COISAS DA VIDA

 

LAERTE ANTONIO

 

 

Aqui, Ó: ...

 

Querem-nos caretões,

bobões, babões —

recitando cartilhas.

Aqui, ó: ... para eles.

 

Desejam-nos bonecos,

cópias reprodutoras

das engrenagens do Circo.

Aqui, ó: ... para eles.

 

Amam-nos vis, pequenos —

batedores de palmas,

dizedores de améns.

Aqui, ó: ... para eles.

 

Adoram-nos vassalos

e bobos dessa corte

cujo rei está passeando.

                    Aqui, ó: ... para eles.

 

 

    As saudades, Agora...

 

As saudades, agora, aprenderam

boas maneiras:

lavam até as mãos antes das refeições...

Já não choram enquanto comem,

nem palitam os dentes

(palitar os dentes?!) —

são fantasmas tranqüilos,

sem fricotes nem chiliques.

Já não têm o gosto amargo,

mas sabores de sorvetes

em dias de verão e praia.

Não têm os espinhos-sentimento

de terem perdido o insubstituível...

mas o impulso para o outro e o diferente.

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Saudades?

Claro que as há e as haverá —

               principalmente as de amanhã.

 

 

Bananas

 

Sempre que recordamos

podemos ingerir

pencas de bananas podres.

 

Sempre que ansiamos

podemos mastigar

pencas de bananas verdes.

 

Em geral nos esquecemos

de que — bananas maduras —

                   só o hoje as possui.

 

 

          Conselho De Pai Velho

 

              Esquente não, Eulália. Guarde a calma, —

o pai a aconselhava assiduamente.

Esquente não, que pode virar nuvem...

Somos quase só água...

Cerca de 80% de água, minha cara!

Por isso mesmo, filhota,

mantenha o nível da caixa —

a bóia no ponto certo,

nenhum calor excessivo...

 

Sabe, Eulália, na vida

a gente tem de aprender

a engolir sapos com aleluias

e até pregos

com pedaços de orelha de martelo....

 

Relacionar-se é bicho feio —

entre a onça pintada

e o carrapato miudinho.

A gente anda de orelha em pé

e a coçar entre o couro e o cabelo...

Há olhares que são facas,

sorrisos que são coveiros...

Sentimentos blindados

e palavras de esteira...

com intenções, é claro: fidalgas e santas.

 

Comer o pão com o suor

ou com o sorriso do rosto —

não sei, menina, o que é pior.

Talvez só mude nisso:

a primeira é maldição antiga,

a segunda é maldição moderna.

 

Esquente não, filhona.

Chegue nunca ao risco vermelho...

Não viu nossa vizinha? Subiu!

Evaporou bonito.

Quando o marido viu,

a pobre já não era —

o homem só achou suas sandálias

e — bem no meio delas — duas

perucas:

uma triangular

e a outra elíptica...

Chamou o compadre para confirmar,

e dele ouviu para crer:

É isso mesmo, André: as duas são da Lazinha, —

mesmo porque essas coisas

o tempo

faz doce para comer,

vai deixando de lado no prato...

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Esquente não, Eulália,

que a vida não remonta a vida,

nem rebobina

              a sua bela comédia.

 

 

Conversa Com A Zefa

 

Há nomes

que são poemas feudais —

passaporte,

senha,

tobogã ensaboado

para o reino dos homens.

 

Nomes que deitam e rolam,

não na grama

nem na cama —

mas no Direito de Todos.

 

Quanto a nós, minha Zefa,

vivamos longe deles —

ou o Sistema nos esmaga

igual a caramujos...

 

Aprendamos com os grilos —

sempre felizes,

                   mas na moita.

 

 

      De Um Sacerdote Egípcio

 

Esperar sempre

pelo melhor —

numa postura impermeável

à covardia.

 

Percutir todo dia

a tecla da alegria

( a criança ensina como ).

 

Ter o riso

por companheiro

              e amigo.

 

 

                                 Furunha

 

Miguelzinho era o fura-bolos

do Largo.

Moleque que se prezava

falava grosso com ele.

Afinava à toa-à toa.

Era jeitoso mesmo

pra furunhar ( termo

que ele mesmo inventou

e a meninada consagrou ).

Quando surgia lá longe

alguém sempre apontava:

Olha lá o Furunha!

......................................................

Não era bom no braço,

mas — no bico —

ninguém descascava sementinhas

com mais habilidades.

Tinha muito cuidado com os espadas,

já os bainhas se bobeassem

ele os pegava ali mesmo,

ali mesmo sobre o areão

da praça ( areia e grama ),

sempre em semi-solidão.

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Ah, o velho Largo!... Quermesses parques circos

brinquedos de época lutas ( o Areão! ) brigas

                   escuros medos conchegos furunhamentos...

                   E o padre que aparecia, meu Deus!

                   O Padre-Assombração

                   do Largo da Boa Morte!

                   ( Tinha nome de santa... )

                    Depois de um vento forte,

                    lá por redores das meias-noites...

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Na época das pipas,

dos piões

e das Festas do Asilo

( com suas barraquinhas cobertas de indaiá ) —

o Furunha liderava os moleques

no erguimento das barracas.

 

Não poucas vezes

seu pai vinha buscá-lo

entre a poeira do areão

( com a turma jogando bola )

e o céu já todo olhos.

             — Tchau, Furunha! Até amanhã,

     Furunha —

a molecada caprichava no apelido.

O pai ficava embaraçado,

                   tentando adivinhar...

 

 

                       Lição De Casa

 

    Paiê!

A professora pediu que alguém de casa

me explicasse ( taqui ó:

de modo bem caseiro )

como é que o dia nasce.

 

    Fácil, Carlinhos.

Quando o sol belisca a bunda da noite

ela entra debaixo dos lençóis...

E pronto —

                    tá feito o dia.

 

 

        Maitacas

 

E o conteúdo?

......................................

O estudo,

a pesquisa,

o viver,

o colher —

não precisa?

 

Ah, bandos de maitacas

que só deixam pelo ar

o rastro verde

              do seu tagarelar.

 

 

               Maridão

 

Marido dos bons

fatura alto.

É manso,

finge que não percebe

e saboreia a vida

por detrás do cachimbo e do jornal.

( Pode substituir o cachimbo

por um hobby elegante qualquer.)

                   Sempre bem-humorado

e bem-disposto.

Mão aberta ( em casa ).

Jeito jovial

e discreto.

Não pergunta.

Vê-não-vendo.

Cala sempre num sorriso

que jamais vê o pecado

maior do que o perdão.

Trabalha duro e acumula.

Bainha singularíssima.

Cavalheiro

e sempre elegante —

o sorriso das rodas

                   e a risada das festas.

 

        Molecagem

 

Tem sempre aqueles

que desejam quebrar

nossos brinquedos.

Se você deixa,

quebram —

e vão-se embora

sem deixar nada no lugar.

São moleques egoístas

e bastante invejosos —

fazem assim

por não terem por brinquedos

              senão os seus martelos.

 

 

Quarto Insone

 

Esquentes não, amor.

Sem querer a gente vence.

Quem sabe até consegue

não querer conseguir.

 

Coça, com jeito, coça.

Pega um prego no mental,

amada,

e coça —

coça aquela dor em alma.

 

A vida é linda, amor.

O que às vezes a estraga

é não ter nádegas

para apanhar.

A gente pode até ser,

não digamos feliz,

mas aprendiz.

 

Coça, coça essa dor —

tira-lhe as botas,

descansa-lhe os calos.

Escuta os galos:

estão puxando a cortina

da madrugada.

 

Silêncio, amada: escuta o vento

arrepiando o escuro...

Aproveitemos, amor, a seda cinza

do despontar do dia,

                   e juntemos nossas penas.

 

 

          Que Diacho!

 

Você fez doce,

e o sonho criou bicho.

Chiques chiliques,

fofuras,

mimos amanhecidos —

a vida ficou de tarde:

o tempo foi empedrando.

 

Suores frios

com arrepios

e calafrios que queimavam.

Você sabia

que eu me subia em fios d’água,

trepava em poste,

escalava penhascos,

rodava como cachorro

tentando pegar o rabo...

 

Você fez doce —

fez muito doce.

Apurou demais suas doçuras:

agora o sonho é tarde —

o dia já não arde.

 

( Em nossos arroubos,

parece que a vida é muita...

Mas não: a vida é demais pouca —

e quase sempre não dá tempo...)

 

Você fez doce,

e a vida ficou tarde.

Sim: apurou demais o doce e...

..................................................................................

Cadê a colher?

         — Fogo queimou.

              Cadê o tacho?

         — Tempo raspou-lambeu.

Cadê o tempo?

         — O pêndulo jogou-o longe.

Nem doce-colher-nem-tacho.

              Que diacho!

 

 

                                Saldo

 

Se no final sobrar o riso,

o saldo terá sido

positivo.

 

Tolos e sábios

lá um dia se encontram

na simplicidade.

Não só os corruptos como os santos

terão vergonha de ter vivido

às custas uns dos outros.

As orgulhosas primaveras

terão visto

que sua roupa de grife

foi tecida pelas mãos de sombras

e brumas

de outono-inverno.

 

E um dos maiores pecados

terá sido não saber rir

aquele riso trans-coisa

                   que a vida espera — paciente — que aprendamos.

 

 

                  Segure Não

 

Segure nada não.

Abra a mão: deixe fluir,

deixe rolar.

Jogue o mundo de seus ombros —

é ele que nos tem de carregar.

Não decore os seus “ismos”,

nem brigue por seus “ias” —

ele mesmo riria,

riria muito de você.

Seja só um barco a singrar —

sem dar carona para as águas.

Pegue o que veio buscar

e incorpore ao que lhe falta.

Ame a Deus, a si, ao outro.

O mais é pleonasmo.

Ponha amor no que fizer,

e quanto ao mais, não ligue não —

sem querer a gente acerta.

Rasteje não,

que a felicidade faz doce.

Quando se abaixa muito

o traseiro perde o charme.

 

Até até. Quem sabe,

numa das voltas do mundo,

a gente não poderá

              fazer transar nossos sonhos?

 

 

               Talioterapia

 

O diabo lhe levava a esposa,

mas logo-logo ela voltava,

trazida pelo anjo da necessidade

que ela chamava de arrependimento.

 

E assim foi e refoi —

muitas idas-e-vindas-e-idas-e-vindas...

até que um dia,

“graças a Deus” —

o diabo a levou de vez

( encarnado num negociante de ferro velho ).

 

Quando sentia saudade da mulher,

ia à casa de d.ª Zeca, mãe dele,

que o benzia contra dor de ausência

e o pegava — a pedido do próprio —

de cabo de vassoura até quase matá-lo —

terapia de reversão masoquista

e ressuscitativa de auto-estima,

segundo ele.

 

Foram anos e anos de pauladas,

até que um belo dia

a mãe lhe estica um olho —

terrível como o fim do mundo,

e lhe diz:

Aqui está a conta de todas as vassouras

que quebrei na tua cabeça.

Ou pagas,

ou neca de terapia.

Fez um acerto

pagando com seis-pré,

um sofá de quatro lugares,

uma geladeira meia-vida

e uma tábua de passar.

Era patético ver

como ele precisava de apanhar

e como sua mãe — amorosamente —

o servia,

pela bagatela

                   de dois salários mínimos por mês.

 

 

       Veras Primas

 

Sinceras,

só as infláveis

( não-desfolháveis ).

O mais...

te cuida, cara.

Bobeia,

que pulas-cantas

feito tiziu

em arame de farpas. 

 

Sinceras,

só as primas —

que não são veras

nem verões.

Só as primas

de folhas mortas —

as veras primas

                    de sonhos-heras...