LICOR DE JENIPAPO
Laerte Antonio
TEXTOS 1
Beira De Rio
O curimba, compadre,
é peixe maneiroso,
que nem mulher.
O bicho é painas no ar...
Fofuras e rela-relas.
Agora, quando ferrado,
vira fera, e exige,
o bicho exige perícia!
Bichinho cheio de doces...
faz sempre que não quer.
Não puxa, — acena
com luvas de brisa...
feito donzela
século dezenove
que jura não querer...
Não puxa:
só faz piscar de leve a ponta
da vara.
Pra lhe ferrar o beiço
é preciso muita lábia —
jeito maneiro,
momento intuitivo,
saliva bem fininha,
leveza nas maneiras
e na conversa... aí, sim:
relou-relou, fisgou!
E o mais é jeito —
pra lá, pra cá,
afunda, aflora...
Tá pesado? Dá peia!
Com jeito, força certa,
tensão reguladinha
na vara
dentro da rotação
e translação no aflora-afunda
e vai-e-vem...
Sim, a vara ali ó:
sem jamais lhe dar ponta...
a trabalhar meio deitada
segurando os floreios
e rodeios: firme, firme-flexível...
até o bicho pranchar —
liso, mais que sabão.
LA 04/006
Parecia um abajur
naquela mini-saia —
a dizer a tudo que era olho:
Me rela,
me rela que eu acendo!
LA 04/006
Dormia-lhe com a mão
sobre a xiranha.
E ela contava às amigas
que ele tinha sonhos,
mas tais,
que relampeavam, —
incendiavam todo o quarto.
LA 04/006
— Por que é que quando o cara tá que tá
( quis saber da colega
com quem repartia o quarto )
você sempre diz:
“Vamos,
vamos que meu marido vai chegar!...”?
— É pra dar para a coisa
( explicou-lhe )
um tempero
de comida roubada.
LA 04/006
Era honesta com o marido:
Olha, meu bem, só dou para você
e pra mais dez ou doze... —
dizia-lhe sempre
com aquele sorriso bonito
e cheio de ternura.
E como André jamais lhe acreditou,
ela viveu com a consciência
honestamente tranqüila.
LA 04/006
Vim, vi, perdi —
era André com a minha Marli.
LA 04/006
Era tão religiosa,
que sua posição preferida
era ajoelhada
por cima.
LA 04/006
O português da lojinha
cantava fados
quando estava ultimando
suas insculturas de quartas-feiras
e domingos à tarde...
Ficava até romântico
( dizia o pessoal do Largo ).
Mané mecânico quis imitá-lo,
mas levou a maior sova
da patroa.
Ficou com o apelido de
‘Lisboa Velha Cidaaaaaaaaa...de...’
LA 04/006
Importou uma xandanga
( escondeu-a no quarto de hóspedes )
lá dos zoinhos escuros
( feita do mais celestial
e semelhante material... ) —
para aquelas terríveis fases
de dores de cabeça
ou cistite
da esposa.
LA 04/006
O Evangelho de Judas
foi dado hoje
( 06/04/006 )
em tradução ao mundo.
Os donos dos modos de pensar
ajeitaram os gumes da Dialética ( claro! )
e deixaram tudo de bom tamanho:
salvaguardaram o interesse e a paz...
Diga-se o mais importante:
O conteúdo
desse tal evangelho —
em nada surpreendeu,
sequer acrescentou
aos Pensadores.
Mas é claro que valeu
( era hora e lugar
de valer ):
colocou-se uma lâmpada
no local onde devia
haver mais uma lâmpada,
ou melhor: onde haviam
quebrado uma.
................................................
As histórias,
construtoras de cabeças
ou consciências,
vão sendo recontadas
( pelas “redescobertas” )
e reveladas
à medida que caminhamos —
de sorte que a Verdade,
além de ser por si mesma,
também é o quanto
podemos suportar.
LA 04/006
Claro que com o tempo
o marido se acostumará
com a vagina pétalo-siliconada
que a mulher lhe afixará
num travesseirinho sobre a cama —
para as noites em que estiver
sem nenhuma apetência
ou com dores lombares.
LA 04/006
Se pode o peixe vivo,
amor,
viver, só, na água fria,
bem mais que ele, minha nega,
podemos viver juntos nessa cama
onde aprendemos a nadar,
a espremer belas uvas
e fazer vinhos chiques.
LA 04/006
As romanas,
divorciadas e viúvas,
adoravam estar
com os gladiadores na véspera
de suas lutas.
Era-lhes uma espécie
de multiorgasmo
ver-lhes a sede e a bravura
numa só carne —
sim, tudo: Eros e Morte,
num mesmo ravióli.
LA 04/006
O espírito da luxúria
fora levando-a
à miséria
e à sujeira
por dentro e fora
de sua vida.
Morreu na merda:
literalmente,
toda defecada de seus gatos,
seus únicos amigos.
LA 04/006
O sangue derramado excita
e traz a sensação
da experiência da morte adiada...
Parte da humanidade
pratica hoje esse hábito
necrófilo.
LA 04/006
O tempo?
O tempo é poeira.
E no seu pó
viajamos.
LA 04/006
Bom foi o ontem
de cujo cinza, azuis e estrelas
se modelou o hoje
que haverá de entreabrir
nos fingimentos do amanhã.
LA 04/006
O homem é barro.
Mas barro constelado
de infinito.
O homem há de conseguir,
sim, conseguir chegar
àquela Casa
que ele traz dentro em si mesmo,
e não sabe, não sabe
que ela lhe está mais perto
que suas próprias mãos.
LA 04/006
Mais um fim de semana. Chove fino e manso.
A vida canta lá fora.
E há uma alegria discreta e tranqüila em mim.
Amo a alegria porque não demanda motivo.
Quantas vezes não me senti alegre entre os ventos da infelicidade!
A alegria é companhia... Talvez por isso a Bíblia
diz que ela é a nossa força. Sim, amo a alegria.
Ela é o brilho do Espírito de Cristo em nós:
o sonho-mais do Pai, soprado na criatura.
A alegria tem seus guizos de prata
e seu riso
tem o som e a cor da luz das estrelas...
para onde estamos indo ( lá dentro em nós:
sim, como Ulisses
estamos em nosso nostos... ).
Deuspai nos seja a força e o rumo!
LA 04/006
Bons tempos!
Bete era de arrepiar as retinas
e os tinos,
mas os moleques a olhavam
com cara de São Sebastião...
Pudera! Seu pai era capador de porcos.
LA 04/006
Bons Tempos!
Osvaldinho mecânico
quebrava a lâmpada do poste
pra cobrir com a noite
seu namoro com Ritinha.
LA 04/006
Bons tempos!
Às 14 horas em ponto
das quartas-feiras,
o médico do Ford preto
corria examinar
a mulher do folheiro,
que tinha ido pescar.
E o carro ficava ali
até a molecada
escrever nos seus vidros
(molhados de sereno)
palavras oniscientes.
LA 04/006
Bons tempos!
João Bosta (sic )
dava tiro de espingarda
dentro e fora de casa
para comemorar
o seu aniversário.
LA 04/006
Bons tempos!
Toninho Magrelão
pra escapar da mulher
subia no telhado...
e lá passava a noite,
calmo feito uma jibóia.
LA 04/006
Bons tempos!
O português assoviava três vezes,
e a Joaninha do leiteiro
corria a lhe levar a comida,
já de banho tomado.
LA 04/006
Bons tempos!
Casamento se consertava
com novenas
e conversa com o padre.
LA 04/006
Bons tempos!
Rosinha tomava banho
todas as tardes,
no tanque,
nuinha como a brisa,
deixando a nós moleques
com a mão muito ocupada.
LA 04/006
Bons tempos!
Os pais assoviavam
e nós íamos correndo
ver o que eles queriam!...
E ( pasmem ! ) muitas vezes
era pra nos surrar!
LA 4/006
Bons tempos!
Minha mãe no portão me disse:
Alá o Mané sem ceroulas!
E eu:
Como é que a senhora sabe?
Primeiro, me encheu a boca
de tapas,
depois, explicou entre os dentes:
É o que diz todo o mundo
aqui do Largo,
entendeeeeuuuu?!...
Entendi.
LA 04/006
Bons tempos!
Aos domingos à tardinha,
o jovem dr. Rui
ia e vinha fricoteando,
abrindo alas
com o seu manga-larga.
Minhas primas me mandavam falar
“bem educadamente”:
Mas que cavalo bonito!...
Minha avó ficava brava
com elas e comigo.
Era uma festa.
LA 04/006
Bons tempos!
Havia cachorros
que mijavam nos postes
e gatos
que andavam pelos telhados —
os bichos
ainda não tinham sido humanizados
pela solidão das pessoas.
LA 04/006
Bons tempos!
Um fato que não esqueço:
Um dia me pediram
pela fresta do muro
( eram duas belas meninas,
tendo ao fundo uma enorme casa ):
Menino, mostra o seu pinto?
Mostrei.
Mandaram virar pra cá,
pra lá,
pôr pra fora,
pra dentro.
Pediram para tocar.
Tocaram como se fosse
um ferro em brasa...
Nisto, uma delas gritou:
Mãhêêêêêêê!!!... esse menino
mostrou o pinto pra nóis!!!...
..............................................................
Até hoje agradeço a Deus
por ter sido bom das pernas!
LA 04/006
Bons tempos!
A gente nem sabia
o que era tempo.
LA 04/006
Se as águas nunca se alcançam,
não sei porque correm tanto.
LA 04/006
Se o amor precisa repetir-se,
não sei por que a gente se levanta.
LA 04/006
Diz-me quanto ganhas,
digo-te o que andas comendo.
LA 04/006
Bobo é o que pensa fazer de bobo
quem lhe percebe o intento
e lhe dá corda.
LA 04/006
Deu tanta linha para a pipa...
que o amante da esposa
o expulsou da própria casa.
LA 04/006
Melhor que uma xiranha,
só mesmo duas ou mais —
desde que suas donas
não sejam “nossas”.
LA 04/006
— Amor?! É você que tá na sala?
— E quem podia ser, Jacinta?!...
Sei lá... um ladrão...
ou o chato do vizinho
que te chama de irmão...
LA 04/006
Deixou a esposa zero:
tiraram, acrescentaram,
esticaram, rechearam...
Cones-e-sílis repolparam
aquelas partes nobres.
Gastou uma grana preta.
Mas valeu.
Seu círculo de amizade
mais que dobrou.
LA 04/006
A sogra fez um vodu
para ficar com o genro
( ficar, aqui, é morar ).
A filha quando soube
( o feiticeiro era o mesmo ),
foi honesta com a mãe:
Você ganhou,
e ganhou sem mágoas —
já que fiz um vodu
para ele se ir de casa.
A mãe explica:
Não é tão fácil assim —
ele já mora com a empregada
( no quarto dela )
desde o dia em que vocês se casaram.
LA 04/066
De Salomão nunca invejei
a enfadonha sabedoria,
mas as suas vaidades.
E mais que suas vaidades —
suas mulheres.
LA 04/006
A mágoa é uma fruta envenenada.
Você a come toda vez
que remói em sua mente
quem o magoou.
LA 04/006
Se o homem quiser gozar
o que (em)pilhou
com sua santa honestidade —
vai precisar abrir mão
de um bom punhado
do que carrega nas cuecas e calcinhas.
LA 04/006
O problema da falsidade
é que quem falseia
não se ama nem um pouco.
LA 04/006
A maior covardia
é não deixar o outro se explicar,
mesmo que sua explicação
jamais nos convencesse.
LA 04/006
O relacionamento é difícil
porque somos criaturas
que não sabem perdoar.
LA 04/006
Gostamos das coisas divinas
e nos esquecemos de ser humanos.
E, assim, nem deuses nem gente.
LA 04/006
Achamos, traduzimos e publicamos
evangelhos guardados nas rochas...
Mas não nos adiantarão.
Se aqueles que a Bíblia nos dá
não sabemos fazer nos bastar —
o abismo será sempre impreenchível.
LA 04/006
Só sentimos o impacto
de perder uma amizade
quando o tempo nos mostra
que sem ela foi bem pior.
LA 04/006
A esperança é aquele viver
a coisa
antes de acontecer
ou jamais acontecida.
LA 04/006
O homem?
Não pode ser pequeno.
Sim, não pode ser pequeno
quem inventou a esperança.
LA 04/006
O ódio
vem da vontade de ser
o que não se é
ou de não se ter
o que é de outrem.
LA 04/006
O ódio
é Narciso usando a máscara
do outro
em águas turvas.
LA 04/006
O tempo deixa as suas cascas
pelo caminho...
O vento apaga-lhe o rastro...
mas sua fome de ser
renasce no hoje.
LA 04/006
Sim: o tempo é que dá vértebras
ao ser
e o faz caminhar no espaço
e por si mesmo.
Sem o tempo
o universo é não-ser.
LA 04/006
O Novo é autófago:
tão-logo nasce,
devora-se.
Ao devorar-se
metaboliza o Velho
em Renovo.
LA 04/006
O conhecimento liberta
dentro de outra cadeia.
LA 04/006
Esperar faz existir.
LA 04/006
A palavra não dita
vira uma bomba acesa.
Dita,
faz a angústia em pedaços.
Escrever me faz rir.
LA 04/006
No que toca a juízo gratuito,
faço questão de não julgar.
Para isso, não entendo.
Faço questão de não entender.
Como posso ter a pretensão
de entender
o que está entre o ato e a mão?
LA 04/006
A justiça faz muito bem
em ter sua deusa de olhos vendados.
Senão não teria coragem
de julgar.
LA 04/006
A justiça dos homens
é, sim, panos de imundícies,
como disse o profeta maior,
Isaías.
Mas sem ela,
não haveria humanidade —
nos dois sentidos.
LA 04/006
Quando dizia que te amava,
amava mesmo.
Amava-te por amor a mim.
LA 04/006
Quando o amor é só uma sombra
entre nossos sapatos,
não adianta o diálogo —
quanto mais se conversa
tanto menos se entende.
LA 04/006
O Amor está para a verdade
como o sentir para a luz.
LA 04/006
Não havendo boa vontade,
nem dá vontade.
LA 04/006
Quem se nega a ouvir o outro
é alguém muito arrogante
e muito mau.
LA 04/006
Muitas vezes
do degrau em que estamos
só dá para enxergar
nosso nariz.
LA 04/006
Nosso nariz
não é assim um grande patrimônio.
Ser “dono” dele
não deveria causar
tanto orgulho.
LA 04/006
Devagar se vai ao longe...
Se bem que ao chegarmos,
o longe vira outro longe.
LA 04/006
Competir é uma maneira
de copiar os outros —
por clara falta de competência,
ou versatilidade.
LA 04/006
Querer ser amado pelo outro
é no mínimo exigir dele
um bem que poucos têm.
LA 04/006
Amor se dá,
não se mendiga,
ou vende.
LA 04/006
Uma boa tantada de ternura,
uma certa alegria de estar-com,
claro respeito pelo humano,
um bom punhado de boa vontade —
isso faz bons companheiros.
LA 04/006
O homem se adapta
segundo as necessidades
e muitas vezes até consegue
ser feliz na infelicidade.
LA 04/006
No Natal e Ano
consegue-se dar comida a todos.
Nos outros dias, não.
LA 04/006
O mundo dá muitas voltas,
e nunca passa pelo mesmo lugar.
É por isso que deparamos
com muitas coisas-nós-mesmos...
LA 04/006
A mão que negamos aos outros
vai nos fazer muita falta.
LA 04/006
O eu é o tu
na própria essência
de ser,
já que um sem o outro
não teria
para onde se mover.
LA 04/006
O uni é o rosto do que vemos,
já o multi de seus versos
é o que não conseguimos ver.
LA 04/006
Há muitos dedos entre um dedo e outro.
LA 04/006
Havia muitas Lauras
na Laura
que alguém não conseguiu amar.
LA 04/006
Já André achou sua Maria
entre as Marias com quem sonhou.
LA 04/006
Muitas vezes,
não é um caso de saber
procurar,
mas um jeito de saber
achar.
LA 04/006
O paradoxo
é a coisa em seus dois
ou mais
lados.
LA 04/006
A metáfora
é a ave pega
pelas penas
ou pelo vôo.
LA 04/006
Fazer amor ( com amor )
é aprender a ser um
e conhecer a unidade
do universo.
LA 04/006
A sorriso dado
devolvem-se os dentes,
ou só os lábios.
LA 04/006
Mona Lisa sabe,
e cala.
LA 04/006
Ninguém conhece a laranja
sem antes levá-la à boca.
Muitos a chupam com sal
a vida inteira.
LA 04/006
Bom é não contar com a bondade
das pessoas,
mas encontrá-la e tê-la
no mecanismo da Vida,
que move pessoas
e estrelas.
LA 04/006
Lá fora os pardais fazem uma festa
de cantoria.
Aprenderam uma vez
e nunca mais se esqueceram.
LA 04/006
Já os homens se esquecem de coisas
as mais preciosas da vida —
e querem ser felizes!
LA 04/006
Sim, a simplicidade
há de ser o suporte
de uma vida de bem consigo mesma:
saúde, paz interior ( e até exterior ),
crescimento-organização
e supra/auto/realização —
enquanto se empreende a travessia
do mundo e de si mesmo.
LA 04/06
A alegria nos fortifica
porque não tem os miasmas
da gula e do poder —
vem do Senhor
para os que Nele
tem o seu coração
e sabem respirar-Lhe vida.
LA 04/006
A fé são pontes que só servem
aos pés que a têm:
após passarem se recolhem
para dentro da criatura —
de travessia em travessia
pelo mundo e por si mesma.
LA 04/006
O Amor nos porá a mesa
para cearmos com a Vida
suas iguarias de luz.
LA 04/006
O ser ousa para transcender-se.
Sim, ousar é chegar em alma
e sonho.
É surpreender-se entrando
pela porta de ser-se.
LA 04/006
A esperança
é o sonho sabido possível
por corredores de já vivê-lo.
LA 04/006
Saber é jamais desesperar-se,
jamais sentir-se vencido.
É ter em alma a chave-modo
de abrir o por dentro do sonho
e já viver naquela Casa
em nós.
LA 04/006
Querer é não ser levado.
É processar o caminho
que se metaboliza
na realização do sonho.
LA 04/006
Calar é conservar a força-plasma
agindo por canais de silêncio
junto com Ele.
É, portanto, conservar-se longe
da erosão da descrença
e do deboche.
LA 04/006
Poder é estar Nele.
O mais é prepotência.
LA 04/006
Quando te sentires perdido,
pergunta pelo caminho
em sensações lá em ti —
pergunta bem baixinho
com fonemas-sensações.
Teu coração o sabe.
Sim: ele sabe o caminho.
Pergunta, pois, a ele
e todo o chão à tua volta
se transforma em recordar.
LA 04/006
Ansiar pela coisa
faz afastar tal coisa.
Queira-a bem de leve,
e ela virá lamber-lhe a mão.
Ou não virá,
mas estará por perto.
LA 04/006
Se detalhas a alguém os teus sonhos,
eles não se darão.
Ninguém é tão especial
que não queira levar para casa
as mais belas rosas
de um jardim.
LA 04/006
Se a pedra volta sempre
para o fundo do vale,
deixa-a lá.
Sísifo é a nossa insensatez.
LA 04/006
Arrombar portas
não traz felicidades.
A vida é que nos tem
que abri-las.
LA 04/006
Se algo não se deu,
agradece.
Antes ter olhos para chorar o pouco
que não tê-los com o muito.
LA 04/06
Mudar é muito difícil,
mas é o caminho,
um caminho que dói.
LA 04/06
Alguém mudou a servidão
em caminho de Vida.
Aceitemos o trabalho feito!
LA 04/006
A gratidão
é o maior sinal de inteligência
numa pessoa.
Todos somos devedores
a toda a humanidade
em sua história integral.
Só saber isso não basta,
é preciso vivê-lo.
LA 04/006
Ninguém está terrivelmente certo,
pode estar menos errado.
LA 04/006
Se o muro caiu,
cabe aos vizinhos dos dois lados levantá-lo.
Isso é tão antigo quanto esperar
que o outro tome a primeira atitude.
LA 04/006
As rosas que não lhe mandei,
por não saber se devia,
deixaram-me alguns espinhos.
LA 04/006
Às vezes, por puro orgulho,
esperamos que o telefone toque...
Mas o orgulho é tão grande,
que ele não toca.
LA 04/006
Equívocos mínimos
tornam-se barreiras intransponíveis,
quando não se tem a humildade
de ao menos tomar a dianteira
e tentar explicar.
LA 04/006
Há um tempo para tudo,
e um tempo em que já não dá tempo.
LA 04/006
Sim, a vida é tão pouca,
que em geral não dá tempo.
LA 04/006
Na mocidade agimos
como se fôssemos viver
no mínimo quinhentos anos.
LA 04/006
Com uma dor calada
notamos
que o aço do espelho está indo embora...
LA 04/006
O galo cantou três vezes.
Não há como não lembrar Pedro,
que O negou
apenas três vezes.
Invejo Pedro.
LA 04/006
Triste, mas a Semana Santa
funciona a bacalhau e chocolate.
Da Páscoa mesmo
povão não tem nem idéia.
LA 04/006
Por falar em bacalhau,
seu Mané Pois-Pois,
dono do Empório Lisbonense
( Por que diabos Lisbonense,
Manoel? — lhe perguntavam —
tu não és de Leiria, homem?!
Resposta: Raios, porque é imponente!...
Soa solene... ),
o seu Mané, dizíamos,
tinha em sua bela venda
cinco saudáveis raparigas
( por coincidência todas crioulas )
a ajudá-lo em todos os setores.
As freguesas mais experientes,
senhoras calejadas de vida,
detestavam serem servidas por ele...
Tais matronas diziam
que mesmo usando luvas
tudo quanto o camões tocava
ficava insuportavelmente
cheirando a bacalhau.
LA 04/006
Ri um pouco, Ferraz, —
dizia-lhe a companheira.
Ri um pouco, Ferraz,
que ninguém é de ferro.
LA 04/006
Ela era dura, sem graça,
dura como um martelo.
Mas quando elogiada,
quando afagada por palavras,
virava um bem-me-quer à brisa...
virava paina... voava...
Já então não lhe faltava azeite
e graça aos movimentos.
LA 04/006
Quando Maria não vinha,
nem o canto do bem-te-vi
lhe interessava...
Nem o virado de feijão
lhe descia...
Nem a pinga com limão
do Mané Gostoso
( epíteto que granjeara
na mocidade... )
lhe acariciava o esôfago...
Queria mesmo era aquele chãozinho
entre colinas,
trançado de urzes
em que Maria chovia
de verdejar a alma...
Em que Maria chovia
batendo a corda do arco-íris...
LA 04/006
Rosa, Rosa, chores não,
que pintas este chão
com os cílios dos teus olhos.
Rosa, Rosa, toma tento,
que esse moço, esse tal vento
não é par para você...
Também as águas nos escolhos
esgarçam seu chiquê...
Rosa, Rosa, chores não,
que pintas com teus refolhos
a relva rala do chão.
LA 04/006
Laurinha era mais bela
quando morava na outra margem.
Sim, a distância e a saudade
fazem as pessoas mais interessantes
e belas,
mais esperadas e amadas.
Adoramos o que não podemos.
Nos deliciamos com as idéias
que viram sonhos
e possibilidades.
Ter, muitas vezes, nos frustra,
sonhar em ter é gozo
enquanto o que se sonha é espera.
Ser tem suas raízes
fincadas na esperança.
Já a fé
é a pastora do ser...
enquanto o amor
é o dínamo
que acende as luzes da casa
e ilumina os nossos passos.
LA 04/006
Jogaremos o mundo de nossos ombros,
tomaremos uma pinga no boteco
e mijaremos nos pés de toda a pressa.
Não seremos heróis nem bandidos,
nem santos nem devassos,
nem desonestos demais, nem honestos de menos,
nem o que a vida faz pra se manter —
um devorar-se uns aos outros,
na selva,
na escola,
na igreja,
na rua.
Um devorar-se entre os bárbaros
e entre os civilizados —
aliás, qual a diferença
entre esses tais?
Será que as há?
É viver e aprender.
Um dia a gente aprende
a desaprender.
LA 04/006
Para a pipa ser tua,
terás de manejar bem
a linha que lhe dás.
Mesmo assim, ser da gente
é só um modo de dizer.
LA 04/006
Há a diferença da diferença
e a diferença do diferente.
LA 04/006
A diferença que há entre um e outro
é a mesma que há entre outro e outro.
LA 04/006
De que valem as semelhanças
quando não sabem ser diferentes?
LA 04/006
Diferir é aprender
por semelhança:
ver que o “não” e o “sim”
não se excluem,
mas dão possibilidade
à escolha.
LA 04/006
A ave passou.
Só ficou
o rastro do seu vôo
na memória...
De modo que passou
no espaço,
em mim não: em mim
posso vê-la passar
quantas vezes quiser.
Por isso, Rosa,
é que de ti me basta um beijo,
um carinho,
um chamego —
o mais, me viro com a memória,
e deixo para uma outra hora.
LA 04/006
Para lidar com o mecanismo
da paciência
sem angustiar-se —
é necessário praticar.
E vale a pena,
já que o que mais fazemos
é esperar.
LA 04/006
Ah, sim! Os olhos
são para quaisquer cenas —
sabem chorar,
sabem sorrir,
atapetar abismos
e fabricar vazios.
Sabem ver anjos
e conversar com eles.
Sabem ver Deus
e mandarem a boca descrevê-Lo.
Bons atores.
Sabem até não ver.
E ( claro! ) são as janelas da alma,
isto é, o que há de mais astuto
numa pessoa.
Olho no olho
faz toda a indiferença.
LA 04/006
Falsidade com falsidade se paga?
Não, se nega.
LA 04/006
Amor com amor se paga?
Não, se transa de graça.
LA 04/006
As mulheres capricham
quando vão a um enterro:
muito aprumo
e altivo charme.
Sabem que a morte
é a maior traição da vida.
O resto nem o é.
LA 04/006
Ah, ver Glorinha vale a perna!
E ainda joga um bolão —
direita-esquerda, direita-esquerda, direi...
Só vendo.
LA 04/006
Domingo, depois do almoço,
eles chupavam macaúva
bem devagar,
até a mãe dela
bater à porta do quarto
de leve e dizer com voz de sombra:
Tô indo à missa,
a comida
é só pôr no micro...
LA 04/006
O anel do coveiro
de vez em quando é roubado.
E ele diz que era de ouro
com um enorme brilhante...
Mas... vai saber!...
O morto o levou pro céu.
LA 04/006
Laura, Laura!
Antes que te tornes pó,
bem que podias, rapariga,
me encher de cisco estes olhos,
de argila rósea estes dedos!
LA 04/006
Ela adorava viajar.
Voltava sempre cheia,
cheiiiinha
de inesquecíveis impressões
digitais.
LA 04/006
Dava com total apoio
do marido.
Inclusive ele costumava
dar suas botinas novas
pro cunhado amaciar.
LA 04/006
Só comia galinha caipira.
A mulherada
jogava até diploma fora
e aprendiam o ruralês.
LA 04/006
Ela era enjoada —
mandava entrar na fila
( dois, três, quatro, cinco anos )
e ter paciência,
sim: esperar
com toda a calma deste mundo.
Quem tentasse furar
ou subornar
não entrava em seu circo.
Outros, já velhos,
iam para Deuspai
sem partilhar do espetáculo.
Ante o problema,
o prefeito, muito humano
( ele próprio um centenário ),
decretou:
Primeiro os mais velhos...
( quase me esquecia de dizer
que isto se passa nos anos 2038,
tempo em que o entretenimento
é pago pelo Município
em parceria com o SAS,
Serviço de Assistência Sexual ).
Deu certo, daí pra frente
quando um velhote morria
( pois já tinha ido ao circo
de Lola ) —
ficava com a cara
tão vidrada e beata,
que a maquiadora lhe dava
de 4 a 6 tabefes
pra perder cerca de oitenta por cento
daquele arzinho sem-vergonha.
LA 04/006
Era bela como o vento
erguendo a saia de Monroe...
Sim, era uma almofada tão hi-tec,
tão aerofofurante,
que investiu seu patrimônio
com um suíço de Genebra.
Este centuplicou-o
em menos de três anos.
Fez um sistema de seguro
daquelas peças nobres
e bem antes da velhice
estavam em quase um bi.
Daí pra frente foi gozar
a vida
e rir dos homens.
LA 04/006
Vaidade das vaidades!
Ainda bem que tudo,
seu Salomão,
são vaidades.
Se fossem coisas sérias ( credo! ),
que iríamos fazer com elas?
LA 04/006
Mãe É Mãe
Mãe é mãe e, como mãe,
sempre o advertia:
André, Andréééé!...
Esse negócio de querer comer
sempre no mesmo prato
e no centro do mesmo restaurante —
ah! isso, meu rapaz,
anda cada vez mais antigo.
Encrenca, André,
a gente não precisa procurar!
Por que não vai, menino,
pentear macaco,
caçar sapo,
tiziu no visgo
ou qualquer outra coisa,
menos casar, ó homem?!
Não vê que hoje tá todo o mundo
praticando alpinismo adoidado?
Não vê não, cara?
Por que não vai também?
Da altura dos seus 39,
bacanão, magro, esguio, etc. —
é fácil de trepar.
É só se apetrechar:
belos panos, cheques, cartões especiais,
pedacinhos de ouro
pendurados aqui, ali...
um carrinho importado,
de segunda, terceira mão...
E olhar, olhar fatal —
entre Bond ( sim, o James )
e São Bráulio falando às andorinhas...
E o verbo, é claro: liso, doce, jovial,
leve, lépido, inteligente... e sempre,
sempre e sempre aquiescente...
No começo, natural diga bobagens,
coisas que jamais devia demonstrar...
Depois vai ficando cada vez mais fácil,
nem precisa pensar... as palavras se aglutinam
num nada delicioso... quanto mais vazias
mais belas, mais amadas, mais na moda.
Repito: se hoje lhe falta jeito, Andrezinho,
jeito para escaladas —
comece pelas colinas...
Sim, depois chegue aos urubus,
às águias, aos condores,
aos cobiçados picos.
Mas pelo amor de Deus, meu filho,
trepe onde quiser: pé de banana,
berinjela, jabuticaba... mas a lenha
da árvore, ah, essa nunca traga pra casa!
.....................................................................................
André ouvia calado, sem bocejar
nem mostrar enfado —
a velha não era de se pegar com a mão.
Tanto que, para afastá-lo de Clarice,
dona do escritório da esquina, e bela —
barbaramente bela e boazuda,
esverdeou-lhe o bolso e o mandou
realizar seus sonhos pela Europa.
O primeiro: dizer Je t’aime pra uma francesa
terrivelmente francesa.
O segundo: ser fotografado bebendo
água do Tâmisa... Era ecologista verdíssimo.
O terceiro e mais outros: não ficaria bem,
leitora, saberes por minha boca... Não gosto
de chocar nem de fazer vontade...
Mas voltemos ao André que... eis após três meses
voltou casado e ambos ( filho e nora )
estão bem instalados: morando
com dona Severina, a mãe do André.
Calma! Já ia lhe dizer: André casou com uma inglesa:
alta-alta, bem mais que ele, mas leve, graciosa:
branca-branca com aquelas pintas
cor de açúcar mascavo... nas partes celestiais...
e alegre, jovial, contente, simples como o 14-Bis,
calma feito quem toma chás de maracujá...
E aquele rosto emoldurado por uma cabeleira
longa e cheia, entre o loiro escuro e o ruivo.
Aquele rosto risonho-sério, de um feio belo —
uma beleza solene.
Severina, já quase conformada, quase
maternal, não cuidava: zelava dos dois...
e mais que uma vez por dia pensava,
dizia lá na sua alma de mãe:
Ah! O meu André, o meu André saiu ao pai —
um excelente alpinista! E ficava saboreando de memória
seus belos tempos de moça, tranqüila como a nora inglesa.
LA 04/006
Capricha, amor,
que esta pode ser a última.
LA 04/006
Risos-Dores
Gargalharei de amor tão displicente,
que pensarão esteja a me coçar...
Mas não: as minhas mãos estão em frente —
só ocupadas em escrevinhar.
Por isso, minha amiga, é bem prudente
não se julgar sem antes constatar.
Aliás, que fora mais grandiloqüente —
engalanar o verbo ou se calar?
Sim, amada, rirei, rirei de amores,
rirei até que esses risos-dores
já não me lembrem de ter rido e doído.
E de nós dois, amada, há de restar
um sentimento de algo que, em ter sido,
só foi de uma ave a pena, sem voar...
LA 04/006
Xota moça assovia quando faz xixi,
e canta qual colar de pérolas
que se rompe
na bacia
numa festa loirinha de espuma.
LA 04/006
Outono-inverno. As tardes muito frias.
À noitinha uma sopa bem quentinha,
um bocejar em frente da telinha...
e, no mental, já ensaiando a manha
de um abraço apertado de xiranha.
LA 04/006