DIZER PARA SOBREVIVER
Laerte Antonio
..................mesmo porque, compadre,
é a mulher como ela é que é bom
e belo.
Se muda ( imagine! ) o jogo,
a graça vai pro brejo.
E é nesse fazer gato e sapato
que mia o gato,
se manda o rato,
é engolido o sapo
e pelo chão
se esfrega o trapo
e uiva o cão —
mas isso é bom,
e como é bom!
Rainha ou camponesa,
Quenga ou mãe diligente,
doutora ou sua empregada,
inteligente ou sonsa
( ontem-hoje-amanhã ) —
é a mulher como ela é
que é bom e belo.
Ah, tira esse bichinho
( que governa atrás da luz )
danado de tão esperto
( e que desperta o dia
e enche a noite de imaginação ) —
tira essa divina enganação
da vida —
e quem é que vai querer
escalar o Evereste
ou fazer outras gracinhas?
Que gênio ou papa
teria feito o que fez?
Pois é, compadre,
toda a beleza deste mundo
é a mulher ser
como ela é.
Se mal não lhe pergunte,
que é que fez Deus depois que a fez?
Se foi. Picou a mula.
Viu que ela daria conta
LA 05/005
Por Rosa
Quem ganha a rosa
também leva os espinhos —
seus bravos samurais.
E haja dedos
para colher a rosa,
e coração
para abraçar-se
com Rosa!
A rosa é a rosa —
o resto é flor.
A Rosa é a Rosa —
o mais é mulher.
Rosa, rosa, Rosa, rosa —
flor-mulher,
mulher-flor.
Não serve uma flor qualquer,
tem que ser um bem-me-quer,
e ( claro! ) dado por Rosa.
LA 05/005
No amor, a mão passeia
entre a rosa e os espinhos —
esses dois dão bons chiliques.
LA 05/005
A vida, o tempo
vão arredondando as coisas...
e tudo flui mais espontâneo,
mais concessivo.
Se o doer é pontiagudo,
pelo próprio doer
e já se espraia
sobre si mesmo —
e se perde entre o sol e a areia...
A vida, o tempo
têm o remédio
para as feridas impensadas...
aquelas em que, por serem na alma,
não se pode pensar...
mas esses dois ( a vida e o tempo )
têm mãos que chegam lá.
A vida e o tempo
vão ensinando
a gente a desaprender
para aprender sempre mudado
e sempre condizente
com o sentido e a bênção
do nosso não-saber.
LA 05/005
Saudades Rangentes
Saudades ( que ninguém é de ferro! ).
Rangem saudades
com risos ofegantes
( lembras, Rosa? )
na penumbra do porão...
Sim, o porão do casarão
cheirava a chulé...
As paredes de pedra
com sorriso banguela...
olhavam tão duras...
A empregada Carolina
sempre querendo dedar:
Nossa! dona Vitória,
tenho tirado todo o santo dia
de cima da caminha francesa...
punhados e punhados de pétalas
de Rosa...
Dona Vitória acudia:
Em meados de julho, menina,
o vento é muito forte
e despetala mesmo....
— Mas, dona Vitória,
eu falo de Rosa,
da sua Rosa!
— E só porque é minha
não pode desfolhar?
Ora, ué, menina!
E quer saber?
Rosa que é de verdade
tem mais é que desfolhar!
....................................................
Aí Rosa renascia:
de quase murcha
para orvalhada de chuva fina...
E tudo se recompunha
lá por dentro da gente.
André, de alma nova,
ainda cheirando
aos abraços de Rosa.
Tempos preciosos...
que rangeram em novos tons
suas ciberdivinuras.
LA 05/005
Era Uma Loira...
Era uma loira de folhagem preta,
mas nem por isso menos fofolhuda —
só tinha uns carvõezinhos na xexeta...
que fazia um beicinho e era miúda.
Também não era assim tão mamazuda,
nem tão mesquinha como uma chupeta...
mas claro que gostava da mutreta
dos calços... pra mostrar-se bem graúda...
Era uma loira, pois, das bem normais —
cílios também bem negros e o sovaco...
E mais bela que muitas naturais...
Era uma loira muito distraída,
tanto que até instalou no seu barraco
o marido da amiga preferida.
LA 05/005
No Restaurante
Traga-me um vinho
que tenha nuanças
de céu alemão ( no inverno ),
caráter entre sofista-epicurista
e sexo gay.
— Gay, senhor?
— Sim. Hoje briguei com ela...
— Ela quem, senhor?
— Isso não lhe interessa, sim?
Traga-me um vinho
que ( além de todos aqueles tiques )
tenha a alma e o espírito
de filósofo cínico —
tipo Diógenes: pelado
( dentro de uma barrica )
ou pelas ruas de Atenas
com uma lanterna na mão
à procura de um homem...
— Não serve uma mulher
( pergunta-lhe uma feminista da época ),
rodando uma sacolinha
de couro de crocodilo na esquina...
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Mas Diógenes era surdo
( isto pouca gente sabe —
pois nem a história diz... )
Taí ó: um...
— Taí o que, senhor?
— Espere eu terminar a frase, sim?!
Taí ó: quero um vinho de alma cínica
( pode até ser assexuado,
mas cínico ),
sim, tenha um caráter cínico...
e por conseqüência produza
um porre bem tal e qual,
isto é: diogeniano...
— Deixe comigo, senhor.
Depois da segunda garrafa
verá que sou um bom enólogo...
E para comer, senhor?
— Chifre...
— Chifre, senhor?!
— Deixe-me completar, sim?
— Chifre de búfalo macho,
fatiado bem fininho —
sirva sangrando...
— Será servido sangrando, senhor.
LA 05/005
Não, Não Me Darei A Esse Luxo...
Se me morrer por suas pernas,
deixo de ter as de Rosinha
( tão desfolháveis! ),
as de Leopolda ( tão rugientes! ),
as de do Carmo
( tão branquinhas e pudicas! )
de que nem falo...
só faço um verso que as disfarce:
Duas colunas sustentando um éden...
Verso antigo,
balanço de acalanto,
sáfico e safado —
sugerindo um dossel de pêlos
( triângulos e elipses )
de várias cores
e macios como a penumbra...
Se me morro por seus seios,
perco aqueles de Rosinha —
petaludos e cheirosos.
Perco aqueles de Leopolda —
o esquerdo túmido de vinho...
o direito derramando de mel...
Perco aqueles de do Carmo —
redondos e monásticos:
dois coelhos com o focinho
a farejar o mundo
por detrás do gorgorão,
fingindo não ter sede...
Se me morro por teu amor,
perco aquelas três lareiras
que me dão do seu fogo,
me repartem seu vinho
e me agasalham
com a sua pelúcia.
Se me morresse por você,
perderia a certeza
de que você e as outras três,
nenhuma de vocês
me levaria sequer
um pobre de um bem-me-quer.
LA 05/005
Duro é ir endireitando
no entendimento
o que Deus escreve torto.
Sim, pela renovação
do nosso entendimento
vamos endireitando
o que Deus escreveu
num outro ângulo...
E não nos conformaremos
com as coisas deste mundo
até que nos vejamos transformados
por tudo o que reciclamos
em nossa mente.
As pedras não têm pressa,
mas nós havemos de ter —
pressa de endireitar
nossas veredas...
Sim, pressa de voltarmos
( dentro do aqui-e-agora )
para aquela Casa em nós.
LA 05/005
A Luz De Cada Dia
As bananas de ontem estão podres;
verdes, as de amanhã. A vida é hoje.
Sacar o tempo de ligeiros coldres
não nos remoça, a vida sempre foge.
Deus tem por nós uma paciência-monge —
chama-nos para arrazoar... e cobre
os vidros que quebramos desde longe...
e a nossa gratidão é sempre pobre.
Ontem-hoje-amanhã só nos existem
por serem nossa estrada em que consistem
nosso ser e não ser já a re-ser...
Nossa oficina é a luz de cada dia
em que uma a uma as notas vão tecer
uma tolice ou bela sinfonia.
LA 05/005
Saber-Te
Saber-te, Rosa,
inteira inteira inteira...
Saber-te com sabor —
para quando lembrar
de saber-te
eu sinta o gosto
de tuas pétalas —
e recordar então me seja
jamais sentir
nenhuma falta.
LA 05/005
Banzo de Ti, Deuspai —
lá de Tuas varandas
em que eu vivia na ventura
sem me saber venturoso.
Banzo de Ti, Deusmãe —
em que me sentia acariciado
lá por mistérios de ser-Te
antes de queda a corpo.
Que eu volte a Ti, meu Deus,
na nave-amor do Filho —
sem pressa nem frenesi.
Daqui levo saudades do futuro
e dos pecados de amor
( de que Te peço me perdoes ):
as belas fêmeas que me cavalgaram
e em que montei como príncipe
ou vagabundo
carregando a roupa na mão —
porque evinham os donos...
E o mais, senhor, o mais foi bom
como se nada houvera sido.
LA 05/005
Sem Título
Defunto adiado
pisando a própria sombra,
sigo contente por mais um dia
de bênção vida
Vou com meus três companheiros
que não deixei o mundo me roubar —
a fé
o amor
a esperança
Quando era moço sabia,
agora sei muito pouco.
Levo igualmente comigo
o humor
o riso
a gargalhada —
que sempre me ajudaram
Canto pelo nariz
canções que nunca ouvi
Não tendo ninguém por perto
por vezes assovio:
me lembra pássaro,
fico sabendo que a meu modo
posso voar,
sim: dispensar andaimes
Deixo minhas pegadas
no por dentro de mim mesmo,
assim não me perco de mim
Só leio os loucos que acrescentam —
os que fazem de sua doença
alguma realização
e ( claro! ): sublimação
Abomino o tédio, o pessimismo —
esse entregar-se às sombras de si mesmo
Tenho um quê por mulheres
charmosamente feias
e que enganam a própria sombra —
a um tempo generosas,
terrivelmente generosas
e letais
Cá do poscênio, gosto de ver nelas
essa coragem
e habilidade ferais
Gosto do sol, da luz crua,
da penumbra cheirosa
Drogas, só duas:
poesia e sexo —
de que procuro
não ser refém
Tenho em alma
a amada, o luar, a vinha
de Cântico dos Cânticos —
um erotismo
com perfumes do céu.
E porque vou morrer
cultivo em mim a alegria
que é o sentido da vida
e não exige motivo
LA 05/005
Copo D’água
Sim, um fazer amor,
um sexuar maduro,
claro lúcido —
tipo eu quero-você-quer
e que a ninguém prejudique —
bom como tomar um copo d’água,
belo como ouvir por acaso
a canção que nos lembre
aquele tal perfume:
desejos fartos-cálidos
na corola dos lençóis
Feminezas sovadas com machezas
e levadas ao forno da paixão,
da entrega-uma-só-carne —
e a delícia crocante
de orgasmos gagos,
bem gagos e engasgados...
dentro da noite fria
Sim, noite fria-fria
com o vento a dedilhar na vidraça
LA 05/005
Me engane, que é uma delícia!
Um perfume-afrodisia,
um fremir pelas vísceras
em você me enganar.
Secretamente sabê-la
“diversa”
é delícia que não reparto —
a não ser ( compulsoriamente )
em repartir você.
Há um cheiro de outros
em sua pele
enquanto o seu olhar reluz lembranças
de dedos que não foram meus.
Mas isso é bom,
bom como nem precisar
que isso seja bom.
Que graça teria a vida
sem os seus ( dela ) fiéis enganos
tão necessários e vitais?
E que sentido,
que sentido teria
o sem sentido de amar você
para esquecer-me de mim?
LA 05/005
João-de-barro
disparou sua risada,
sua risada endereçada para nada —
portanto a tudo.
Será o mesmo arquiteto
que ano após ano faz a sua casa
lá num dos galhos da enorme ficheira
logo à direita e ao lado desta casa?
Vai saber! Pra ornitólogo
faltam-me penas e vôos...
Do que será que esse simpático bichinho
está a rir, sempre a rir?
De si, de mim, de você, do mundo
ou de seu não saber de nada disso?
Será que o pedreirinho é feliz?
Se for, não saberá...
João-de-barro não precisa
de felicidade,
só de alegria,
de alegria: pois esta não requer motivos.
A alegria é o pão de Deus
na criatura —
ela o come ou deixa amanhecer...
É força da alma
e faz remoçar o coração.
Você já viu como é alegre
cada folha do jardim
dançando com o vento
por entre a chuva fina?
Canta, joãozinho, canta,
Dispara as suas risadas,
que a alegria não precisa de razões.
É graça-força de Deuspai,
que mora na criatura.
Aqueles que acreditavam
num atalho para o paraíso
caíram no precipício.
Preferiram o status de leão morto
à condição de cachorro vivo.
Em geral,
ante as cruas provações,
a passividade,
a covardia ( bem calculada ),
a paciência de cão
é que são o melhor atalho
de nem se precisar de atalho...
A lucidez é saber que a luz
é um bom refúgio
para os que não temem as sombras —
e até transitam
com certa facilidade
tanto deste como do outro lado
de ser.
A inteligência embutida no amor
é um bom atalho.
Já a fé
( que o mundo sempre quer engordurar... ),
a fé é ter chegado.
LA 05/005
A solidão é uma ilha
cercada de gente por todos os lados,
menos por um
que se liga a nós.
Ser sozinho é impossivelmente
belo e compensador —
que o digam nossos amigos
( aqueles que ainda não se tornaram
inimigos ).
Que o digam também nossos cônjuges
que de tanto fazer amor conosco
descobriram que não nos amavam,
isto, claro, dentro de um vice-versa.
A vida é bela não pelo que nos dá,
mas pelo que promete
( se bem que não remete )
e pelo que insinua —
crua e nem sempre nua.
Melhor que um muitas vezes é nenhum,
se bem que só vemos isso tarde da noite.
O mundo sempre quer sujar com suas secreções
o que temos de mais precioso,
o que nos foi dado de mais belo.
Celibato é bom quando a cela fica aberta
e a cama é larga e reforçada.
Sim: do outro lado a relva é sempre mais verde
e roubá-la é gratuito...
Há os donos das cabras,
os que as pastoreiam
e os que comem do seu leite e sua carne.
O mundo é dos espertos? Não,
dos canalhas —
caso contrário o mundo não tem donos.
Nada como um dia atrás do outro
e trinta no fim do mês...
Por quê? Porque no fim do ano
a gente vê que foi tudo o mesmo...
.....................................................................................
Vós que sois os pequeninos —
Sossegai! E lembrai-vos:
Depois da tempestade, vem o enxurro.
Salvai ao menos vossas vidas,
que o vosso barraco e pertences
serão filmados com capricho,
solidariedade e extremo respeito
enquanto são tragados pela correnteza —
com efeitos especiais,
espetaculares e espetaculosos...
O homem é um ser empático
só no que dura o impacto...
e gosta mesmo é de estar
passando sua flanela
no sorriso do próspero.
Sim: ama o próspero
como a si mesmo.
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A solidão é uma ilha
cercada de gente por todos os lados,
menos por um
que a liga ao cinismo.
LA 05/005
Safra 78
Safra 78. Tome um golo, —
este acompanha
mulheres bronzeadas,
tostadinhas de praia,
degustadas com pena e tudo
ou sem — bem à vontade do freguês.
Este acompanha aquelas
( também ),
à luz de velas,
as tão caras quanto mais belas
sem apegos nem trelas —
sim, é comê-las e descomê-las
ao mesmo tempo que tê-las
sem detê-las
ou muito menos mantê-las.
Sim, deguste-as com bastante vinho
e sem pena
se a falena
vier se queimar nas chamas
das velas.
Deguste-as bem devagarinho
e ao metabolizá-las
em alma —
saboreie
aqueles divinos tons
de orgasmos.
LA 05/005
Mas veio o tempo
e o tempo trouxe um ver por outros ângulos...
Como éramos pensados
e sonhados, meu Deus!
E induzidos
e facilmente profetizados!...
E fomos aprendendo,
aprendendo,
apren...
E veio mais tempo, mais tempo
e com eles outros tempos —
o ver por novos prismas...
Outras portas de ver
como somos reféns
do mundo, da sociedade, de nós
e do que repudiamos,
aborrecemos e amamos...
Sim:o passado nunca acaba de passar...
Outros, sempre outros tempos,
outros tempos, outros tempos...
até que, hoje, Deuspai,
a gente não sabe nada.
Sim, finalmente aprendemos
a não saber.
E quanta espera
pelo sonho dourado,
tempos, tempos após tempos!
E verdes, sempre verdes —
os tempos estão sempre verdes...
............................................................................
E que bom que nos foi
aprender a não saber.
LA 05/005
Da China
Era de dar um frio na barriga
quando ela passava
fazendo os ladrilhos cantar.
Notas, um compasso binário e percussão —
nascia uma canção e o estribilho:
A rosa gay se desfolha
pra femineza passar...
A beleza e a verdade
têm em si a força
que as fazem
verdade e beleza.
A rosa gay se desfolha
pra femineza passar...
Sim, quando ela passava,
num jeito de brisa e x-tudo,
era preciso dar um nó
(lá no mental, é claro, )
pra coisa não dar bote...
Madame adorava exclusividade,
quando um político,
em campanha ( desses que faziam
suspirar moças e coroas ),
disse romântico lá do palanque,
com os olhos fitos nos dela,
que até há um segundo atrás
jamais vira o rosto de um anjo...
ela deu uma gravata
em seu motorista preto
e sarado
e sugou-lhe a boca
por bons e eternos segundos...
Acabou com o comício
e foi chamada
de desentupidor da China.
LA 05/005
Deixa um pouco de amoras para mim,
pro sanhaço, o sabiá e o bem-te-vi.
Essas frutinhas lembram-me o carmim
da aurora e o roxo pio da juriti...
Ah, se alguém vir flanando por aí
o de cachimbo e gorro carmesim,
avesso ao passo humano, o tal Saci,
que o faça ver que um “não” implica um “sim”...
O que tem o Saci a ver com amora?
Pode ter tudo, a depender da hora
e do tempo de amor ou desamor...
Não é tempo de amor, eu sei, Rosinha...
mas sendo a amora de tal tom e tal sabor,
a gente pode se virar com a tal frutinha...
LA 05/005
De tempos em tempos
uma luz do céu
nos insemina a alma —
planta em nossa vida
outras veredas de ser:
damos mais um passo grupal —
essencializamos sonhos
e vamos nos transcendendo —
aprendemos a chegar
não só pelo conhecimento,
mas pela fé —
dom que faz a nave
partir antes de construída...
e nem por isso menos verdadeira.
É portanto no hoje
que a humanidade
está sempre mais consciente.
Em termos de homem e cosmo,
hoje está bem melhor.
nem sempre corresponde
com a sociedade —
esta é produto que vem de dentro
daquela,
num movimento circular contínuo.
A avaliação entre uma e outra
só reflete a verdade
quando feita a certa distância...
Vista de perto,
a coisa só exibe um lado,
de longe, é bem mais abarcável.
Só vemos o novo
quando a visão do velho nos assusta...
ou cansa.
É que o novo é autófago —
mal nasce, devora-se.
E fica à espera de que os homens
não mais o vejam...
Isto é, inventem outro novo...
que gera pena e vôo...
Feliz o coração em forma de asa,
este
sabe o caminho de casa...
e nunca precisou de escada.
LA 05/005
Não Olh...
Não olhes para trás, que a vida
te transforma nas pedras do passado...
e já não podes ir pela avenida
que os sonhos te abrem para frente e ao lado...
O que se foi, se foi, já não convida
a entrar: tem seu vestíbulo fechado...
O que tens pela frente é a embevecida
vontade de partir, mas já chegado...
O bumerangue que jogaste volta,
não adianta montares uma escolta —
ação-reação à mão que o arremessou...
Ontem-hoje-amanhã, eis o caminho
por onde o nosso ser se projetou...
e ao projetar-se cria a rosa e o espinho.
LA 05/005
Que Diria...
Que diria para o mundo?
Que fosse ver se estou na esquina
com minha nega
numa posição bem tântrica,
afogado de chiliques.
Que diria aos amigos?
Que pegassem bem leve,
sem pancada nem beijo —
assim como lhes faço.
Que diria à mulher,
ao homem?
Que eles existem para confortarem-se,
e não para serem reféns recíprocos
de mentiras e cinismos.
Que diria a um jovem?
Que a existência tem um sentido
e a vida tem as respostas,
pois que ela é o mestre,
e o viver seu discípulo:
e só se chega lá vivendo.
Que diria ao agressor?
Que espere um pouco —
a resposta virá
par avion...
Que diria da morte?
Que ela é a vida morrendo.
E da vida?
Que é a morte vivendo.
E do fim?
Um começo que não vemos.
E do adultério?
Falta de amor com muita doença.
E da guerra?
O ódio de si mesmo
covardemente buscando
matar-se no outro.
Da meretriz?
A que não teve força
para a grande tarefa.
E aos pais?
Que jamais tenham medo
de abrir mão.
E ao moribundo?
Que há vida e vidas.
E ao pessoal que vendem?
Que nem só de coisas vive o homem.
E ao que pensa que chegou?...
Que o longe traz em si um outro longe.
E ao que encontrou?
Que logo mais haverá um outro encontro.
E à sociedade o que diria?
Que é uma delícia fazê-la pensar
que o poeta é um vagabundo.
LA 05/005
Termômetro
Todo o conforto da amizade é ir
jogando para o outro o que se sente
e vive no momento — soltamente —
sem preocupações de transgredir...
Sim: seu conforto mágico é sentir
que se pode tirar tranqülamente
as máscaras do rosto a delinqüir...
e, agora, conversar gente com gente.
E explodem “nãos” por “sins” e “sins” por “nãos”...
E o que soou, soou... falou, voou...
E ao fim de ciências-chistes-e-pesares —
Joga-se para cima o que restou...
E os bugalhos revoam pelos ares...
e voltam as sementes para as mãos.
LA 05/005
De Areia
Amor de areia.
Vem o sol, desaba
e espraia —
múltiplos pés o pisam.
Sim, o amor vira frufru
sob pés distraídos...
Amor da consistência
da água,
da sombra —
não sabe viver na luz.
Sentimentos que não dão liga.
Afetos descosidos,
soltos...
Mas que fazer, Eulália,
que fazer, minha amiga?
Amor de ser amado
enquanto está molhado...
Antes este, minha cara,
antes este que nenhum.
LA 05/005
Fininício
Quem foi que me pisou sobre o canteiro
de bem-me-queres, quem os arrancou
com essa fúria de frio aventureiro
e, não contente, ainda os pisoteou?
Quem foi que destroçou presto e ligeiro
todo o trabalho que esta mão levou
anos e anos: um sonhar inteiro
pra realizar ( e veja o que restou! )?
Quem foi que fria, tão levianamente,
esfacelou e revolveu o chão
onde plantei honesta e arduamente?
Direi a tal canalha, a tal vilão
que do escombro guardei toda a semente
e trago a fé do refazer na mão.
LA 05/005
Narciso Sem O Lago
Sim, a beleza despencou-se dela,
que agora a carregava a tiracolo...
com filigranas a roçar o solo —
uma sombra na luz da passarela...
Seu charme era agora uma seqüela,
colar que se partiu no esguio colo —
pérolas a quicar para consolo
das amigas da antiga cinderela...
E riam de seus títulos e glórias,
procurando mudar suas histórias
numa tosca farofa de ridículos...
Foi quando alguém lembrou a tais deidades
( com seus chistes, seus tons e risos pícaros )
que elas detinham tanta ou mais idade...
LA 05/005
O Andar Em Asas
Por vezes
o melhor que fazemos
é tirar umas férias de nós mesmos.
Sim: nos deixarmos,
sair em debandada.
Pegarmo-nos pela mão
e nos levarmos
para outros lugares lá em nós.
A realidade aparente
é sempre muito apelativa,
se não se vira as costas para ela
ficamos como aquele menino
a quem só existiam
o parque, alguns bichos presos
e aquele carrinho de sorvetes
munido de três buzinas —
cujo dono vendia
cantando pelo nariz
( com uma bola bem vermelha )
canções que só tinham graça
porque o seu nariz era por demais fanhoso.
Sim, necessário darmo-nos a mão
para o mergulho naquelas águas
em nós... e que nos causam tanto medo...
Lá onde estão as pérolas de ser gente,
lá, bem lá dentro da existência humana...
E voltar dali com as mãos cheias
de verdades-belezas,
de belezas-verdades —
e mais humanizados,
transcendidos de nós mesmos,
encontrados em nossas buscas...
acrescidos de nossos cumes...
munidos de auto-ordenação —
a paixão essencializada
em menos tempo e mais ser —
em ser-se, ser em si que sublimou
o andar em asas.
LA 05/005
Mais Belo Quanto Mais Inglório
A mim nunca importou, amor, se fada
ou se safada, a mim nunca importou.
Aliás, sempre estiveste mais para safada —
este o teu lado que me cativou...
Que me valera ter-te amarfanhada
por mão de amigo, aquela que ficou
sempre ao lado: na hora atribulada,
e no tempo em que o esposo viajou?...
Graças a Deus, o nosso casamento
não deu certo bem antes do casório...
Um invento que veio e foi com o vento.
Graças a Deus, morreu já nascituro...
Morreu sem ontem, hoje nem futuro —
daí mais belo quanto mais inglório.
LA 05/005
Viver E Rir
O problema do bobo
é que não tem cura,
mas é muito bem aceito
na sociedade.
Adoram-no,
gostam sinceramente
por demais dele.
Como se vê,
o problema do bobo
nem é problema —
a não ser para ele.
O problema do bobo
é muito diferente
( quase oposto? )
daquele outro indivíduo
que para a sociedade
é abominavelmente inteligente.
LA 05/005
Raivosos Verdes
A poesia sempre sobrevive
porque o homem
está sempre por aí...
O homem precisa dela
como os antigos guerreiros
bebiam dos oráculos.
A poesia sempre sobrevive
tal como o amor
precisa trair
pra ver
que jamais foi feliz.
A poesia sempre sobrevive
feito os megaladrões
que repletam contas exteriores
daquilo que seria
dos miseráveis —
e assim fazem existir
o ressentimento-aflição
que empurra a sociedade
a mudar bem mais depressa...
A poesia sobrevive
ao cinismo córneo e lustroso
dos homens discursivos —
os que mudam o ângulo da dialética
para darem suas aulas
de intermináveis metatolices.
A poesia, como a vida,
sobrevive a si mesma.
Quanto mais arrasadoras
as catástrofes —
mais fortes e conscientes
essas duas rebrotam
e seus raivosos verdes
não temem podadores nem tesouras.
LA 05/005
Porque-Sim
Por vezes nos nutrimos de maus sonhos,
retalhos oraculares de desejos.
Surrupiamos vinho
das adegas de Salomão.
Roubamos fogo do céu
e seus manjares com sabor,
não de aventura,
mas de bem-aventurança.
E afinamos os nossos violinos,
preparamos o piano
para uma linda canção
de uma cadência e tom
constelados —
que o nosso coração não aprendeu...
Não aprendeu,
mas exigimos:
queremos porque-sim que ele cante...
E ele canta,
corajosamente a canta —
até que percebemos
que estamos numa festa triste:
uma alegria sem brilho,
máscaras de salões...
um vazio, uma espera
de alguém que não veio.
LA 06/005
Liberdade é aquela coisa
que ninguém sabendo o que é,
pode fingir que a vive.
LA 06/005
Se Deus nos visse assim, Glorinha,
tão inibidos,
tão travados,
por certo nos diria:
Divirtam-se —
eu os fiz para isso.
LA 06/005
O problema da vida
é tal e qual o do amor —
a gente nunca ( nem deveria )
sabe onde e como e quando
termina.
LA 06/005
Os sabichosos marcam até data
para saborear o fim do mundo.
Depois ficam com cara
de lavadeira dobrada
sobre a pedra à beira-rio...
LA 06/005
Nem precisaríamos
nos chamar de amigos
se o fôssemos de verdade.
LA 06/005
Trate bem o ser humano.
Alguém sempre é picado
atrás do mel
com que você se delicia.
LA 06/005
Dois Inteiros
Se antes era metade mais metade,
agora a união se faz com dois inteiros.
Assim o humano, em sua humanidade,
não enfraquece, são iguais parceiros.
Todo o complexo de inferioridade
se vá! — já sem culpados nem herdeiros...
mais aquele de superioridade
a fazer de casais tolos guerreiros.
O diferente com o diferente
hão de encontrar-se unitariamente
nas delícias de serem semelhantes.
E a velha Eva mais o velho Adão
renascerão curados do que antes
era disputa e mútua acusação.
LA 06/005
Dizer Para Sobreviver
Se digo,
sobrevivo,
não ao tempo —
mas a mim mesmo
pelo tempo.
Se digo,
me sobrevivo
pela palavra
a organizar-me
o caos em cosmos,
o andar por sobre as águas
enquanto ajudo o amor a pescar
peixes que há
e os que não há.
Dizer para sobreviver
ao desamor do amor —
a sua flor mais bela
e cultivada.
A seus assíduos enganos,
tão belos,
tão belos quanto humanos.
E pé na estrada,
que os bárbaros vêm vindo,
os bárbaros vêm vindo!
Agora precisamos,
não de dizer, mas correr:
correr para sobreviver.
LA 06/005
Areia Ùmida
... de modo que a vida, compadre,
é esse dizer pra acreditar,
esse correr pra não morrer,
esse sonhar pra não apodrecer
lá na vala daqueles que o mundo desanimou,
desenganou.
Ai do fraco!
Do pobre.
Do delicado.
O mundo é essa terrível chocadeira —
faz nascer pra devorar.
Enquanto que em tudo explode a original pulsão,
esse fazer amor com a cara e a coragem —
a nossa cara em suas muitas máscaras
e a coragem que deve vir do próprio medo...
E o mais, o mais é muita, muita vida:
esse escrever na areia úmida
do sofrimento humano,
sofrimento
que cada um de nós
deveria pensar em amainar —
pois que além de dever
é bom investimento.
LA 06/005