )
e as outras ( todas ) executam.
Ser profeta ( hoje cientista
social ) é apenas ter olhos
de ler o Script.
O Centro o escreve;
as forças periféricas
distribuem os papéis —
e a sociedade ( como um todo )
reproduz ( segundo nuanças
e graus do seu reproduzir ).
O modo é o mesmo —
só um pouco e cada vez
mais complexo.
............................................................
De tempo em tempo,
a erupção de bolhas
nos permite flagrar
a maquinália maquiavélica
trabalhando...
É até bonito
ver suas engrenagens moendo...
Moendo-moendo-moendo-moendo-moen...
LA 03/001
A frio,
como tirar estrepe
do pé da infância?
Quero que este poema
seja tirado a ferro
( lá de entre alma-coração )
e berre,
sujo de sangue.
Berre ao mundo
e ( precoce )
grite a todos os ouvidos:
Putos e putas,
santos e santas
e meios-termos —
não é nenhum prazer
escavar-vos com o dedo indicador...
Mas em querendo,
concedo: escavo-escavo-escavo —
até Paris virar a Torre Eiffel...
e o saldo digital ser promissor.
Sim, nesse momento o que está em alta é o amor digital.
Fazei-o. Trepália,
a capital das delícias,
vos espera —
com um futuro
de todos os sabores.
LA 03/001
Livres Em Nós
é o caminho mais curto
entre nós e os outros —
numa jornada livre.
Perdoar é livrarmo-
nos
do outro e de nós mesmos...
Livres do outro,
todo caminho é propício.
Livres em nós,
podemos continuar a construir-nos
com a argila do nosso caminhar.
O melhor investimento
será sempre o sentimento
que nos torna livres
de inadimplências morais —
só cativos
de uma ontoliberdade.
Perdoar
é principalmente amar-se —
partir-chegar
de si-outro
a outro-em-si.
LA 03/001
Um Urubu Pousou...
Estilingada nele! Mas cuidado —
o IBAMA não entende de mandinga,
e, é claro, considera a ave amiga.
Se queres, alugamos uma biga
do tempo de Cleópatra, e a loriga:
pra te livrar de flechas e machado —
e corremos pra longe, pra outro lado...
Lá onde os urubus são pontos-sombra
a deslizar no azul gostosamente
por entre raras nuvens, doce alfombra...
Ver ou não ver, ligar ou não a tais azares —
a própria vida os vê só distraidamente...
Apenas ave, penas, vôos e ares.
LA 03/001
Saudades
Saudades da Glorinha.
Estava me ensinando a dança
( que eu fingia não aprender nunca )
da boquinha da garrafa.
Saudades.
Quem ousaria lhe suprir
as posições
e a habilidade raras?
O ângulo perfeito,
a simetria —
a rotação e translação
com-pu-ta-do-ri-za-das?
Quem sequer ousaria
imitá-la,
ó clássicos?
Ó pós-modernos?
Ó padre Hilário?
Quem, pois, lhe igualaria
com tal e augusta morfossíntese?
Sim, quem, quem é que iria
sequer de longe
ao menos se lhe assemelhar
no morfovasilhame
em cinéticos delírios tais,
assim tão digitais,
assim dessas jeitices tão
cibermodais
em tons florocarnais?
Ninguém, ó Glória,
ninguém de ningueréns...
Exceto...
Sim: exceto a sua irmã Vitória...
Mas isto é uma outra história.
LA 03/001
E Outros Bugs
derrubar as paredes.
Vencer na vida,
em primeiro lugar,
é vencer as bactérias
( e outros bugs ),
e então-ao-mesmo-tempo —
(em)pilhar coisas.
Mil insídias conspirando
contra a organização da vida.
Isto, por dentro.
Por fora, é que mora
o maior perigo do mundo:
o homem.
Antigo, não?
Antigo, careca e tolo.
Mas o que não se faz
para adiar o poscênio?
Será que temos mais medo
de morrer ou de viver?
Sei não. Só sei
que os bobos e as crianças
fazem perguntas chatas.
LA 03/001
NO Bel
e sua sublime grossura
ante a estese psicológica
dos gênios de verdade.
Sartre foi sempre dono
de uma pródiga mesquinhez
ao ciscar na arte dos grandes.
Claro que posso entender Sartre
quando verto para o contrário
o que ele diz.
Esse senhor,
corno alegre de Simonne,
só não virou seu dedo duro
para o seu o retal.
Um tipo
genial-brutal-universal.
Para mim,
foi um mestre do avesso,
mas um mestre.
LA 03/001
Glorinha fazia uma comida
de deixar fogão de lenha
com a cara nas cinzas.
LA 03/001
Era Um Sentimento...
que atado lá em você
e cá em mim —
nos unia com a força,
com o timbre de alegria
que só o amor pode ter.
Um dia, um pássaro invejoso
( desses que têm
no bico uma tesoura )
cortou aquele fio escarlate,
de onde saíram pérolas,
mas muitas pérolas
da cor do primeiro sonho
que juntos tínhamos tecido
com dois olhares num só.
O pássaro tentou,
com seu bico-tesoura,
engolir aquelas pérolas...
Mas não podia:
à medida que tentava
cortava-as... e de dentro delas
saía um sangue tão vermelho
que parecia gritar
um grito que assustava as pedras.
E vendo que não podia
fitar o brilho
do nosso amor,
o tal pássaro fugiu
grasnando inveja
e enrolado na própria sombra.
LA 03/001
Lema-Unidade
e coisas que o homem mata
para sabê-las eternas.
E assim vai aprendendo
que não pode eliminar
nem limitar,
a não ser a si mesmo —
pelo tempo que assim agir.
A quem não tem nem mesmo a própria vida,
matar é a suprema loucura —
o que mais há de amarrar
o ser a seus atos.
A vida são dons,
dádivas, graças —
a fluência do Show
a que somos chamados.
A vida pertence à vida.
Dar-receber parece ser
o seu lema-unidade.
LA 03/001
Pule Este, Minha Senhora...
Ligue não.
Vai lhe comer outras vezes.
Come-nos em vida
( desde antes de nascermos )
e come-nos na morte —
com sua boca de terra.
Viver é foda, meu!
e não importa em quem.
Bobeou, levou.
Deu uma de babão,
o mundo enraba —
come bem devagarinho
e ainda espera
que o sendo-comido olhe de lado
e, gentil, lhe agradeça.
E a vida não perdoa.
Não foi feita para isso.
Apenas tem implícito
um rumo inarredável
dentro de uma imperiosa
finalidade.
A vida é o mestre,
o viver o discípulo.
O tempo, o mordomo de ambos.
Um mordomo amoral.
LA 03/001
Outono-Folhas-Vento...
Outono-folhas-vento.
Resvala a vida para dentro
de si mesma: caminha
por veredas interiores.
Das fibrilas às folhas
a natureza se re-sonha
com as mãos cheias de frutos.
A vida flui meditando
pelos poros do silêncio...
Por dentro se enriquece,
por fora se despoja:
contos que se recontam,
lendas que se retecem
com os fios do sonho.
Cicios que se recordam
entre o verde e a xantofila.
A vida em seu morrer,
em seu morrer-renascer:
a preparar o cenário
com os dublês do poscênio...
LA 03/001
Que Bom, Amor, Já Não...
lindo,
é lindo não mais usufruir
dos teus humores e hormônios.
Belo não ter tua presença...
Só hoje vejo a diferença —
aquele pobre vinagre
batendo os pés que era vinho.
Delícia de desencontro:
tão bom me é revê-lo, hoje,
que nem mais quero esquecê-lo —
assim posso comparar
meu querer-porque-sim
com a beleza-verdade
de estar-me livre de amar-te
( portanto, livre de mim )
e livre de me seres
aquele chiste inventado
pela cultura dos homens —
enfermidade avoenga.
Que bom não mais precisar
sentir-me amado por ti...
Bom aprender a lidar
com os chiliques da existência —
ser-me boa companhia
e saber que a alegria
é o fluir amoroso
da nossa própria essência.
Livre, enfim, dos tambores
daquele rufar da carne.
Saudade, amor, quanta saudade
de coisíssima nenhuma.
Nenhum pato nem logia
já nadam por minhas águas.
Não?!
Só um modo de falar.
LA 03/001
que tem força para alçar-se
e transcender-se —
a cortar as amarras
da carne e do sangue
no pelourinho dos tempos.
LA 03/001
Vou ripar minha saudade,
cobri-la com folhas de coqueiro —
e te esperar na sombra
cheirando a verde e sonho,
assim a gente gorjeia
e coaxa
aos domingos depois das duas.
LA 03/01
O negócio
é moer a esperança —
torná-la em pó efervescente
para aqueles que pensam
que o amor é indigesto —
principalmente
quando comido depressa
ou de mistura com manga.
LA 03/001
Mandei costurar minha fé
num patuá que guardo dentro
do coração:
tenho medo de perdê-la
e depender da fé do padre
ou do amigo.
LA 03/001
o amor de minha Rosa.
Mas quá: foi com tristura
que um dia descobri
que ele fugia
pelo furo da fechadura.
LA 03/01
Eta, Mundão!
Nisso e naquilo —
contanto que sejam
coisas de Aquiles.
E elas pensam tanto nisso
e investem tanto naquilo
( de Aquiles ),
que o homario já nem
precisa mais pensar —
são pensados por elas.
Empresa, arte,
eterno jogo
de bilboquês.
Pensados e degustados
por elas.
Eta-ferro! Eta-pau!
Isto é: eta e ferro,
eta e pau.
No ar, em tudo —
um cheiro genuíno:
norueguês.
LA 03/001
Falar, Sexuar, Roubar...
( e outras em ar, em er, em ir )
já sabemos bem antes de nascer —
uma questão de tempo e sociedade.
E o que é que nós trazemos no porão
que o meio não ajude ou não esmague?
............................................................................
Nós nos devemos crimes e heroísmos,
sublimidades e loucuras:
todo o bem e todo o mal
do nosso Acervo Coletivo.
E — não raro — fingimos esquecer
os nossos débitos e heranças —
querendo EIIMINAR aqueles infelizes
cujos atos vilíssimos não cometemos
sabe Deus ( saberiam os anjos? ) por quê.
LA 03/001
Acordou No Meio Da Noite
Acordou no meio da noite.
Com as mãos ásperas,
comidas de argamassa
e arestas de barro cosido —
num gesto primoroso
de quem assenta azulejos de brisa,
foi acordando a consorte
( a cor dan do, a cor dan do... ),
até que aos poucotiquinhos,
com cosmogônico jeito,
enfiou-lhe uma baita de uma pedra
( era pedreiro fino )
no corpo.
Voaram pedrisco, areia grossa
e muita cal por todo o quarto.
Mais um belíssimo trabalho
de acabamentos.
LA 04/001
Se O Cisne Cantou...
Se o cisne cantou, não ouvi.
Que o anu piou, piou.
Depois se foi —
com seu vôo baixo e pesado...
mas bem mais belo que o do cisne —
que não voa,
a não ser...
Quando o cisne cantar,
te aviso, Rosa, te chamo.
Quem sabe te despetala
as penas da emoção
que anu não te causou.
Cisne canta de mentira,
anu canta de verdade —
mas entre uma coisa e outra,
mais vale o sonho da beleza.
LA 04/001
Seu Casamento Havia...
Seu casamento havia mesmo acabado.
Nem se pôde pensar em reconciliação,
porque jamais tinha havido conciliação.
De sorte que não acabou no fim...
Começou sem começo:
principiou acabado.
Não houve espanto,
nem estupefação —
segundo os hierofantes,
isso é comum como usar o pé pra andar.
LA 04/001
O Negócio Da China...
O negócio da China ( hoje )
é vender vida —
que o digam as seguradoras,
os planos de saúde,
criogenias e que tais.
Mas o grosso mesmo,
o grosso vem vindo aí.
A corrida pr’Oeste
é a genomática —
com seu tesão em riste
pros lados da manipulação:
reendereçamento
e “conserto”de genes —
sonho de empresa bilionária
com olhos e genitália
voltados
para os donos do planeta.
...................................................................
Só que a Vida puxou ao Pai —
tem seu Desígnio e Finalidade
que vão além de todo entendimento.
E tais eufóricos senhores
hão de ver
que não abriram a porta —
mas uma das antecâmaras...
LA 04/001
Acordou Madrugadão...
Acordou madrugadão.
O quarto latejava.
Sentia-se maior, enorme.
Apalpou o outro lado da cama...
Apalpou, procurou...
Por fim, lembrou:
a esposa tinha viajado.
LA 04/001
Névoa/Bruma
isto o que os amigos são?
E os inimigos?
Podem até ser amigos —
dependendo da ocasião?
E qual a diferença?
Nenhuma: névoa/bruma —
geometria não-plana
da condição humana.
LA 04/001
Ah, Aqueles Chiliques!...
Sempre que a via,
pensamentos de viés
me ocorriam —
era bonita e instigante
como estrela sem nome:
pertencia ao olhar-naquela-hora-vendo-a...
Sempre que a via,
caçambas e caçambas
de um material levíssimo
e pruriente
caíam sobre os meus sentidos —
como que a bajular-me pelos poros...
Jamais quis conhecê-la,
nem vê-la muito de perto —
de medo que aqueles chiliques
psicormonais cessassem:
aquela chuva fina ( lá em meu avesso )
deixasse de cair... ao vê-la.
LA 04/001
Um Jogo Por Dentro
Pobreza não rima com riqueza,
como tulipa não rima com tripa —
ilusão auditiva,
desilusão psicológica,
ou melhor: antropológica.
O charme dessas quatro
está em seus opostos —
que originam as leis da vida
e são — de alguma forma —
a própria vida.
Ilusão, desilusão —
só um jogo por dentro
de coisas que — por fora —
fingem não saber bem...
LA/04/001
Estratégia
Chamavam-no desmemoriado...
Sempre antes de dizer que não lembrava,
bocejava demoradamente...
e acrescentava:
vida saudável e memória curta —
isto traz felicidade.
LA 04/001
Tim-Tim
Saúde, paz e esquecimento,
com um lembrar só de soslaio —
jamais olhado
de frente,
mas pelas costas, indo-se...
Um lembrar
que não deixa doer
porque se lembra esquecendo
e se esquece lembrando
o esquecer que lembraria —
e que luta por não morrer
no esquecimento: esquecimento
que sabe ser felicidade
a ventura desventurada
de um doce não saber disso.
Saúde, paz e não saber,
de cor, as razões da mágoa —
por isso mesmo senti-la,
de preferência, do avesso —
como a blusa que, no inverno,
no quarto escuro, vestimos —
e notamos que o interior
tem mais detalhes,
mostrando que o ( lado ) direito
se apóia em não sabemos.
Saúde e uma memória
que nos possibilitem sempre
ser felizes —
memória curta, bonachona
e — deliciosamente —
péssima memória.
A ela:
Saúde!
Tim-tim!
LA 04/001
Distraidamente
com a forma de um y,
servia-nos de bordão
para nossa travessia.
Do mundo vinham notícias
e ameaças as mais terríveis,
mas a gente trabalhava,
confiava em Deus
e não deixava nunca de se amar.
E a gente nem sabia
que aquela afeição maluca
e nossos sonhos tão frágeis
eram, na verdade, tudo
o que tínhamos de mais belo
e mais forte.
Nem sabia
que — sem querer
ou pensar que merecia —
a gente era, com certeza,
distraidamente feliz.
LA 04/001
Verdade
e Sua Palavra —
então, sim: Conhecerás a verdade
e ela te libertará.
Mas cuidado:
se a verdade for política,
a coisa muda:
Conhecerás a verdade
e ela te levará ao caos —
à desesperança do humano.
LA 04/001
Incentivo À Arte
É isso aí, minha Zefa.
O negócio é mexer os pernises,
que um dia a vida blefa.
Mas antes de ter blefado,
teremos sido felizes —
o sonho menos enganado.
É isso aí, minha rica:
trabalha bem com os pernises,
que um dia a Coisa os estica...
E não contemos a ninguém
que a vida pode ser uma cabana
entre palmas e chafarizes.
LA 04/001
Trama
sempre o desejo de outra coisa?
E é só desejar,
já o desejado se desgasta e morre.
O desejo? Encarna outro desejo,
que sobrevive em desejar.
Sim, Lacan: nós não amamos coisas —
amamos ter desejos.
Um sonho sempre dentro de outro sonho.
Uma semente gera a árvore
que gera outra
que gera a eternidade.
A vida? É essa trama
( não lacaniana! ),
mas trama de desejos.
LA 04/001
Puxa, nega, por um triz!...
e a gente era feliz.
LA 04/001
Xite, Deprê!
’pera aí:
chamo um dos sócios de Lacan
pra te vender uma Mercedes
e te entregar um saca-rolhas.
Queres não?
Queres ser tapeada não?
Tá bom. Tá bom.
Já sua irmã adoraria...
Tristinha, assim,
com esse olhar de quem viu
e coçou os lados da testa —
ficas um charme
pra acompanhar enterro
ou procissão
de sexta-feira santa...
Mas como estamos no verão,
e na praia, amor, —
te aconselho tomar um Prozac
e adiar a pinga com limão.
Quem sabe até à noitinha
não ficas boa
e a gente vai a um forró
e se enfia um no outro até que o galo
bique os pudendos da aurora?
LA 04/001
Ão Com Ão
Belisca, amor, belisca este pobre coração:
fá-lo pensar, amor,
com pitadas de razão —
a que ensina ao sentimento
que oito não é oitenta
( nem oitenta biscoito )
e que ão com ão
se assimilam num tesão
a se abrir em flor num coito
( nem inibido, nem afoito )
lá em alma-coração.
A carne, amor, é narcísica —
sempre busca a si mesma
sob a pele do outro:
a aventura reciclada
nas delícias do herói.
LA 04/001
Inclusão
Não mais isso ou aquilo,
mas isso e aquilo e Aquiles
e o aquilão soprando
a nos dizer, ó gata,
que o bom é eu e você —
e não você ou eu.
O ou, amor,
sofre de solitude
e frio de padre velho.
Já o e, minha nega,
é jeitoso-includente-entrão:
tem função copulativa —
poeira de estrelas
moldando um mesmo barro.
LA 04/001
Coisas Boas Da Vida,
Com Bis E Bises Cosmopolitas:
Aquilo que todo o mundo
( & o padre )
gosta mais-que-demais.
...............................................................
Cochilar, coçando os mimos.
................................................................
Deixar para amanhã
os encargos de hoje.
................................................................
Trocar o gás pra ela.
................................................................
Ir pagar uma dívida,
e o credor estranhado:
O senhor me pagou ontem, entre 8 e 8h30.
— Paguei não. Deve ser um sósia homônimo...
— E RGjônimo?
E você ( gente boa ): Não Paguei não, senhor...
E ele ( pisando em brasas ):
— Pagou sim, seu... E ponto final.
..................................................................
Jogar até chover granizo...
e, em seguida,
dormir segurando a peteca.
...................................................................
Discar ao amigo, e ele:
— Oi, meu velho! Como vai?
Você, deprimido e chorão:
Esse ar me empesta!...
Ele, solícito:
— Claro que te empresto.
De quanto é que você precisa?
....................................................................
Ir à loja comprar chinelos,
e a moça lhe trazer
duas caixas do melhor leite.
....................................................................
Levantar, fazer o cafezinho;
ajudar o cônjuge a tomá-lo;
desejar-lhe um bom dia de trabalho,
e voltar a dormir.
.....................................................................
Pedir um beijo, e levar tudo.
.....................................................................
Comer sem arranhar o prato,
desocupando-o logo.
....................................................................
Não precisar ter em casa.
....................................................................
Cometer um pecado pentelhudo,
e ouvir do confessor:
— Só volta aqui de dúzia em dúzia...
Todo santo dia, não dá!
....................................................................
Ouvir do pai da moça:
— Você comeu-a?!!
— Não, senhor! Juro que não! Ju!...ro.
Enquanto a empregada explica:
— Fui eu, seu Átila: joguei ela no lixo.
( Ele envenenava maçãs
para matar baratas. )
....................................................................
Ver passar as tuas pernas
arrastando olhos e olhos e olhos
presos a um fio invisível...
....................................................................
Ver o inimigo, morto não,
mas confundido e envergonhado.
....................................................................
Viver dias sem conta,
não para rir por último,
mas para agradecer
por nem precisar de rir.
.....................................................................
Vê-la pisar satisfeita
sobre o desejo alheio
com saltos perfurantes.
......................................................................
Saber que só vale a pena
a que depluma felicidades.
......................................................................
Catar coquinhos com Teresa
lá onde nem há coqueiros.
.......................................................................
Saber que a outra margem
só é mais bela
se lá estás.
.........................................................................
Pensar de tal maneira,
que nos leve sempre além
da mente que macaqueia.
..........................................................................
Dizer à Rosinha
( empregada das boas ):
Das facas pontudas, sim;
da água fervendo, também;
do açougueiro da esquina, idem;
mas de mim, Rosinha? Tem dó!
Você não precisa manter distância.
LA 04/001
Intercâmbio
Sem o sonho, é pecado.
Sem a alegria, é morte.
A vida não é ave —
mas vôo por dentro
do Sempre-Sim.
Entrega o teu fazer
ao outro em ti :
deixa o gigante trabalhar...
E, pasmo e pálido,
vê que as tuas mãos
tem vários corpos em ti.
Lá em trans-pessoa,
o Sonho-Quem concede
o que desejas —
e a obra nasce do plasma
do teu fazer-criar.
LA 04/001
Paleoatividades
Padre trabalhando na adega,
lá nos fundos da igreja;
frade meditando atrás da horta;
mulher confessando
três vezes por semana —
paleoatividades psicormonais
que torna o ser humano ubíquo —
pluri-relacionado,
interativo,
em vaivéns infinitos:
oxímoros hagioeróticos,
num cheiro de bordel e incenso —
carecas que se vestem
de perucas com santos tremeliques.
LA 04/001
Até Que...
Bobos da corte
do Norte,
toca-nos cuidar do humor,
e das vontades
do velho Sam.
Sim: a nós todos,
os de baixo,
cabe-nos fazer gracinhas
para o velho tirano rir,
pagar-lhe para viver,
contar-lhe piadas —
não de colonizadores,
mas de colonizados:
dos vencidos e comprados.
Bobos da corte
do Norte,
o que nos resta,
senão decorar o Script,
distribuído a todos
os que hão de reproduzir
a Comédia
( nada divina ou humana ) —
fazendo o mundo e os homens
o que são?
Bobos da corte
do Norte,
façamos rir
ao rei e os áulicos —
até que nosso cérebro
e astúcia
cresçam para fora
de suas mãos.
LA 04/001
Ao Telefone
.....................................................................
— Oi, Pu-Pu!... Saudade?........................................
— Neandertal!............................................
— Tô indo, Nego. Me aguarda. Sábado cedo.
— Te espero em riste, ............................
......sem loriga nem saio.........................................
— E eu então, meu santo! Já sinto frios,
pulgas, carrapatos... e cheiro
de pêlos ( ai! ) queimando...
— Te aguardo, doendo. Doendo
com a catuaba de te lembrar...
...................................................................................
Já troquei a travessa musical da cama...
Aquela que parodiava — épica —
a Cavalgada das Valquírias...
Lembras ( da última vez ) como o vizinho xingava?...
Quero mais xingo não. Só função.
.....................................................................................
A gente põe um jazz bem baixinho
( jazz é música de frufrulejos )
e ouve e ouve e ouve, amor,
e ouve e ouve e ouve...
até a tarde fazer beicinho.
— Tá bom, Pu-Pu. Até até, meu Nego!
No sábado a gente desforra.
LA 04/001
Foi Em Uma Deprê...
Foi em uma deprê que me engolia,
que me disseste:
Vem, meu nego,
vem morar ao sul da carne —
que esse spa tem curado muita gente.
Não fui.
Fiquei ao norte da razão
( meus pobres arrazoados!...),
e disse ao meu coração:
Quer ir, vá. Quando vir
que esse te-amo-te-gosto
está mais pra bacalhau
( e dos muito salgados ) —
então volte, volte sabendo
que não há vôo
sem penas.
LA 04/001
— Já leu Tutancamões?
— Nunca abri seu sarcófago.
LA 04/001
— Tarcísia disponibiliza?
— Claro que sim!
Só não sei com quens.
LA 04/001
Aviso
Este livro
não pode ser lido:
a): por cretinos;
b): por crianças ( a não ser
quando elas o forem de verdade ).
LA 04/001
Histórias
Eu disse à minha amiga Madalena
que tive um pobre caso com Helena,
alguma coisa, quase nada, com Milena
e nem sabia se existira uma Beatriz...
Mas que ela sossegasse,
ficasse bem tranqüila —
porque de jeito algum fora feliz.
E vendo minha amada
que minha alma era lavada
pelo olho meu mergulhado no seu,
então creu —
creu que não houve ventura
com nenhuma das Lenas
( ao contrário: muitas penas )
e que com aquela ( talvez ) Beatriz,
certamente não deu
nem pra ser infeliz.
.........................................................................
Já entre mim e Madalena
não houve penas —
só vôos.
Aprendemos a não levar a sério
o que jamais foi sério.
Fingíamos tão bem de bobos,
que acreditávamos deveras
que tal bobeira fosse real e mútua.
Éramos felizes, e sabíamos.
LA 04/001
Se Bem Que...
A gente vai e volta.
Se bem... pra que voltar,
se ao voltar, já é um outro lugar?
Já são outros corações: o que se fora
e o que ficara
com a cara cor de aurora.
LA 04/001
“Aquele dentre vós...
que atire a primeira pedra.”
O que há de mais citado
e mais docemente truncado
que esta frase?
A banalização de uma verdade
( para justificativa egóica )
consiste em repeti-la
até que a exceção apontada
se torne regra.
..................................................................
O final : “Vai, e não peques mais”—
procuram extirpá-lo,
porque — sem ele —
o próximo pecado
já é perdão.
LA 04/001