COISAS DA VIDA
A existência por vezes dói muito, e meditar sobre ela ( honesta e cruamente ) é um modo de mudar a nossa. Sim, um modo de nos vermos a nós em nós mesmos e nos outros e, portanto, de nos organizarmos e transcendermos. Quando isto ocorre, podemos dizer que crescemos: abrimos caminho lá por degraus em nós. A palavra reflexiva ou de análise nos filtra e nos liberta de nosso próprio visgo. Escrever Coisas Da Vida me ajudou muito. Até hoje o leio como obstáculos transpostos e/ou em trânsito de o serem. Sim: aprendi muito de mim e dos outros escrevivendo este livro. O seu tom picaresco é só uma estratégia... Aposto no discernimento do leitor(a).
Um abraço.
Laerte Antonio
Coisas Da Vida
No quarto escuro passou a mão entre os gomos da tangerina e a encontrou toda chorosa e ainda bem amarfanhada...
Bronqueou ( de leve ): — “Pô, mulher! Você vem do carteado da vizinha e nem para passar um pano nos pensamentos do marido dela?”
Dedé justifica: — “Sabe, benzinho, é que vim tão depressa, — pra ser fiel ao seu chamado — que nem deu tempo pra nada... Perdão, meu anjo.”
—Tem nada não, Dedé. Agora veja se capricha. LA 99/10
Fecho De Ouro
Disse à esposa que estava com dor-de-corno. Ela lhe respondeu que, primeiro: Não tinham sido tantos assim... e que, segundo: Já não ficava bem para um homem cultivar tais fricotes.
Beijou a mulher como se estivesse extraindo seiva de jatobá... e ambos deram uma trepada de arrastar o sofá. LA/9910
Tratamento De Choque
Sempre que embainhava sentia três espadas que formavam um trilho em que ele deslizava.
Tal fato lhe tirava o agudo, o pontiagudo e toda a têmpera da espada — sentindo-a não raramente trifatiada, frouxa — três correias...
Pelos bares da noite, entre goles e uivos assemelhados — encontrou um ex-corno ( o ex-corno é o que aprendeu a fazer de seus chifres instrumentos musicais e cabos de punhais ) que lhe tenta arrancar o trauma:
— ''Olha, cara, a vida não é dos delicados não. Nem gosta de fricotes ou raras sensibilidades. Ou o cara se adapta ou se ferra.
''Numa vida besta dessas, ó das dores! me dás uma de fresco nesse faiscar de pontas, nesse mútuo comer de cus que é o mundo?
''Não vês que tudo é tilintar de ferros, trançar de lanças, ribombar de idéias — por montes, planos, ruas, galerias... por ''ismos'' e ''ias'' deste velho mundo?
''Não vês que estás numa floresta e a vida é bicho, é fera a te comer a bunda, homem?
''Reage, ó velho Sapiens! Quem aprendeu a cruzar ferros, trançar espadas em campo aberto — por que não há de fazê-lo também nos ''túneis''?
''Muita sensibilidade, amigo, faz mal. Embainha, e acha o teu lugar. Só tem um jeito, cara: aprendermos a cruzar nossas espadas e nossas merdas.'' LA 99/10
Coveiros
É com solicitude que cavam a nossa sepultura. Durante toda a nossa vida há sempre aqueles abnegados cavando pacientemente a nossa cova. Dava até pra chorar, não fosse bem maior a vontade de rir.
Cabe a nós não nos deixarmos enterrar, uma vez que se esqueceram de que estamos bem vivos e também porque não se lembraram de nos mandar flores... Desaforo um enterro sem flores. LA 99/10
Bobeie Não
Se você tem alguma coisa boa e bonita — guarde, segure, esconda, que alguém a quer roubar. Um grande amigo, um inimigo ou o vizinho — vai querê-la para ele. Não podendo levá-la, há de fazer de tudo para manchá-la com sua porra, com a sua gordura.
Há de querer pichar, quebrar, envilecer aquilo de bom, de belo que é seu.
Cara! bobeie não. Guarde o que é seu das mãos gulosas do mundo. Filosofe não, meu caro, nem pateteie. LA 99/10
Ainda
As pedras ficarão para dizer que ainda gemem nossos orgasmos. Cantam ainda nossas vertigens e a nossa força e entusiasmo. Sorri e aguarda — nossa coragem. Que ainda sangram os nossos sonhos. Continuam a fabular as nossas esperanças. Segue alumiando o escuro — a nossa fé. Que, enfim, nossas loucuras eram sadias. LA 99/10
Molecagem
Tem sempre aqueles que desejam quebrar nossos brinquedos. Se você deixa, quebram — e vão-se embora sem deixar nada no lugar. São moleques egoístas e bastante invejosos — fazem assim por não terem por brinquedos senão os seus martelos. LA 99/10
Crise
Triste fora cair no senso comum vadio desses dias de um cinismo sem graça e sem-vergonha. Essa felicidade buscada a pau, e arrastada para dentro da caverna. Felicidade que atropela, mata, mói, esmaga, amassa em nome de satisfações pessoais — ''nóias'' de fruir a vida feita banal e tola. Uma crise de Ratio-Cordia. Desejo e pastejo. Não mais. LA 99/10
Pipocas
Por vezes a única verdade está dentro da mentira — mas nem por isso costumo trocar meus bolinhos de chuva com café quentinho por nenhuma delas. Verdade e mentira é como defecar e limpar-se — feito o serviço, tem-se uma sensação de vida nova. ................................................................................... Quanto mais você corre atrás de uma coisa mais ela se lhe escapa — sempre à mão, mas sempre além... Aprendi essa lição ( bem difícil na época ) correndo — quando criança — atrás das pombas da praça. Quando não lhes corria atrás, muitas vezes, sentado e distraído, elas vinham bicar-me o saquinho de pipocas... LA 99/10
Sol E Bruma
As pedras me dizem que o imaginado é sempre real — senão elas não o sustentariam. Nem a realidade poderia ser transcendida, nem o transcender suplantado. Sou o que me imagino ser, posto que minha essência não me é possível conhecê-la.
Imaginar-desimaginar-reimaginar é o processo por que se recicla a consciência humana. E consciência é realidade metabolizada.
As histórias que me contam as pedras, os mistérios que me ensinam as rosas não me vêm das pedras nem das rosas — mas da boca de Deus. O que existe está sempre mediunizado — necessário aparelhagem para ouvir a seus oráculos. LA 99/10
Brincar
Brincar aprendemos na infância, e pobrezinhos de nós se o desaprendemos na adultez. Brincar ajuda bem quando o brinquedo é o riso do nosso pranto. Brincar é como resfolegar quando se está a passos rápidos. Além do mais o dedo de uma criança sempre suja de chocolate a língua do nosso triste saber. LA 99/10
Pinxotação
Cuida bem da xota, amor, que o casal que não pinxota dura menos que uma rosa.
E a vida, amor, é uma cabocla xotiferante — sedenta de vaginar.
Com a camisinha de lua pintadinha de estrelas — o negócio é pinxotar e pinxotar, amor. LA 99/10
Xotenro
Xoturgidões Xotifofuras de sábado à noite em xotifofurações xóticas xóticas xóticas — até domingo ressonar xotividrado — lambendo de memória xotenridades xoternuras em xotorções xóticas xóticas xóticas de xotisfeitas xotices Xotundas xoturnas xotidões de xóticas xóticas xóticas xoxotações LA 98/10
Legislação Espiritual
Geralmente os cientistas envelhecem bastante rápido e se mostram infelizes — talvez por acreditarem em coisas que eles não sabem.
O homem é aquilo em que acredita lá no seu coração.
Jogamos nossas favas ao vento, depois nos surpreendemos vendo-as árvores feitas bem em nosso quintal.
Se a vida é o provisório, tudo o que um homem diz — diz para ser repensado e não para ser vivido. Viver deve ter raízes em nossa fé — sempre apoiada em nosso ser profundo e percutida pela luz que vem de Casa. LA 99/10
Prazer Multiplicado
Velhos amores canalhas — curtidos de muita porra, túrgida safadeza e da musse da mentira com os méis da traição.
Amores cujo maior prazer, mais aguçado orgasmo é o adultério — gemido entre três genitálias: uma mental (do cônjuge ) outra factual ( do parceiro ) e a do gozo relinchante de estarem prevaricando. Amores fornicadores, cultores da habilidade de enganar. Amores delirantes das delícias proibidas — do prazer multiplicado de trair. LA 99/10
Boas Maneiras
“Mulher de corno não admite, nem mesmo por brincadeira, que o marido se denomine assim. Por outro lado, também a mulher corna não há ( da mesma forma ) de constranger o esposo falando de suas dores. Portanto, vamos com calma ( ah! leitor: é o diácono Josias falando para as senhoras obreiras de sua grei... ), sim, com muita, muita calma e não pouca, não pouca astúcia... Prudência não é de graça, mas vale o preço.” LA 99/10
Ah!...
Saber que esses tais não gostam do que escrevemos — é uma lisonja. O problema seria se eles gostassem. LA 99/10
Mais Uma
Convidada pelo japonês para comer com ''pauzinhos'', disse-lhe que agradecia, mas que — para satisfazer-se — tinha de ser no garfo. LA 99/10
Bagagem
Tinha uma pinta, um charme, uma dignidade, um quê de companheira, um jeito de honesta — que ninguém acreditava. LA 99/10
Pensem Bem Antes...
Pensava que o marido não soubesse. O dia que lhe disse que sabia, ela não mais olhou na cara dele. LA 99/10
Do Silêncio
Só nos livramos de uma coisa pela coragem de dispormos dela. Em geral estamos tão apegados que somos os nossos apegos. E se os somos, não há espaço para sermos livres — estamos com as mãos da vontade amarradas: não há como bracejarmos — viramos pedra e a praia também é pedra: nossa autonomia jaz.
Para sermos livres precisamos saber em alma que não somos nossas necessidades e que estas só deverão ser atendidas até o ponto de não nos tornarem seus escravos.
Ter sem que o ter nos tenha. Ser sem que o ser nos seja. Sonhar sem que os sonhos sejam nossos feitores. Saber que entre o destino e a vontade é que o homem se constrói.
( A última coisa de que teremos de nos livrar será de nós mesmos. )
Com calma, bom ânimo, prudência, trabalho ( auto-) e sem ''nóias'' — chegaremos aonde chegar é tudo. LA 99/10
Descansa Nele
Não deixes doer, entrega a Ele. Se é tudo Dele, tua dor também deve ser.
Não deixes doer, põe na mão Dele. Confia Nele — só Ele sabe o que fazer.
Não deixes doer, entrega a Ele. Doendo Nele há um descanso em sofrer.
Não deixes doer, transfere a Ele. Se tudo é Dele, tua dor também deve ser.
É tudo Dele. Transfere o doer que há no teu ser — descansa Nele. LA 99/10
Maitacas
E o conteúdo? ...................................... O estudo, a pesquisa, o viver, o colher — não precisa?
Ah, bandos de maitacas que só deixam pelo ar o rastro verde do seu tagarelar. LA 99/10
De Um Sacerdote Egípcio
Esperar sempre pelo melhor — numa postura impermeável à covardia.
Percutir todo dia a tecla da alegria ( a criança ensina como ).
Ter o riso por companheiro e amigo. LA 99/10
Advertência
Cuidado, Eupígia! Não se assente pelada sobre a areia, que emperra a máquina e ninguém há de querer fazê-la funcionar. LA 99/10
Mineração
Turgescências na tarde-noite toda olhos. No ar, no chão, nas paredes — um só desejo rosa e grená. Os da ativa preparam ferramentas para extrair seus preciosos diamantes. LA 99/10
Lição De Casa
— Paiê! A professora pediu que alguém de casa me explicasse ( taqui ó: de modo bem caseiro ) como é que o dia nasce.
— Fácil, Carlinhos. Quando o sol belisca a bunda da noite ela entra debaixo dos lençóis... E pronto — tá feito o dia. LA 99/10
Aqui, Ó: ...
Querem-nos caretões, bobões, babões — recitando cartilhas. Aqui, ó: ... para eles.
Desejam-nos bonecos, cópias reprodutoras das engrenagens do Circo. Aqui, ó: ... para eles.
Amam-nos vis, pequenos — batedores de palmas, dizedores de améns. Aqui, ó: ... para eles.
Adoram-nos vassalos e bobos dessa corte cujo rei está passeando. Aqui, ó: ... para eles. LA 99/10
Veras Primas
Sinceras, só as infláveis ( não-desfolháveis ). O mais... te cuida, cara. Bobeia, que pulas-cantas feito tiziu em arame de farpas.
Sinceras, só as primas — que não são veras nem verões. Só as primas de folhas mortas — as veras primas de sonhos-heras... LA 99/10
Por Tuas Linhas
As Tuas linhas tortas, Senhor, sejam o meu caminho. Haverei de traduzi-las segundo o espírito da letra. Muito do que leio-escrevo tem por motivo o desafio de desfolhar em contos aquelas mulheres lindas que são Teu pão e vinho lá em Cânticos dos Cânticos.
Por Tuas linhas tortas sei no meu coração o que conversas com as rosas entre o tempo e a eternidade.
Por Tuas linhas tortas, sim, retortas de tão certas, — é que estamos caminhando um para o outro: e já Uno um no Outro. LA 99/10
O Que Nos Resta
A prazer dado, amada, não se abre a boca pra se dizer se bom ou ruim. A prazer dado — muito obrigado. Ou Deus lhe pague — se acompanhado de bolinhos com café.
A amor dado e comprazente não se contam os latejos de seu orgasmo. Amor de graça ( pelos cantos ou no leito ) — sempre um pleito com jeito de satisfeito.
O homem será um dia ( é o que anda por aí ) perfeito. Por esse tempo nem deverá precisar de comer desse amor. Já não terá falta nem de si nem do outro. ( Que tristeza viver fincado para ter a ilusão de ser feliz ou julgar-se realizado.)
Não precisar será o descanso ( e a glória ) de quem viveu em falta, sentindo-se esfomeado, vendo-se pequeno, escasso de si, de tudo — e sempre morto de fome e-fome-e-fome-e-fome desse amor.
Um dia, amada, seremos o sorriso e os olhos de Aba-Pai — ou seja: estaremos sossegados dessa fome, dessa sede dos diabos a que chamamos vida.
Mas até lá saibam os Santos: não temos pressa. Vamos dando uns aos outros desse amor que, se não presta — é o que nos resta. LA 99/10
Clara Fofó
Ali pelos seus quarenta foi seriamente acometida de um tamanho tesão, que lhe foi impossível segurar os diques. Deixou marido e filhas e foi ver o que a vida tinha.
Pintou o sete. Adorou.
Dedicou-se a pintar o setenta. Fez-se uma cama de faquir. Achou celestial.
Agora está pintando o sete vezes setenta. Fez uma promessa: se sua holanda agüentar — vai ceder a sua pele para fazer uma cama elástica naquele playcenter do Sul. Alguém lhe disse que fará das sobras sachês, patuás, bolsinhas, tangas afrodisíacas para turistas que apreciam nossos pelegos do avesso.
Fez promessa a uma tal Santa que a ajude a gozar os méis da vida mastigados com favos e zumbidos. Confessa-se no domingo ( embora afirme que pecado não existe ) e na segunda recomeça. Quer deplumar todo tipo de galináceo de cujas penas vai enchendo as almofadas dos seus sonhos.
Clara Fofó tem um pique de galo e a fruição eterna dos insetos. LA 99/10
Maridão
Marido dos bons fatura alto. É manso, finge que não percebe e saboreia a vida por detrás do cachimbo e do jornal. ( Pode substituir o cachimbo por um hobby elegante qualquer.) Sempre bem-humorado e bem-disposto. Mão aberta ( em casa ). Jeito jovial e discreto. Não pergunta. Vê-não-vendo. Cala sempre num sorriso que jamais vê o pecado maior do que o perdão. Trabalha duro e acumula. Bainha singularíssima. Cavalheiro e sempre elegante — o sorriso das rodas e a risada das festas. LA 99/10
Furunha
Miguelzinho era o fura-bolos do largo. Moleque que se prezava falava grosso com ele. Afinava à toa-à toa. Era jeitoso mesmo pra furunhar ( termo que ele mesmo inventou e a molecada consagrou ). Quando surgia lá longe alguém sempre apontava: Olha lá o Furunha! ...................................................... Não era bom no braço, mas — no bico — ninguém descascava sementinhas com mais habilidades. Tinha muito cuidado com os espadas, já os bainhas se bobeassem ele os enchia de alegria ali mesmo sobre o areão da praça ( areia e grama ), sempre em semi-solidão. .................................................................. Furunhamentos aferrados como cópulas de gansos — longas e agoniadas. ...................................................................... Na época das pipas, dos piões e das Festas do Asilo ( com suas barraquinhas cobertas de indaiá ) — o Furunha trabalhava tanto que ficava mais esguio.
Não poucas vezes seu pai vinha buscá-lo entre a poeira do areão ( com a molecada jogando bola ) e o céu já todo olhos. — Tchau, Furunha! Até amanhã, Furunha — a molecada caprichava no apelido. O pai ficava embaraçado, tentando adivinhar... LA 99/10
Talioterapia
O diabo lhe levava a esposa, mas logo-logo ela voltava, trazida pelo anjo da necessidade que ela chamava de arrependimento.
E assim foi e refoi — muitas idas-e-vindas-e-idas-e-vindas... até que um dia, “graças a Deus” — o diabo a levou de vez ( encarnado num negociante de ferro velho ).
Quando sentia saudade da mulher, ia à casa de d.ª Zeca, mãe dele, que o benzia contra dor de ausência e o pegava — a pedido do próprio — de cabo de vassoura até quase matá-lo — terapia de reversão masoquista e ressuscitativa de auto-estima, segundo ele.
Foram anos e anos de pauladas, até que um belo dia a mãe lhe estica um olho — terrível como o fim do mundo, e lhe diz: Aqui está a conta de todas as vassouras que quebrei na tua cabeça. Ou pagas, ou neca de terapia. Fez um acerto pagando com seis-pré, um sofá de quatro lugares, uma geladeira meia-vida e uma tábua de passar. Era patético ver como ele precisava de apanhar e como sua mãe — amorosamente — o servia, pela bagatela de dois salários mínimos por mês. LA 99/10
Já E Já-Já
— É já ou já-já, amor? Qual a diferença? — Já é na hora, já-já dá tempo de fritar os bolinhos... — Você quer com bolinhos ou sem, amor? — O bom, Dadá, é o já no já-já . — Entendi, meu André: o já é o prelúdio, o já-já o conserto em si. — Simplifiquemos, Dadá: café puro e café com bolinhos ( ao mel de jataí ). ................................................................. Galos cantam seus cantos derradeiros. O sol vai levantando de... va... ga... ri... nho... o penhoar da noite. O frio arrepia-lhe os pígios e a xiranha — que se dissolvem em luz e cores-sombras... .............................................................................. — Dadá, tem mais café? — Bastante, amor. — Sirvo com quê? — Com panqueca quente do banho. LA 99/10
Cepo Sonso
Trepavam às 8, à meia-noite e às 6. À empregada cabia lembrar-lhes a hora, o minuto, além de preparar a cama e os ingredientes. Nenhuma obsessão — apenas hábito, bom hábito ( diziam ).
Tanta trepada que a empregada ( espiando pela fresta ) ficava maravilhada, e congesta.
Um dia a viram masturbar-se ( deixou cair o guarda-chuva... ) e odiou-se, enrubesceu-se, quis matar-se... No outro dia — enrubesceu... No outro — desviou os olhos... No outro — masturbou-se de novo ali na porta ( com o mesmo cabo do guarda-chuva lá do tempo do Império — um cepo sonso e sensual. Parecia sorrir... ).
Pediu aos patrões que a treinassem para os recordes olímpicos... Disseram-lhe que não tinha condição — havia uma russa que — sozinha — em pleno vôo, num avião militar, embotara setenta e nove espadas e doze sabres... Respondeu-lhes que, mesmo sem preparo, quando jovem foi ser monja, sendo que numa só noite... Aí mandaram que parasse, e montaram uma zona para ela.
Rapidamente transformou-se em vidente e só dava consultas a homens do poder ( claro que também a algum artista famoso, turista europeu ou das Arábias... ).
Quando enriqueceu levou os antigos patrões para carregar malas em inúmeros safáris onde ela mesma estudava e catalogava, — com extremos e apaixonados detalhes —, a cópula dos felinos. LA 99/10
Dependência
Ser amado, que desgrama! Depender desse amor pra ser feliz!
Sonhos de encher a boca e escorrer méis... Belos, bons de ver e fruir... Querer levá-los para casa, que miséria, ó genitália-coração!
Depender desse amor pra ser feliz, doce miséria!
Por ora, vamos treinando amor, treinando amor, treinando amor, amada. LA 99/10
Quarto Insone
Esquentes não, amor. Sem querer a gente vence. Quem sabe até consegue não querer conseguir.
Coça, com jeito, coça. Pega um prego no mental, amada, e coça — coça aquela dor em alma.
A vida é linda, amor. O que às vezes a estraga é não ter nádegas para apanhar. A gente pode até ser, não digamos feliz, mas aprendiz.
Coça, coça essa dor — tira-lhe as botas, descansa-lhe os calos. Escuta os galos: estão puxando a cortina da madrugada.
Silêncio, amada: escuta o vento arrepiando o escuro... Aproveitemos, amor, a seda cinza do despontar do dia, e juntemos nossas penas. LA 99/10
Prodigamente
Ali pelos quarenta entrou num baita dum cio, que poliu a espada de um terço da cidadela. Quando se cansava da esgrima, voltava para casa, e seu marido louvava a Deus ( sic ) porque a que estava perdida voltara para o lar. Idas e vindas de descanso e de esgrima. LA 99/10
Voz Das Pedras
Ó alma possessiva, ó alma egoísta — abre mão, viajante! Ninguém tem coisa alguma a não ser sua viagem no anteparo do Espírito. Nossa morada é o sopro, nossa aventura é a luz.
Come do pão que lançaste sobre as águas, e empreende, ó alma, a travessia das tuas brumas para a luz do Sonho-Quem. LA 99/10
Conversa Com A Zefa
Há nomes que são poemas feudais — passaporte, senha, tobogã ensaboado para o reino dos homens.
Nomes que deitam e rolam, não na grama nem na cama — mas no Direito de Todos.
Quanto a nós, minha Zefa, vivamos longe deles — ou o Sistema nos esmaga igual a caramujos...
Aprendamos com os grilos — sempre felizes, mas na moita. LA 99/10
Favos, Favas
Mudou-se para Favas, porque apesar dos favos, o amor é hoje favas não contadas. E se já não se pode contar com os seus favos, esse senhor teria mesmo é que ir às favas. Mas sosseguem, que apesar de muita cera e pouco mel, o amor ainda tem seus favos. LA 99/10
Trégua Da Luz
A gente conversava longamente, depois íamos desconversando, não menos longamente — tomando café bem quente com bolinhos feitos na hora. E ríamos, não do que havíamos falado, mas do desconversar de tudo — porque este recontava sem negar nossa quase infelicidade de saber que poderíamos ser tão felizes quanto nem desejássemos ser. ( Sempre a delícia de adiamentos que nunca chegam a cumprimentos — quem sabe porque nosso inconsciente não devesse estar ciente das nossas doces inconsciências — trégua da luz ( sem o grená do sonho ). Enquanto o vento despenteava a paisagem em nosso ouvi-lo longe e perto, nossas roupas se esquentavam numa enorme poltrona ao lado da cama, e os nossos sapatos esperavam sonolentos a hora de voltarmos para a loucura das avenidas cobertas de aço e gente. LA 99/10
Gamas
Se tratamos os professores como crianças e as crianças como professores — a escola se tornará cinismo, e o propósito ensino-aprendizagem — um judas-beijador. O espinho convive com a rosa, mas ele tem outra função. Um e outro se explicam e se completam em natureza, fim e interação. Cada um é cada um, embora se transportem um no outro. A realidade se explica nas diferenças e estas vão construindo realidades paralelas — postigos dos intuitivos e transcendências dos que se atrevem ao diferente, ao desconhecido na aventura de conhecer(-se). No autoconhecimento o humano se espelha e aprendemos com ele-outro a nós mesmos. Rosa-espinho, professores-crianças ( ou quaisquer outras relações ) — partes de um real em várias gamas num todo consciencial em expansão. LA 99/10
Bananas
Sempre que recordamos podemos ingerir pencas de bananas podres.
Sempre que ansiamos podemos mastigar pencas de bananas verdes.
Em geral nos esquecemos de que — bananas maduras — só o hoje as possui. LA 99/10
Procedimentos
Por vezes se embaraça o fio da meada. Já não desenovela, mas pressiona o novelo — então se parte. Sua ponta adentrou por veredas erradas — caminhos que não levam à expressão desenvolta, simples e feliz da vida. O ser se tolhe em sua própria trama — faz-se escravo de si. O fio que ele conduzia não foi bem dirigido — em vez de fio de vida estava se tornando em seu oposto. Necessário voltar — achar a ponta, continuar o caminho — livre, solto , fluente — com claro discernimento, clara percepção do que se está fazendo. Ir bem ou mal são apenas procedimentos. LA 99/10
Pedras E Rosas
O recordar tem sede e fome ( em alma ) da nossa Casa em nós. Vontade daquele pão com cheiro de varandas banhadas da alegria de já não precisar — pois que ali o amor jamais deixou de ser em nós todas as coisas.
Por ora, é cultivar rosas entre o duro das pedras e o nosso construir a estrada através de Deus em nós. LA 99/10
Flores
As flores das mulheres sempre foram os homens. Se eles lhes mandam flores é só pra lhes dizer que preparem os vasos.
As mulheres sosseguem: que — para os homens — flores sempre foram mulheres.
É por isso que um morto tem sempre companhia. LA 99/10
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