COISAS DA VIDA

 

      A existência por vezes dói muito, e meditar sobre ela ( honesta e cruamente ) é um modo de mudar a nossa. Sim, um modo de nos vermos a nós em nós mesmos e nos outros e, portanto, de nos organizarmos e transcendermos. Quando isto ocorre, podemos dizer que crescemos: abrimos caminho lá por degraus em nós. A palavra reflexiva ou de análise nos filtra e nos liberta de nosso próprio visgo. Escrever Coisas Da Vida me ajudou muito. Até hoje o leio como obstáculos transpostos e/ou em trânsito de o serem. Sim: aprendi muito de mim e dos outros escrevivendo este livro. O seu tom picaresco é só uma estratégia... Aposto no discernimento do leitor(a).

   

    Um abraço.

 

                         Laerte Antonio

 

 

  

 

 

 

 

 

             Coisas Da Vida

 

No quarto escuro

passou a mão entre os gomos

da tangerina

e a encontrou toda chorosa

e ainda bem amarfanhada...

 

Bronqueou ( de leve ):

         — “Pô, mulher!

Você vem do carteado

da vizinha

e nem para passar um pano

nos pensamentos do marido dela?”

 

Dedé justifica:

         — “Sabe, benzinho,

é que vim tão depressa, —

pra ser fiel ao seu chamado —

que nem deu tempo pra nada...

Perdão, meu anjo.”

 

         —Tem nada não, Dedé.

             Agora veja se capricha.

LA 99/10

 

 

 

 

         Fecho De Ouro

 

Disse à esposa que estava

com dor-de-corno.

Ela lhe respondeu que, primeiro:

Não tinham sido tantos assim...

e que, segundo:

Já não ficava bem para um homem

cultivar tais fricotes.

 

Beijou a mulher como se estivesse

extraindo seiva de jatobá...

e ambos deram uma trepada

de arrastar o sofá.

LA/9910

 

 

 

        

        Tratamento De Choque

 

Sempre que embainhava

sentia três espadas

que formavam um trilho

em que ele deslizava.

 

Tal fato lhe tirava

o agudo, o pontiagudo

e toda a têmpera da espada —

sentindo-a não raramente

trifatiada, frouxa —

três correias...

 

Pelos bares da noite,

entre goles

e uivos assemelhados —

encontrou um ex-corno

( o ex-corno é o que aprendeu

a fazer de seus chifres

instrumentos musicais

e cabos de punhais )

que lhe tenta arrancar o trauma:

 

       — ''Olha, cara, a vida

não é dos delicados não.

Nem gosta de fricotes

ou raras sensibilidades.

Ou o cara se adapta

ou se ferra.

 

''Numa vida besta dessas,

ó das dores!

me dás uma de fresco

nesse faiscar de pontas,

nesse mútuo comer de cus

que é o mundo?

 

''Não vês que tudo é tilintar de ferros,

trançar de lanças, ribombar de idéias —

por montes, planos, ruas, galerias...

por ''ismos'' e ''ias'' deste velho mundo?

 

''Não vês que estás numa floresta

e a vida é bicho, é fera

a te comer a bunda, homem?

 

''Reage, ó velho Sapiens!

Quem aprendeu a cruzar ferros,

trançar espadas

em campo aberto —

por que não há de fazê-lo

também nos ''túneis''?

 

''Muita sensibilidade, amigo,

faz mal.

Embainha, e acha o teu lugar.

Só tem um jeito, cara:

aprendermos a cruzar

nossas espadas

e nossas merdas.''

LA 99/10

 

 

 

 

                          Coveiros

 

É com solicitude

que cavam a nossa sepultura.

Durante toda a nossa vida

há sempre aqueles abnegados

cavando pacientemente

a nossa cova.

Dava até pra chorar,

não fosse bem maior

a vontade de rir.

 

Cabe a nós

não nos deixarmos enterrar,

uma vez que se esqueceram

de que estamos bem vivos

e também porque não se lembraram

de nos mandar flores...

Desaforo

um enterro sem flores.

LA 99/10

 

 

 

 

 

                          Bobeie Não

 

Se você tem alguma coisa

boa e bonita —

guarde, segure,

  esconda,

              que alguém a quer roubar.

              Um grande amigo,

              um inimigo

ou o vizinho —

  vai querê-la para ele.

Não podendo levá-la,

há de fazer de tudo

para manchá-la

com sua porra,

com a sua gordura.

 

Há de querer pichar, quebrar,

envilecer

aquilo de bom, de belo

que é seu.

 

Cara! bobeie não.

Guarde o que é seu

das mãos gulosas do mundo.

Filosofe não, meu caro,

nem pateteie.

LA 99/10

 

 

 

 

       Ainda

 

As pedras ficarão

para dizer

que ainda gemem

nossos orgasmos.

Cantam ainda

nossas vertigens

e a nossa força

e entusiasmo.

Sorri e aguarda —

nossa coragem.

              Que ainda sangram

os nossos sonhos.

Continuam a fabular

as nossas esperanças.

Segue alumiando o escuro —

a nossa fé.

Que, enfim,

nossas loucuras

eram sadias.

LA 99/10

 

 

 

 

 

        Molecagem

 

Tem sempre aqueles

que desejam quebrar

nossos brinquedos.

Se você deixa,

quebram —

e vão-se embora

sem deixar nada no lugar.

São moleques egoístas

e bastante invejosos —

fazem assim

por não terem por brinquedos

senão os seus martelos.

LA 99/10

 

 

 

 

 

             Crise

 

Triste fora cair

no senso comum vadio

desses dias

de um cinismo sem graça e sem-vergonha.

Essa felicidade

buscada a pau, e arrastada

para dentro da caverna.

Felicidade que atropela,

mata, mói, esmaga, amassa

em nome de satisfações pessoais —

''nóias'' de fruir a vida

feita banal e tola.

Uma crise de Ratio-Cordia.

Desejo e pastejo.

Não mais.

LA 99/10

 

 

 

 

                 Pipocas

 

Por vezes a única verdade

está dentro da mentira —

mas nem por isso costumo trocar

meus bolinhos de chuva com café quentinho

por nenhuma delas.

Verdade e mentira

é como defecar e limpar-se —

feito o serviço,

tem-se uma sensação de vida nova.

...................................................................................

Quanto mais você corre atrás de uma coisa

mais ela se lhe escapa —

sempre à mão, mas sempre além...

Aprendi essa lição ( bem difícil na época )

correndo — quando criança —

atrás das pombas da praça.

Quando não lhes corria atrás,

muitas vezes, sentado e distraído,

elas vinham bicar-me o saquinho de pipocas...

LA 99/10

 

 

 

 

 

            Sol E Bruma

 

As pedras me dizem

que o imaginado é sempre real —

senão elas não o sustentariam.

Nem a realidade

poderia ser transcendida,

nem o transcender suplantado.

Sou o que me imagino ser,

posto que minha essência

não me é possível conhecê-la.

 

Imaginar-desimaginar-reimaginar

é o processo por que se recicla

a consciência humana.

E consciência

é realidade metabolizada.

 

As histórias que me contam as pedras,

os mistérios que me ensinam as rosas

não me vêm das pedras nem das rosas —

mas da boca de Deus.

O que existe

está sempre mediunizado —

necessário aparelhagem

para ouvir a seus oráculos.

LA 99/10

 

 

 

 

                   Brincar

 

Brincar aprendemos na infância,

e pobrezinhos de nós

se o desaprendemos na adultez.

Brincar ajuda bem quando o brinquedo

é o riso do nosso pranto.

Brincar é como resfolegar

quando se está a passos rápidos.

Além do mais

o dedo de uma criança

sempre suja de chocolate

a língua do nosso triste saber.

LA 99/10

 

 

 

 

 

           Pinxotação

 

Cuida bem da xota, amor,

que o casal que não pinxota

dura menos que uma rosa.

 

E a vida, amor,

é uma cabocla

xotiferante —

sedenta de vaginar.

 

Com a camisinha de lua

pintadinha de estrelas —

o negócio é pinxotar

e pinxotar, amor.

LA 99/10

 

 

 

 

      Xotenro

 

Xoturgidões

Xotifofuras

de sábado à noite

em xotifofurações

xóticas xóticas xóticas —

até domingo ressonar

xotividrado —

lambendo de memória

xotenridades

xoternuras

em xotorções

xóticas xóticas xóticas  

de xotisfeitas xotices

              Xotundas

              xoturnas xotidões

              de xóticas xóticas xóticas

              xoxotações

              LA 98/10

 

 

                 

 

 

                    Legislação Espiritual

 

Geralmente os cientistas

envelhecem bastante rápido

e se mostram infelizes —

talvez por acreditarem

em coisas que eles não sabem.

 

O homem é

aquilo em que acredita

lá no seu coração.

 

Jogamos nossas favas ao vento,

depois nos surpreendemos

vendo-as árvores feitas

bem em nosso quintal.

 

Se a vida é o provisório,

tudo o que um homem diz —

diz para ser repensado

e não para ser vivido.

Viver deve ter raízes

em nossa fé —

sempre apoiada

em nosso ser profundo

e percutida

pela luz que vem de Casa.

LA 99/10

 

 

 

 

       Prazer Multiplicado

 

Velhos amores canalhas —

curtidos de muita porra,

túrgida safadeza

e da musse da mentira

com os méis da traição.

 

Amores cujo maior prazer,

mais aguçado orgasmo

é o adultério —

gemido entre três genitálias:

uma mental (do cônjuge )

outra factual ( do parceiro )

e a do gozo relinchante

de estarem prevaricando.

Amores fornicadores,

cultores da habilidade

de enganar.

Amores delirantes

das delícias proibidas —

do prazer multiplicado

de trair.

LA 99/10

 

 

 

 

         Boas Maneiras

 

“Mulher de corno não admite,

nem mesmo por brincadeira,

que o marido

se denomine assim.

Por outro lado,

também a mulher corna

não há  ( da mesma forma )

de constranger o esposo

falando de suas dores.

Portanto, vamos com calma

( ah! leitor: é o diácono Josias falando

para as senhoras obreiras

de sua grei... ),

sim, com muita, muita calma

e não pouca, não pouca astúcia...

Prudência não é de graça,

mas vale o preço.”

LA 99/10

 

 

 

 

              Ah!...

 

Saber que esses tais

não gostam do que escrevemos —

é uma lisonja.

O problema seria

se eles gostassem.

LA 99/10

 

 

 

 

 

 

         Mais Uma

 

Convidada pelo japonês

para comer com ''pauzinhos'',

disse-lhe que agradecia,

mas que — para satisfazer-se —

tinha de ser

no garfo.

LA 99/10

 

 

 

 

 

 

       Bagagem

 

Tinha uma pinta,

um charme,

uma dignidade,

um quê de companheira,

um jeito de honesta —

que ninguém acreditava.

LA 99/10

 

 

 

 

 

 

 

            Pensem Bem Antes...

 

Pensava que o marido não soubesse.

O dia que lhe disse que sabia,

ela não mais olhou na cara dele.

LA 99/10

 

 

 

 

 

            Do Silêncio

 

Só nos livramos de uma coisa

pela coragem de dispormos dela.

Em geral

estamos tão apegados

que somos os nossos apegos.

E se os somos,

não há espaço para sermos livres —

estamos com as mãos da vontade

amarradas:

não há como bracejarmos —

viramos pedra

e a praia também é pedra:

nossa autonomia jaz.

 

Para sermos livres

precisamos saber em alma

que não somos

nossas necessidades

e que estas

só deverão ser atendidas

até o ponto

de não nos tornarem seus escravos.

 

Ter sem que o ter nos tenha.

Ser sem que o ser nos seja.

Sonhar sem que os sonhos

sejam nossos feitores.

Saber que entre o destino e a vontade

é que o homem se constrói.

 

( A última coisa

de que teremos de nos livrar

será de nós mesmos. )

 

Com calma, bom ânimo,

prudência,

trabalho ( auto-) e sem ''nóias'' —

chegaremos

aonde chegar é tudo.

LA 99/10

 

 

 

   Descansa Nele

 

Não deixes doer,

entrega a Ele.

Se é tudo Dele,

tua dor também deve ser.

 

Não deixes doer,

põe na mão Dele.

Confia Nele —

só Ele sabe o que fazer.

 

Não deixes doer,

entrega a Ele.

Doendo Nele

há um descanso em sofrer.

 

Não deixes doer,

transfere a Ele.

Se tudo é Dele,

tua dor também deve ser.

 

É tudo Dele.

Transfere o doer

que há no teu ser —

descansa Nele.

LA 99/10

 

 

 

 

 

      Maitacas

 

E o conteúdo?

......................................

O estudo,

a pesquisa,

o viver,

o colher —

não precisa?

 

Ah, bandos de maitacas

que só deixam pelo ar

o rastro verde

do seu tagarelar.

LA 99/10

 

 

 

 

 

  De Um Sacerdote Egípcio

 

Esperar sempre

pelo melhor —

numa postura impermeável

à covardia.

 

Percutir todo dia

a tecla da alegria

( a criança ensina como ).

 

Ter o riso

por companheiro

e amigo.

LA 99/10

 

 

 

 

 

      Advertência

 

Cuidado, Eupígia!

Não se assente pelada sobre a areia,

que emperra a máquina

e ninguém há de querer

fazê-la funcionar.

LA 99/10

 

 

 

 

 

           Mineração

 

Turgescências

na tarde-noite toda olhos.

No ar, no chão, nas paredes —

um só desejo

rosa e grená. Os da ativa

preparam ferramentas

para extrair

seus preciosos diamantes.

LA 99/10

 

 

 

 

               Lição De Casa

 

    Paiê!

A professora pediu que alguém de casa

me explicasse ( taqui ó:

de modo bem caseiro )

como é que o dia nasce.

 

    Fácil, Carlinhos.

Quando o sol belisca a bunda da noite

ela entra debaixo dos lençóis...

E pronto —

tá feito o dia.

LA 99/10

 

 

 

 

 

        Aqui, Ó: ...

 

Querem-nos caretões,

bobões, babões —

recitando cartilhas.

Aqui, ó: ... para eles.

 

Desejam-nos bonecos,

cópias reprodutoras

das engrenagens do Circo.

Aqui, ó: ... para eles.

 

Amam-nos vis, pequenos —

batedores de palmas,

dizedores de améns.

Aqui, ó: ... para eles.

 

Adoram-nos vassalos

e bobos dessa corte

cujo rei está passeando.

Aqui, ó: ... para eles.

LA 99/10

 

 

 

     

    Veras Primas

 

Sinceras,

só as infláveis

( não-desfolháveis ).

O mais...

te cuida, cara.

Bobeia,

que pulas-cantas

feito tiziu

em arame de farpas. 

 

Sinceras,

só as primas —

que não são veras

nem verões.

Só as primas

de folhas mortas —

as veras primas

de sonhos-heras...

LA 99/10

 

 

 

       Por Tuas Linhas

 

As Tuas linhas tortas,

Senhor,

sejam o meu caminho.

Haverei de traduzi-las

segundo o espírito da letra.

Muito do que leio-escrevo

tem por motivo o desafio

de desfolhar em contos

aquelas mulheres lindas

que são Teu pão e vinho

lá em Cânticos dos Cânticos.

 

Por Tuas linhas tortas

sei no meu coração

o que conversas com as rosas

entre o tempo e a eternidade.

 

Por Tuas linhas tortas,

sim, retortas de tão certas, —

é que estamos caminhando

um para o outro:

e já Uno um no Outro.

LA 99/10

 

 

 

 

      O Que Nos Resta

 

A prazer dado, amada,

não se abre a boca

pra se dizer se bom ou ruim.

A prazer dado —

muito obrigado.

Ou Deus lhe pague —

se acompanhado

de bolinhos com café.

 

A amor dado e comprazente

não se contam os latejos

de seu orgasmo.

Amor de graça

( pelos cantos ou no leito ) —

sempre um pleito

com jeito

de satisfeito.

 

O homem será um dia

( é o que anda por aí )

perfeito.

Por esse tempo

nem deverá precisar

de comer desse amor.

Já não terá falta

nem de si nem do outro.

( Que tristeza viver fincado

para ter a ilusão

de ser feliz

ou julgar-se realizado.)

 

Não precisar será o descanso

( e a glória )

de quem viveu em falta,

sentindo-se esfomeado,

vendo-se pequeno, escasso

de si, de tudo —

e sempre morto de fome

e-fome-e-fome-e-fome

desse amor.

 

Um dia, amada, seremos

o sorriso e os olhos de Aba-Pai —

ou seja: estaremos sossegados

dessa fome,

dessa sede dos diabos

a que chamamos vida.

 

Mas até lá

saibam os Santos:

não temos pressa.

Vamos dando uns aos outros

desse amor

que, se não presta —

é o que nos resta.

LA 99/10

 

 

 

 

 

            Clara Fofó

 

Ali pelos seus quarenta

foi seriamente acometida

                    de um tamanho tesão,

 que lhe foi impossível segurar os diques.

 Deixou marido e filhas

 e foi ver o que a vida tinha.

 

 Pintou o sete.

 Adorou.

 

 Dedicou-se a pintar o setenta.

 Fez-se uma cama de faquir.

Achou celestial.

 

Agora está pintando o sete vezes setenta.

                   Fez uma promessa:

se sua holanda agüentar —

vai ceder a sua pele

para fazer uma cama elástica

naquele playcenter do Sul.

Alguém lhe disse que fará das sobras

sachês, patuás, bolsinhas, tangas afrodisíacas

para turistas que apreciam

nossos pelegos do avesso.

 

Fez promessa a uma tal Santa

que a ajude a gozar os méis da vida

mastigados com favos e zumbidos.

Confessa-se no domingo

( embora afirme que pecado não existe )

e na segunda recomeça.

Quer deplumar todo tipo

de galináceo

de cujas penas vai enchendo

as almofadas dos seus sonhos.

 

Clara  Fofó

tem um pique de galo

e a fruição eterna dos insetos.

LA 99/10

 

 

 

 

 

 

              Maridão

 

Marido dos bons

fatura alto.

É manso,

finge que não percebe

e saboreia a vida

por detrás do cachimbo e do jornal.

( Pode substituir o cachimbo

por um hobby elegante qualquer.)

Sempre bem-humorado

e bem-disposto.

Mão aberta ( em casa ).

Jeito jovial

e discreto.

Não pergunta.

Vê-não-vendo.

Cala sempre num sorriso

que jamais vê o pecado

maior do que o perdão.

Trabalha duro e acumula.

Bainha singularíssima.

Cavalheiro

e sempre elegante —

o sorriso das rodas

e a risada das festas.

LA 99/10

 

 

 

 

                                 Furunha

 

Miguelzinho era o fura-bolos

do largo.

Moleque que se prezava

falava grosso com ele.

Afinava à toa-à toa.

Era jeitoso mesmo

pra furunhar ( termo

que ele mesmo inventou

e a molecada consagrou ).

Quando surgia lá longe

alguém sempre apontava:

Olha lá o Furunha!

......................................................

Não era bom no braço,

mas — no bico —

ninguém descascava sementinhas

com mais habilidades.

Tinha muito cuidado com os espadas,

já os bainhas se bobeassem

ele os enchia de alegria

ali mesmo sobre o areão

da praça ( areia e grama ),

sempre em semi-solidão.

..................................................................

Furunhamentos aferrados

como cópulas de gansos —

                   longas e agoniadas.

......................................................................

Na época das pipas,

dos piões

e das Festas do Asilo

( com suas barraquinhas cobertas de indaiá ) —

o Furunha trabalhava tanto

que ficava mais esguio.

 

Não poucas vezes

seu pai vinha buscá-lo

entre a poeira do areão

( com a molecada jogando bola )

e o céu já todo olhos.

             — Tchau, Furunha! Até amanhã,

     Furunha —

a molecada caprichava no apelido.

O pai ficava embaraçado,

tentando adivinhar...                                    LA 99/10

 

 

 

            Talioterapia

 

O diabo lhe levava a esposa,

mas logo-logo ela voltava,

trazida pelo anjo da necessidade

que ela chamava de arrependimento.

 

E assim foi e refoi —

muitas idas-e-vindas-e-idas-e-vindas...

até que um dia,

“graças a Deus” —

o diabo a levou de vez

( encarnado num negociante de ferro velho ).

 

Quando sentia saudade da mulher,

ia à casa de d.ª Zeca, mãe dele,

que o benzia contra dor de ausência

e o pegava — a pedido do próprio —

de cabo de vassoura até quase matá-lo —

terapia de reversão masoquista

e ressuscitativa de auto-estima,

segundo ele.

 

Foram anos e anos de pauladas,

até que um belo dia

a mãe lhe estica um olho —

terrível como o fim do mundo,

e lhe diz:

Aqui está a conta de todas as vassouras

que quebrei na tua cabeça.

Ou pagas,

ou neca de terapia.

Fez um acerto

pagando com seis-pré,

um sofá de quatro lugares,

uma geladeira meia-vida

e uma tábua de passar.

Era patético ver

como ele precisava de apanhar

e como sua mãe — amorosamente —

o servia,

pela bagatela

de dois salários mínimos por mês.

LA 99/10

 

 

 

           Já E Já-Já

 

    É já ou já-já, amor?

Qual a diferença?

    Já é na hora, já-já

dá tempo de fritar os bolinhos...

               — Você quer com bolinhos

 ou sem, amor?

    O bom, Dadá,

      é o já no já-já .

               — Entendi, meu André: 

 o é o prelúdio,

 o já-já o conserto em si.

               — Simplifiquemos, Dadá:

 café puro

 e café com bolinhos

 ( ao mel de jataí ).

.................................................................

Galos cantam

seus cantos derradeiros.

O sol vai levantando

de... va... ga... ri... nho...

o penhoar da noite.

O frio arrepia-lhe os pígios

e a xiranha —

que se dissolvem em luz

e cores-sombras...

..............................................................................

             — Dadá, tem mais café?

             — Bastante, amor.

             — Sirvo com quê?

             — Com panqueca quente do banho.

LA 99/10

 

 

 

 

 

       Cepo Sonso

 

Trepavam às 8,

à meia-noite

e às 6.

À empregada cabia

lembrar-lhes a hora, o minuto,

além de preparar a cama

e os ingredientes.

Nenhuma obsessão —

apenas hábito,

bom hábito

( diziam ).

 

Tanta trepada

que a empregada

( espiando pela fresta )

ficava maravilhada,

e congesta.

 

Um dia a viram masturbar-se

( deixou cair o guarda-chuva... )

                    e odiou-se, enrubesceu-se, quis matar-se...

No outro dia —

enrubesceu...

No outro —

desviou os olhos...

No outro —

masturbou-se de novo ali na porta

( com o mesmo cabo do guarda-chuva

lá do tempo do Império —

um cepo sonso e sensual.

Parecia sorrir... ).

 

Pediu aos patrões que a treinassem

para os recordes olímpicos...    

Disseram-lhe que não tinha condição —

havia uma russa que — sozinha —

em pleno vôo, num avião militar,

embotara setenta e nove espadas

e doze sabres...

Respondeu-lhes que, mesmo sem preparo,

quando jovem foi ser monja,

sendo que numa só noite...

Aí mandaram que parasse,

e montaram uma zona para ela.

 

Rapidamente transformou-se em vidente

e só dava consultas a homens do poder

( claro que também a algum artista famoso,

turista europeu ou das Arábias... ).

 

Quando enriqueceu levou os antigos patrões

para carregar malas em inúmeros safáris

onde ela mesma estudava e catalogava, —

com extremos e apaixonados detalhes —,

a cópula dos felinos.

LA 99/10

 

 

 

 

 

         Dependência

 

Ser amado, que desgrama!

Depender desse amor

pra ser feliz!

 

Sonhos de encher a boca

e escorrer méis...

Belos, bons de ver e fruir...

Querer levá-los para casa,

que miséria,

ó genitália-coração!

 

Depender desse amor

pra ser feliz,

doce miséria!

 

Por ora,

vamos treinando amor,

treinando amor,

treinando amor,

amada.

LA 99/10

 

 

 

 

 

       Quarto Insone

 

Esquentes não, amor.

Sem querer a gente vence.

Quem sabe até consegue

não querer conseguir.

 

Coça, com jeito, coça.

Pega um prego no mental,

amada,

e coça —

coça aquela dor em alma.

 

A vida é linda, amor.

O que às vezes a estraga

é não ter nádegas

para apanhar.

A gente pode até ser,

não digamos feliz,

mas aprendiz.

 

Coça, coça essa dor —

tira-lhe as botas,

descansa-lhe os calos.

Escuta os galos:

estão puxando a cortina

da madrugada.

 

Silêncio, amada: escuta o vento

arrepiando o escuro...

Aproveitemos, amor, a seda cinza

do despontar do dia,

e juntemos nossas penas.                LA 99/10

 

 

 

 

        Prodigamente

 

Ali pelos quarenta

entrou num baita dum cio,

que poliu a espada

de um terço da cidadela.

Quando se cansava da esgrima,

voltava para casa,

e seu marido

louvava a Deus ( sic )

porque a que estava perdida

voltara para o lar.

Idas e vindas

de descanso e de esgrima.

LA 99/10

 

 

 

 

      Voz Das Pedras

 

Ó alma possessiva,

ó alma egoísta —

abre mão, viajante!

Ninguém tem coisa alguma

a não ser sua viagem

no anteparo do Espírito.

Nossa morada é o sopro,

nossa aventura é a luz.

 

Come do pão

que lançaste sobre as águas,

e empreende, ó alma, a travessia

das tuas brumas

para a luz do Sonho-Quem.

LA 99/10

 

 

 

    Conversa Com A Zefa

 

Há nomes

que são poemas feudais —

passaporte,

senha,

tobogã ensaboado

para o reino dos homens.

 

Nomes que deitam e rolam,

não na grama

nem na cama —

mas no Direito de Todos.

 

Quanto a nós, minha Zefa,

vivamos longe deles —

ou o Sistema nos esmaga

igual a caramujos...

 

Aprendamos com os grilos —

sempre felizes,

mas na moita.

LA 99/10

 

 

 

       Favos, Favas

 

Mudou-se para Favas,

porque apesar dos favos,

o amor é hoje favas

não contadas.

E se já não se pode

contar com os seus favos,

esse senhor teria mesmo

é que ir às favas.

Mas sosseguem, que apesar

de muita cera e pouco mel,

o amor ainda tem seus favos.

LA 99/10

 

 

 

 

            Trégua Da Luz

 

A gente conversava longamente,

depois íamos desconversando,

não menos longamente —

tomando café bem quente

com bolinhos feitos na hora.

E ríamos, não do que havíamos falado,

mas do desconversar de tudo —

porque este recontava sem negar

nossa quase infelicidade

de saber que poderíamos

ser tão felizes

quanto nem desejássemos ser.

( Sempre a delícia de adiamentos

que nunca chegam a cumprimentos —

quem sabe porque nosso inconsciente

não devesse estar ciente

das nossas doces inconsciências —

trégua da luz ( sem o grená do sonho ).

Enquanto o vento despenteava a paisagem

em nosso ouvi-lo longe e perto,

nossas roupas se esquentavam

numa enorme poltrona

ao lado da cama,

e os nossos sapatos

esperavam sonolentos

a hora de voltarmos

para a loucura das avenidas

cobertas de aço e gente.

LA 99/10

 

 

 

 

                        Gamas

 

Se tratamos os professores como crianças

e as crianças como professores —

a escola se tornará cinismo,

e o propósito ensino-aprendizagem —

                   um judas-beijador.

O espinho convive com a rosa,

mas ele tem outra função.

Um e outro se explicam

e se completam

em natureza, fim e interação.

Cada um é cada um,

embora se transportem um no outro.

A realidade se explica nas diferenças

e estas vão construindo

realidades paralelas —

postigos dos intuitivos

e transcendências dos que se atrevem

ao diferente, ao desconhecido

na aventura de conhecer(-se).

No autoconhecimento o humano se espelha

e aprendemos com ele-outro a nós mesmos.

Rosa-espinho,

professores-crianças

( ou quaisquer outras relações ) —

partes de um real em várias gamas

num todo consciencial em expansão.

LA 99/10

 

 

 

 

            Bananas

 

Sempre que recordamos

podemos ingerir

pencas de bananas podres.

 

Sempre que ansiamos

podemos mastigar

pencas de bananas verdes.

 

Em geral nos esquecemos

de que — bananas maduras —

só o hoje as possui.

LA 99/10

 

 

 

 

 

       Procedimentos

 

Por vezes se embaraça

o fio da meada.

Já não desenovela,

mas pressiona o novelo —

então se parte.

Sua ponta adentrou

por veredas erradas —

caminhos que não levam

à expressão desenvolta,

simples e feliz da vida.

O ser se tolhe

em sua própria trama —

faz-se escravo de si.

O fio que ele conduzia

não foi bem dirigido —

em vez de fio de vida

estava se tornando

em seu oposto.

Necessário voltar —

achar a ponta,

continuar o caminho —

livre, solto , fluente —

com claro discernimento,

clara percepção

do que se está fazendo.

Ir bem ou mal

são apenas procedimentos.

LA 99/10

 

 

 

 

      Pedras E Rosas

 

O recordar tem sede e fome

( em alma )

da nossa Casa em nós.

Vontade daquele pão

com cheiro de varandas

banhadas da alegria

de já não precisar —

pois que ali

o amor jamais deixou de ser

em nós todas as coisas.

 

Por ora,

é cultivar rosas

entre o duro das pedras

e o nosso construir a estrada

através de Deus em nós.

LA 99/10

 

 

 

 

             Flores

 

As flores das mulheres

sempre foram os homens.

Se eles lhes mandam flores

é só pra lhes dizer

que preparem os vasos.

 

As mulheres sosseguem:

que — para os homens — flores

sempre foram mulheres.

 

É por isso que um morto

tem sempre companhia.

LA 99/10

 

 

 

         

 
         A Sério

 

A sério, amada, —

só a conta da luz

pra não ficar no escuro

nem perder Onze e Meia.

 

A sério, amada, —

só o riso de saber

que pelo não saber

é que se diz “eu te amo”.

 

A sério mesmo, amada, —

só a intenção de não levarmos

as coisas muito a sério —

assim nem mais seremos

muito exigentes com os outros.

LA 99/10

 

 

 

 

                                           Saldo

 

Se no final sobrar o riso,

o saldo terá sido

positivo.

 

Tolos e sábios

lá um dia se encontram

na simplicidade.

Não só os corruptos como os santos

terão vergonha de ter vivido

às custas uns dos outros.

As orgulhosas primaveras

terão visto

que sua roupa de grife

foi tecida pelas mãos de sombras

e brumas

de outono-inverno.

 

E um dos maiores pecados

terá sido não saber rir

aquele riso trans-coisa

que a vida espera — paciente — que aprendamos.

LA 99/10

 

 

 

 
 
 
                                           Frio E Calor

 

Agora as botas, os sapatos fechados.

Os longos, os veludos, as lãs,

os gorgorões —

e nós vemos as mulheres

sendo as delícias dessas roupas.

 

Logo-logo vem o sol

e morde a pele das rosas —

de seu romã-grená

escorrerá o verão

sobre o desejo dos homens.

Afrodisia e charme

beliscarão

a sensualidade

nas mais discretas retinas.

LA 99/10           

                              

 

 

 

                             Folhas E Vozes

 

Quando a felicidade

se torna em lembrança dela mesma —

o homem se transforma num sorriso

por alamedas de muitas estações.

A alma oferece ao mundo os seus despojos

e as suas frustrações.

A criatura (em si mesma) oferta-se

ante o altar da Criação.

Pede perdão pelas desventuras

que viveu ou terá feito viver.

Por todos os fazeres sem amor.

Seu coração já não tem mãos

para agarrar-se ou aparar:

já não precisa subir ou segurar-se —

está nas mãos da bem-aventurança,

o estado-essência

que não precisa de motivo.

 

Feliz do coração

que se lembra

do caminho de Casa.

LA 99/10

 

 

 

 

 

          O Que Dói...

 

O que dói em lembrar-te

não é o amor que não sabias,

rosa da tarde

ingenuamente feliz

na mão do vento.

 

O que dói em lembrar-te

é ver-te

no centro do silêncio

tentando ousar o grito

que te transporte

para o outro lado de ti mesma.

 

O que dói em lembrar-te

é surpreender o sopro frio

da tua voz

arrepiando a tarde

por onde caminhavam

os teus sonhos descalços.

LA 99/10

 

 

 
 
 
                           Pés E Nariz

 

A melhor saída, Zefa,

é assistir ao desmanche,

se possível, com classe

e um certo charme vingativo:

serenidade e humor.

Desmoronar sorrindo.

Afinal,

o que é que tem a vida

que a própria vida

não vá dando o seu jeito?

 

Claro que dói findar...

Mas qual o fim

que já não tem providenciado

um sonho-recomeço?

 

Claro que dói findar...

Mas qual o fim

que não lembra os sapatos do arlequim

que nos faziam rir gostoso

em nossa infância?

E esses mesmos sapatos

e a bola no nariz

de quem são eles agora?

 

Pois bem, se rir é bom,

façamos rir —

hoje sabendo

que o que mais dói no riso

por certo não é rir —

mas fazer rir.

LA 99/10

 

 

 
 
 
               Pelas Palavras

 

Umas palavras ponho em nanochip

pra conhecer-me em múltiplos de mim.

Assim recolho em chãos do provisório

o que vim cá buscar, pois dói a falta.

 

As palavras me são um jeito de narrar-me

e ordenar-me através das estações,

ou vestir de sua lúcida película

sentimentos-idéias que me escapam.

 

Outro Ulisses, viajo entre os vivos e os mortos,

despindo ( corpo e alma ) o falso brilho

e tudo o que me impede de chegar.

 

Pelo filtro dos dias passo a vida

sabendo que ela me será depois

o quanto nela agora organizar-me.

LA 99/10

 
 
 
 
     Coisa E Recoisa

 

Metáfora —

um modo de pegar

a coisa pelas penas

ou pela sombra de seu vôo.

Um jeito de virar do avesso,

e ver de lado,

de alto, de baixo,

de dentro-fora

e fora-dentro.

Sopro do espírito.

Uma maneira

de ser-não-sendo ser.

LA 99/10

 

 

 

 

          Outros

 

Muitos e muitos já passaram

pelo que hoje vivemos,

e venceram e se foram —

livres do mundo e do Sistema —

livres de si.

Outros, em outra.

A vida tem degraus.

LA 99/10

 

 

 

 
 
         Mais Que Palavras

 

Novos nervos e músculos

dentro e sobre o esqueleto das palavras

e um novo sopro na medula

que há de aflorar e derramar-se

pela face

em gesto de girassol

no olhar que julga ter achado

e não sabe que não se acha

a não ser a sombra

da luz do sonho.

 

Novos nervos,

novo sopro

e a vida

relinchando o possível.

E tudo é mais que palavras.

LA 99/10

 

 

 
 
       O Dia Em Que...                      

 

O dia em que talvez me leias

queira a vida

não me encontres em diques

transpirando suores salobros

de tardes trespassadas de ontens —

mas sim recebas brisa fresca

e convites de azul e sol

para dançar com a vida

no teu agora,

na tua vez de ser feliz.

LA 99/10

 

 

 

 

 

    ‘’Vinde Todos E Arrazoemos’’

 

Senhor,

tenho uma bronca contigo —

velha, antiga e já azeda.

Estou, meu Pai, farto e cansado

de ser mendigo do Teu reino.

De Te pedir, pedir, pedir...

De Te pedir todos os dias

as mesmas coisas de sempre

( ditadas pelos meus medos,

pelos fantasmas sociais

e pelas bobagens teológicas

que me foram embutidas,

tu sabes desde quando... )

 

Pedir, pedir, pedir —

sou um pedinte do Teu reino.

 

Ah, Senhor,

por amor do Teu nome —

livra-me de ser escravo,

de ser mendigo de não saber

que sou herdeiro Teu —

que sou teu filho.

Ajuda-me a crer, Senhor,

que um deus pequeno assim

só pode ter sido feito

com o barro da nossa imperfeição.

 

Sim, ajuda-me a crer

que tenho o privilégio

de contar com a Tua graça ( desde sempre )

e a Tua bênção

no Teu gene de Pai.

 

Se me queixo de Ti a Ti

é porque muitas vezes

em meu amar-Te de filho

o Teu silêncio me é terrível —

sem nenhuma tradução.

 

( Ninguém saiba, ó Aba, ó Pai,

que ousei dizer-Te

que não aceito

ser mendigo do Teu reino.

Ninguém o saiba, ó Deus, ó Santo,

para que — fariseu —

não venha a se julgar melhor que eu —

e eu peque por esse pobre

ter deturpado o que Te disse.)

 

Louvado sejas

por eu não me aceitar mendigo

de um reino

que já está se realizando em todos os que se sabem

reconstrutores do Teu sonho.

 

Louvar-Te

seja a minha oração.

Louvar-Te —

por já nos teres concedido

o que não sabemos pedir —

porque pedimos mal.

LA 99/10

 

 

 
 
 
        E Agora, Sabiá?

 

A rainha do lar

coroou rei a seu parceiro,

e pernas pra quem te gosta.

Eu, hem, Lorival?

...........................................................

Por que eu, —

seu padre,

seu bispo,

irmã Onofra,

comadre Eulália,

padrinho Eustáquio,

pastor Durval —

por que eu ?

 

E se foi para os lados de outra época —

lá para as bandas de não dá mais.

 

E agora, bem-te-vi? —

perguntaram ao pássaro

acusador.

Bem-te-vi pôs a guitarra

no saco,

entrou também no mesmo saco —

e se jogou no mar

( que já foi de Alencar ).

 

E agora, sabiá? —

desafiaram o pássaro

galanteador.

Sabia posou o pio,

e respondeu com voz

de ave normal:

Agora é se adaptar

com jeito e humor

a um novo tipo

de condicionamento.

 

A passarada

não aplaudiu,

mas não vaiou.

Aplausos, vaias...

tinham virado

coisa velha.

LA 99/10

 

 

              Autoria

 

Aos amigos que quiserem

                   ( com toda a honestidade, é claro,

                   e admiração e respeito, é claro )

ler os seus manuscritos —

diga-lhes que estes são

a sua mulher bonita

e que o adultério, nesse caso,

fora caftinagem

entre a sua inteligência-autoria

e os eunucos da criação.

 

Perder amigos desse tipo

é progredir na vida,

e livrar-se

das misérias do espírito.

LA 99/10

 

 
 
 
 
        Vovó Ignácia

 

    Um poema serve pra quê,

vovó?

    Depende. Se você estiver

com o intestino preso —

não serve para nada.

Já se tudo estiver

funcionando normal —

aí um poema tem sempre

uma utilidade a mais.

    Não entendi, vovó.

      Não faz mal. Muitos dos que escrevem

poemas

      também não sabem o que fazem,

      mas nem por isso deixam de fazer.

      Insista sempre, Eunice, —

      um dia a gente entende.

      LA 99/10

 

 

 

 

           Brinde

 

Entrando em casa,

pergunta pela esposa.

A empregada lhe diz

estar no quarto com André,

um grande amigo dele.

 

Preparou o champanhe,

e depois de duas horas

quando desceram para a sala —

ele propõe um brinde

“à sólida amizade”.

 

A mulher o beija, o afaga

e fica abraçada com ele,

e muito espontaneamente

vai conversando com André

como se nunca o houvesse visto.

LA 99/10

 

 

 

 

                           Vivências

 

      O que vi, vi.

      O que não vi

       como vi-

       ver?

              

     

 

      Calma.

 

      Sem querer a gente acerta.

      Um pouco a gente faz,

      outro a graça nos traz

      enquanto nós dormimos.

      O mais...

      Precisa mais?

        LA 99/10

 

 

 

 

                 Credor

 

Por mais que nos apressemos

o passado sempre nos alcança.

O passado é a transformação

que nos devemos —

por isso sempre nos alcança,

pois se transforma em nosso credor.

Ou nos quitamos —

recuperando o tempo perdido,

ou mais tempo perdemos.

Sua mão toca amiúde o nosso ombro

entregando-nos o seu fio

para que o atemos à agulha, não do futuro,

mas do nosso fazer-agora.

Só vamos nos livrando do passado

à medida que vamos nos transcendendo.

LA 99/10

 

 

 

           

              Ventos

 

Nesse geral outono literário

sopram ventos estúpidos

aos guinchos, coaxos, crocitos,

e à dislalia esverdeada

das maitacas.

Ventos pretensiosos —

querendo ditar rumos, rotas

feitas de fátuos flatos

e do rastro de seus odores —

provindos dos seus tenores

em estertores.

A solidão é grande.

Não há setas.

Nem caminhos.

A voz é a do silêncio.

O rumo? Interior.

O mais ( se houver )

é porra derramada.

LA 99/10

 

 

 

 

 

      Lição De Coisas

 

Corta e cauteriza,

que não volta.

Fica a marca.

A marca não é feio.

Feio é não merecer

confiança

nem com fiança.

 

Raios partam a ingenuidade

e os caralhos que sujaram

o que nos inculcaram

que era nosso.

LA 99/10

 

             

 

 

 

 

 

                        Diferença

 

Toda felicidade

é fruto de um motivo —

é preciso X

para que B aconteça.

A felicidade

depende de algo fortuito

e quase sempre mortal.

 

Com a alegria

não acontece assim —

ela se dá

sem motivo nenhum:

fruto da graça,

mora no ar

e visita o coração

aquém e além

de qualquer equação.

Para apará-la

precisamos de mãos interiores —

o coração ligado à Fonte.

LA 99/10

 

 

   

 

 

 

            Caminho De Volta

 

Que mais querer, minha Amiga,

no mundo do mais ou menos,

em terras do provisório —

que mais querer

além de buscar ter

o viver como ofício

e a vida como mestre?

 

Nossos sonhos juvenis

são porventura inferiores

àqueles de nós adultos?

 

Saber tem mais beleza

( ou mais verdade )

que não saber?

 

A nossa falta de ser

acaso não se preenche

lá em nosso não-ser?

 

Não vivemos inventando

amanhãs que nunca chegam?

E essas muitas invenções

não nos ajudam bastante —

ao menos até o instante

em que as vemos impossíveis?

Ah, descansa, minha Amiga,

descansa teu coração

nas mãos de Não Saber,

e a luz que és, deixa-a brilhar

e te construir a estrada

que te devolva a ti.

Nosso caminho de volta,

minha Amiga,

será sempre Deus em nós.

LA 99/11

 

 

 

 

         Ferramenta E Alimento

 

A lógica existe

para o homem poder andar no ar,

criar rotas de ver em revisões —

e poder respirar

nos oceanos de realidades

que se imbricam e interpenetram

numa só grande realidade.

A lógica vai mudando —

a sua ferramenta há de ir

sempre assumindo a forma

dos estratos da consciência humana —

a escavar no mistério

o alimento da vida.

LA 99/10

 

 

 

 

 

                             Rito

 

Sob a pele da palavra,

dizer-te

que o silêncio diz mais

com sua voz de lírio,

seu tom de amêndoa

na corola do sonho

a resvalar

no entressorrir do instante.

 

Dizer-te sempre

que o silêncio diz mais

entre a palavra, — nave —

e a intenção de chegar, — viagem.

 

Morder o aroma

de rosas turcas

por entre folhas

do teu jardim.

Espetar o teu charme

contra a parede da tarde

e ouvi-lo debater-se

qual borboleta

lançando pós de cio

a ovular dentro da luz.

........................................................................

Por fim,

prensar três jabuticabas

graúdas e bem maduras

no crisol

que seguras entre as pernas.

LA 99/10

 

 

 

 

 

 

 

         Mecanismo

 

Claro que o riso dói.

Se precisamos rir

é porque estamos entre opostos.

Rimos porque — nos vendo deprimidos —,

temos no riso a mais bela saída.

O choro é anti-heróico,

e nós estamos ( lembra? )

na jornada do herói.

 

O riso é a dor

traduzida em coragem.

LA 99/10

 

 

 

 

 

              Cansar-Mudar

 

Quando cansamos de sofrer,

mudamos.

De cansaço em mudança,

de mudança em cansaço —

nos transformamos.

A vida tem a rota,

o viver tem as pernas.

Chegar?

Ninguém sabe o que é isso.

Como é que pode chegar

quem em tempo algum partiu,

senão de seu auto-engano

ou suas auto-sabotagens?

LA 99/10

 

 

               Cena

 

A tarde boceja.

O vento dorme sobre as folhas.

Rosas morrem a olhos vistos,

mas sorrindo.

Aves cantam a meio-tom

num silêncio ardendo em chamas

que lhes amolece o pio.

Cigarras chiam

seu script genético.

Passantes ( longe )

quase fundidos na paisagem.

O asfalto ( deserto ) distante

mostra a sua língua preta

entre colinas fatiadas.

Calor de cozinhar os ânimos.

A tarde,

apoiada em si mesma,

boceja e coça a vulva.

LA 99/10

 

 

 

 

 

 

                         Desprogramando

 

Desliga o piloto automático,

e mergulha,

não no oceano —

mas no infinito em ti.

Quem sabe nessa atitude

( politicamente incorreta )

não achas a direção

e topas com a consciência

de tuas próprias ações?

LA 99/10

 

       

 

 

 

            Azeite

 

A caminhada humana

se faz

por picos e vales,

por picas e vulvas.

De orgasmo em orgasmo

havemos de nos distrair

e — distraídos —

chegar.

 

Coragem, caminhantes.

Amor com humor

é o azeite da vida.

LA 99/10

 

 

 

 

             Aos Que...

 

Aos que vão com o vento —

ele já se mudou.

Aos que vão com a lua —

sua fase, agora, é nova.

Aos que vão com o sol —

é meia-noite.

Aos que vão com as estrelas —

o céu está nublado.

Mas é só aguardar

que vem a chuva e o sol

e talvez o arco-íres

ponha uma ponte sobre o vale.

 

Aos que vão com o Verbo —

sosseguem:

estão além das intempéries —

têm uma lâmpada aos pés

pelo caminho

que passa por eles dentro

e vai sair

na casa de Aba-Pai.

LA 99/10

 

 

 

                     Autofagia

 

Na fluida solitude

de seu sonhar

abre-se a rosa

em ledo espanto

sob a fúria do sol.

Luz que lhe moldou o corpo

e agora o estupra.

Que se impõe como vida,

e mata.

Fotofagia

em forma de pétalas.

LA 99/10

 

 

 

 

                    Ou... Ou...

 

Cerca pulada,

jardim pisado.

 

Choraremos as flores,

ou plantaremos outras?

 

E as não plantáveis?

Semearemos

sua metáfora.

LA 99/10

 

 

 

 

 

           Cordas-Tripas

 

Quantas vezes nos seguramos

nas próprias tripas.

O chão se abre

e nos engole em alma-coração —

despenhamos por nós dentro

e caímos, caímos num sem-tempo.

Segurar em quê,

a não ser no cipó da fé,

nas raízes da esperança?

E querer mais o quê

quem já tem esses dois?

E haja, meu Deus, cordas-tripas

para não nos perdermos de nós.

LA 99/10

 

 

 

          Convite

 

Topas, Zefa, —

amar à larga, pra valer,

amar até dar cãimbra

e a tarde fazer bico?

Amar até a barriga

roncar de fome?

Amar até cair a noite,

até vir a madrugada

e os galos confirmarem

que o mundo não acabou,

mas nos chama para a luta:

para ganhar-perder a vida?

LA 99/10

 

 

 

 

                     Privilégio

 

Cagar no mato

vale três análises.

Juro-vos que, no mínimo,

é psicoterapêutico.

 

Há quatro ingredientes

que fazem de uma cagada

( no mato)

algo digno dos heróis:

os mosquitos que nos abençoam

o que ninguém jamais ousou;

a brisa que refrigera

nossas bélgicas e holandas;

o insólito maço de folhas

com que limpamos a bunda,

e a luz rútila do dia

que nos mostra a genitália

sem a maquiagem das sombras.

 

Cagar no mato, senhoras

e senhores,

é coisa, no mínimo, rara —

além de muito saudável.

 

Insiro tal privilégio

no rol de tudo o que chamo

de coisas boas da vida.

LA 99/10

 

 

              Salto

 

Fizeram tantos labirintos

pela estrada da Palavra,

que (hoje) só podemos chegar

por um salto quântico em nós,

isto é —

pela simplicidade

da criança.

LA 99/10

 

 

 

 

 

            Dobrando O Cabo

 

Quando dobrei meu promontório

dei com uma nave-eu já retornando —

foi aí que percebi

que eu tinha outras idades.

Vi que tempo e ser são asa e vôo

e que o real é feito de realidades

ou coisas-sonhos

em que reinventamos tantas rotas

quantas partir permite.

.........................................................................

Nesse momento minha nave

se transformou numa estalagem

à beira de todos os caminhos...

A partir desse então-entendimento

foi que deixei que a vida me viajasse

e eu estivesse em todos os lugares.

LA 99/10

 

 

 

 

 

               Estratégia

 

Muitas vezes pensamos que algo é,

e somos felizes

com o que pensamos ser.

E saltamos e dançamos,

vivemos dias felizes

lá em nosso coração.

 

Se um dia descobrirmos

que estávamos enganados —

que o engano apenas seja computado

a partir desse momento.

O mais... haverá de ter sido

um belo, um feliz engano.

LA 99/11

 

 

 

 

 

              Raios Da Roda

 

Em Cable Horn,

aldeola à beira do Pacífico,

há sol, depois chuva, e sol e chuva

a cada poucos minutos.

Seus habitantes fizeram de seu clima-tempo

uma metáfora positiva.

Se algo não está bem, logo dizem:

É só esperar alguns minutos...

Se algo está bem, eles já lembram:

Saboreemos esse bem encarecidamente —

esticando-o o mais possível em nosso paladar,

pois que daqui a pouco há de acabar.

Os raios da roda sobem,

mas logo descem.

Em Cable Horn

o tempo arremeda a vida.

LA 99/11

 

 

 

 

 

      Entre As Águas

 

E agora, Zefa,

o que faremos

com tanta água em volta?

 

Onde a musa,

a mulher,

os filhos,

os amigos,

o nome?

Onde os anos de força,

o destemor?

As unhas,

a garra?

Onde o chão,

onde o onde?

 

E agora, Zefa,

o que faremos

com tanta solidão?

 

         — Nos coçaremos, amor.

A solidão orquestraremos

com nosso riso

naquele tom de abandonados

( mas não de auto-apiedados )...

Quanto ao mais, assistiremos

( catando carrapatos

da paciência do boi... )

àquilo que os céus quiserem.

Se afundarmos, veremos

se bóia alguma coisa

a que nos apegarmos.

Enquanto isso, aquietemo-nos

numa atitude

de completa fraqueza,

e aflorará Aquele que nos é.

LA 99/11

 

 

 

 

        Entre Rodas

 

Ela trazia entre as pernas

uma bela bicicleta.

A maioria dos moços

ficavam loucos

para dar uma voltinha.

Seu silêncio aprumado

( entre a altivez e o charme )

sugeria-lhes tirassem

sua esperança da chuva.

Só o seu noivo, o Temístocles,

é que podia pilotá-la —

com todo o malabarismo

que a máquina propiciava.

Aos mais só lhes restavam

soluções metafísicas.

LA 99/11

 

 

 

 

         Racionalização

 

As mulheres adoravam

seu jeito neandertal.

Mas na hora de transar

preferiam os mais suaves.

Claro que ele ficava puto

de raiva,

se bem, então, lhe vinha à mente

a sua-sempre Rosinha —

dois braços sempriabertos

e aqueles gemidozinhos

de bichinho virtual...

LA 99/11

 

 

  

 

 

 

                       Redação Escolar

              ( 40 linhas )

 

Se eu fosse um fora da lei,

roubaria até os cinqüenta.

Depois ia gastar os meus suores

com as putas de verdade —

com aquelas que ganham a vida

na bateia do seu garimpo.

 

Não deveria ser sujo de sangue

o que eu bispasse:

haveria de ser roubo limpo

( como o vinho que a cúria bebe ) —

só uma repartição das coisas

daqueles que não repartem.

( Nenhum fricote ou delicadeza —

só uma questão de princípios,

ou pensam que um ladrão

não possa tê-los? )

 

Claro que daria o dízimo

de tudo o que roubasse

e me confessaria toda vez

que tornasse a fazê-lo.

 

Claro também que só roubaria

as pessoas honestas —

assim o dinheiro

só seria meio sujo —

sujo na parte que deveria

estar no bolso dos pobres.

 

Claro ainda que não daria um real

aos pobres. Detesto Robin Hood

que ao invés de ensinar aos míseros a roubar,

roubava tutaméias para eles —

enquanto os seus roubados

engordavam como porcos.

 

Iria gastar o fruto do meu trabalho

com as profissionais,

as que são putas de verdade

( e não dublês ) —

putas por vocação:

mulheres que assumem a sua arte

como o poeta assume

a sua poesia.

LA 99/11

 

 

 

 

               Chave De Pernas

 

Deu uma chave de pernas no marido,

que o coitado berrou de acordar os vizinhos.

Chamaram a polícia, o corpo de bombeiros,

os monges da Última Esperança,

os guardas-noturnos,

os seguranças do prefeito —

e nada: o pobre gemeu, gritou, estalou

até que estourasse moído

entre aquelas pernas terríveis.

 

O júri a inocentou.

O seu advogado os convenceu

de que a pobre da mulher

sonhara que um jacaré

mamava nos peitos dela.

LA 99/11

 

 

 

             Equus Asinus

 

Desejava que o pênis do seu filho

fosse igualzão ao seu —

e mandou dois barbudos

cortarem-lhe o prepúcio.

 

Contam que o rapazelo

foi ficando fenomenal,

espantoso

( menos pelos arranjos prepuciais

do que pela esperança posta nele).

 

O que amolava o pai do moço

( a ponto de muitas vezes sentir-se arrependido... )

era a fila de espera ( agendada )

que pontualmente vinha fazer trabalhos de biologia,

estudar batatas raras

e a montaria perfeita para o agreste —

o Equus Asinus da fazenda —

coisa estupenda

capaz de penetrar quaisquer veredas

e andar por trilhas quase íngrimes

e bastante esburacadas a passo firme e penetrante.

LA 99/11

 

 

 

 

 

                          Jardinagem

 

As pedras que lhe atiravam

ele as ia plantando com carinho,

e toda tarde as regava —

cantando hinos, louvores

e recordando belos poemas

com voz que lhe aflorava

lá do fundo do seu ser —

voz ungida e orvalhada

como se houvesse passado

pelos jardins de Deus.

 

O lixo que lhe jogavam

ele o dispunha com afeto

bem ao pé de cada pedra,

e toda tarde os regava —

pedras e lixo.

 

Toda a ofensa do mundo

ele as ia  transmutando

em calmas flores mentais —

plantava-as com ternura,

e toda tarde as regava.

 

Os vizinhos e os amigos

que o visitavam

ficavam maravilhados

de verem tantas espécies de flores

em canteiros de geometrias tão macias,

formando desenhos exuberantes,

ricos, versáteis, graciosos.

 

E todos lhe perguntavam

de onde é que lhe vinham

sementes tão especiais,

plantas tão variadas

( plantadas por mãos que têm fé ),

bonsais tão avoengos,

rosas tão raras...

( sonhos operizados

na glote das pétalas ).

LA 99/11

 

 

 

 

 

 

          Ingenium Vaginationis

 

Fez um curso de xiranhagem.

Vinte e três meses intensivos

no hi-tec da trepolagem.

Vaginava com a maestria

de ourives-relojoaria

em virtual fornicofilia —

desenvolvida no espaço

pela fodengenharia

da nanotrepologia

transplantada depois

para a megacopulação

em nosso tempo sapiens.

 

Desenbarcada com imprensa e feudo,

foi recebida regiamente

pelo terrível executivo ( seu esposo ) —

de nome lapidar e assustador.

.........................................................................

Além de cativar o tálamo,

ter uma coluna em nove suplementos,

dar cursos astralizados —

foi agraciada com a alcunha socialite

de “Traquéia de diamantes”.

LA 99/11

 

 

 

 

 

              Pausa

 

Por vezes uma impaciência

( pegajosa )

nos mostra o quanto nos falta

( a nossa falta de ser ) —

e nos empurra para outros ângulos

de ver e ver-nos.

 

E dói, essa falta nos dói

até à medula de não sermos.

 

Paciência!

Continue a emprestar o tempo

sua argila

e o Espírito seu sopro.

E Deus nos seja

o caminho de Casa.

LA 99/11

 

 

 

 

             Ao Ar Livre

 

O homem não vê a realidade,

mas as imagens que se fabricam dela.

Vive a mexer o grande caldeirão

de seus fetiches onde borbulha

o fantasmagórico —

Mercadorias & Palácios

com seus licores-ópios de auto-engano.

 

E o mundo

é esta caverna — ao ar livre —

onde poucos se vêem

ou se percebem vestidos de peles

e com as mãos sujas de sangue.

LA 98/05

 

 

          

 

 

                 Fantasmas

 

Nossos fantasmas transitam

do porão para o sótão,

se bem que lá nem se notam,

gostam mesmo é de cá —

do macio das penumbras.

 

Nossos fantasmas somos nós —

o conjunto dos nossos medos,

traumas, insuficiências

e o doer do que nos falta

a nos seguir pelas idades.

 

À medida que os encaramos

e quanto mais os compreendemos —

vamo-los dissolvendo:

atravessam nossas paredes

e há uma dupla liberdade.

 

Só existe um entre eles

de que não quero dispor —

é o fantasma de uma princesa

que me ensina gentilezas

muito além do Kama-sutra.    LA 99/11

 

 

 

          O Sol E A Rosa

 

Às vezes não saber

é a nossa toda coragem,

razão do nosso sorriso,

paciência da nossa espera.

Como também, não poucas vezes,

nossa fraqueza

tem sido a nossa fortaleza

e salvação.

 

Sabe Deus o que diz a rosa

ao sol que lhe dá a vida e a morte

ante o silêncio das pedras.

LA 99/11

 

 

 

 

 

 

                    Transgressões

 

Por vezes

pensar-sentir contramão

ajuda a achar o fio interior,

reencontrar o nexo

e endireitar a estrada.

 

Mister às vezes transgredir

( ir além do permitido ) —

dar uma espiada

e voltar para o posto.

É que há muito mais coisa

do que gostam que vejamos,

e outras que vão muito além

dos olhos dos repressores.

Por isso umas escapadelas

por ruas contramão

ajudam a nos situar

e transcender(-nos ).

Depois voltamos,

bichos pequenos —

mas que ousam seus passos pela noite.

LA 99/11

 

 

 

 

     Mercadoria Erótica

 

Belas mulheres,

vestidas de brisa,

copulam no ar

com o ventre.

 

Esmagam rosas

entre o ventre e olhares

que se untam de libido.

 

Seu charme em chamas

róseo-vermelhas

em turgescências

estranguladas.

 

Belas mulheres

vendendo sensualidades

que inventam e empacotam

para os turistas

dar de comer à sua fome.

LA 99/11

 

 

 

 

                      Invertebrados

 

Quem pensa mal

não fala bem.

Sem pensamento

não há linguagem.

 

Sem estudo e pesquisa

o pensamento

será sempre invertebrado,

e a linguagem —

um balbucio.

 

E ( neste caso ) a arte —

um zero sentado à esquerda

da pretensão.

LA 99/11

 

 

 

 

 

                         Para Onde Quer...

 

Para onde quer que olhemos,

lá está algo ou alguém

que expressa a sua essência

na ânsia de ser mais.

Uma dor mágoa

de saber-se provisório,

mesmo nas pedras.

Um sentimento azul e amplo

de saber-se bem mais

do que estas gotas de água

de um conhecer(-se) oceano.

Talvez o adivinhar-se

o próprio sonho de Deus

que já nos é.

 

Para onde quer que olhemos

sentimos a Presença

que nos aguarda despertar

do nosso Belo Engano.

LA 99/11

 

 

 

          

               Melodia Reciclada

 

    Você é feliz, minha Zefa?

    Sim, André, como você...

                    Quem o é de verdade

não sabe que é —

ou então só o fora 

pela metade.

 

    Não é muita exigência, Zefa?

    Felicidade não se exige, André, —  

      ela existe

      quando somos capazes

      de musicar a vida.

      E dura enquanto soubermos

      reciclar-lhe a melodia.

      LA 99/11

 

 

 

 

 

        Por Telefone

 

Quem não tem molho-humor

pra engolir sapos e rãs,

saborear enganos

condimentados

com sais de riso

e pó de chifres —

melhor pegar o ônibus,

trem, avião

ou o lombo do diabo

e ir para um lugar qualquer

onde a vida não exista.

 

Os delicados, minha amiga,

são o escabelo

do chulé deste mundo.

...............................................................

Um abraço. Te espero

para um papo e café

ou qualquer outra coisa —

contanto que relaxe

picos e vales.

LA 99/11

 

 

 

 

      Mas Quem Não?...

 

Mancebos e mancebas,

eu sonho!

( Mas quem não sonha? )

Meninos e meninas,

eu sei!

( Mas quem não sabe? )

Puros e puras,

eu gosto!

( Mas quem não gosta? )

Padres e freiras,

eu rezo!

( Mas quem não reza? )

Santos e alérgicos,

eu ardo!

( Mas quem não arde? )

Ah, gente boa,

( mas quem não é? ) —

perdoai-me por dizer bem menos

que já sabíeis

ou tenhais feito.

Deus tenha misericórdia

de vós,

de mim

e do frade hortelão —

aquele que não passa

sem um chazinho de hortelã

com broas de amendoim.

LA 99/11

 

 

 

 

 

       Isto E Aquilo

 

Quem não sabe perder

sofre de dor maior —

pois se perder é humano

a perda — não trabalhada —

dói mais que a dor normal.

 

Perder, ganhar,

sim e não,

isto e aquilo

são coisas nossas.

Não querer aceitá-las

faz viver

uma revolta-mágoa

que fermenta a dor.

 

Aceitar dissolve

o sofrimento,

e nos religa à Fonte

que nos mostra que a perda

só é perda

enquanto seguramos

seu fantasma em nossa mente.

LA 99/11

 

 

 

            Segure Não

 

Segure nada não.

Abra a mão: deixe fluir,

deixe rolar.

Jogue o mundo de seus ombros —

é ele que nos tem de carregar.

Não decore os seus “ismos”,

nem brigue por seus “ias” —

ele mesmo riria,

riria muito de você.

Seja um barco a singrar —

sem dar carona para as águas.

Pegue o que veio buscar

e incorpore ao que lhe falta.

Ame a Deus, a si, ao outro.

O mais é pleonasmo.

Ponha amor no que fizer,

e quanto ao mais, não ligue não —

sem querer a gente acerta.

Rasteje não,

que a felicidade faz doce.

Quando se abaixa muito

o traseiro perde o charme.

 

Até até. Quem sabe,

numa das voltas do mundo,

a gente não poderá

fazer transar nossos sonhos?

LA 99/10