CANCIONEIRO DO ESPRAIADO
de LAERTE ANTONIO
(textos 2)
Bem-te-vi cantou três vezes.
Também eu pensava que via.
Via não, minha Rosa.
Nem a mim mesmo,
nem ao meu derredor.
Mas nem por isso é que vamos
botar a boca no trambone...
Deixemos os bem-te-vis
na sua ilusão de ver.
Aliás, minha Rosa,
bem diz o povo:
O que não se vê não dói.
E quem lá somos
para querer que doa,
não é mesmo, ó você?
LA 01/002
Sim: nada que me encante
ou por que valha a pena me encantar.
A vida? Nem é bela, —
a não ser em padrões que assim a impingem.
Mas não dou o meu braço
a torcer: faço questão
de vê-la bela-a-meu-modo —
uma questão de honra
construí-la bela para mim...
Ver-lhe o nexo-desígno-finalidade:
meus pés no chão, minha cabeça no colo de Aba-Pai.
Meu todo-ser jamais abrindo mão
da fé, do amor, da esperança
com a consciência a transcender-se.
Uma questão de amor-próprio.
Saber que Deus me é desde eu não me lembrar,
e que lá em funduras-ser
nós ( Ele e eu ) temos sido um só sonhar —
ah, isso faz crescer
pela árvore da vida!
Belo é viver. A vida?
Nem é preciso ser bela.
Assim como ser feliz
em meio à infelicidade.
.................................................................
O mais, Rosinha,
é quase nada.
LA 01/002
Aprende, Rosa, a esperar
sem fazer nada,
a não ser coçar as prendas.
Quem espera, Rosa, cansa,
quem não espera, se alcança,
ao menos conseguiu
sem se deixar enganar.
Aprende, Rosa, a esperar
coçando os mimos —
a vida parece não gostar
de quem vive a ansiar...
Rastejes não, que viras caramujo...
e ainda de lambuja alguém
te chama de algo sujo...
O mundo e teus amigos
te querem ver
em posição napoleônica...
Despreza o mundo, Rosa, —
aprende a esperar de banda...
E escuta...
escuta os batráquios do Espraiado:
— Comprou?
— Comprei.
— Por quanto?
— Não sei.
......................................................................
Época furibunda.
Até os sapos, Rosa,
estão marquetizados.
LA 01/002
O amor, suas mumunhas e alfazemas.
Sempre armando intricados teoremas.
Solvê-los como? Pela inteligência
ou pelo coração? Por qual ciência?
O amor tem mil e um estratagemas —
lisos para furar quaisquer esquemas:
dribla, faz gol em clara frangolência,
passando a perna em toda competência.
Para entender o amor, — só não querendo...
Isto é: só confundindo o dividendo
com o resto... e sem fazer da conta muita conta.
Assim, de amor se entende sem a sede
de querer entendê-lo. Diz que a lontra,
após comer o peixe, fura a rede.
LA 01/002
A tua pretensão é mero “eidos”—
dela resvalo com espertos peidos,
uma vez que jamais esquecerias
de me servir salada com enguias...
Teu pai veio de longe com uma fome
bem mais porosa que a da pedra-pome...
Se bem que conheci uma donzela
que esvaziava toda uma panela...
Mas o fato maior, que mais me lembra,
foi de montar adolescente zebra
e desmontar listrado até o colhão...
Bem sabes que te adoro as carambolas...
Enquanto te arrepio e me consolas —
te racho a ameixa preta com o dedão.
LA 01/002
É Mais O Modo De...
Se ser feliz for muito luxo,
minha Rosa,
a gente pode ser só a metade,
ou até menos.
E mesmo assim ( pra não causar inveja )
a gente diz que a vida é só espinhos...
e vai vivendo bem devagarinho,
fingindo nem estar vendo...
Sim, minha cara:
o dar certo das coisas
é mais o modo de as fingir ir indo...
Se ser feliz for muito,
a gente negocia —
com Deus, com a vida, com os donos...
e claro: com a gente mesma.
Para quem teve fome e sede
de tudo quanto viu e imaginou —
o suficiente é bastante,
o pouco é muito,
o nada é alguma coisa.
E sai da reta,
senão o mundo...
com espinhos e pétalas e tudo,
o mundo ó: ...
Quem tem se cuide.
Com autodó então, amiga,
a coisa fica te-ra-to-ló-gi-ca...
...................................................................
Aceitemos o menos, minha Rosa,
contanto que abençoado.
Se a vida é espinhos,
também tem as suas lindas cacetadas —
claro: contanto que abençoadas.
LA 01/002
De zero a não sei quantos
quilates
garimpo desde o Eufrates
até o Espraiado —
que passa aos meus ouvidos,
já que, nas chuvas,
o escuto resmungar.
Tomo meus mates,
leio meus vates
e percorrendo o Eufrates
( no tempo )
e o Espraiado
( no olhar ),
vou garimpando o meu dizer —
de zero a não importam quantos
quilates.
Vou bateando os meus versos
por esses rios diversos
e outros em sonhos submersos.
Proseio a minha poesia
na dislalia
de cada dia.
Vou, sim, escrevivendo os meus prosemas
( de inesperados temas ),
os meus prosemas
com alguma coesia
( entre meus vates,
meus mates ) —
de zero a não sei quantos
quilates.
LA 01/002
Não muito raro agimos
como se a verdade
estivesse no mensageiro,
não na mensagem.
Claro: verdade e ser
são um monômio
que dá nexo-finalidade
ao gênero humano,
e ao indivíduo um compromisso
consigo mesmo e o outro.
Um monômio —
verdade-ser,
cuja mensagem
lhe é duplamente inerente.
Se Deus não nos fosse —
de que modo se manifestaria?
Ser-Verdade-Beleza —
o tripé do Universo.
..................................................................
Deus nos continue sendo,
e o Espraiado, o Nilo, o Amazonas,
a nossa vida,
o grilo —
sejam o Seu amor em movimento!
LA 01/002
A vaca era tão bela, que ordenhá-la
causava tremeliques sem iguais.
Seu ubre? Uma bruta de uma mala
cheia de lingerie, cremes e sais...
Seu mugido, entre o branco ( quase opala )
e o burro a voar, mostrava tons sensuais —
iguais aos da cebola, pois, cortá-la,
faz chorar ante gestos em fractais...
Seu andar tinha o trote tosco e duro
das modelos pisando sempre esguias —
na cara um sei lá quê de rosa e muro...
Seu mijar era altivo e encachoeirado —
ouro em brancas perucas tão macias...
que o vento faz frigir num tom magoado...
LA 01/002
Eis me vem Joaninha na saudade,
e me ponho a falar com a finada:
“Bem fizeste em sair em debandada —
fazer o que por cá, minha comadre?!
“Nessa vida que é só necessidade,
fazer-em-refazer: vontade inflada...
Tão-logo morta, já ressuscitada...
Que fazer com o diabo da vontade?!”
“Fazer nada ( parece responder ),
nada: coisa nenhuma contrariada —
fazer só o que a vida quer fazer:
“Uma trepada orquestra outra trepada ...
Um bromeliáceo pronto a florescer...
Uma chinela sempre bem calçada.
LA 01/002
Do príncipe, só o cavalo.
Da princesa, só os sapatos.
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E então?
Então que o desencanto
é algo de nascença e de cultura.
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A ilha, Sancho, até existe...
mas não vale o problema.
Por outro lado,
faz-se preciso uma saída —
chupa-se a jabuticaba,
e não se engole o caroço.
Ou colhe-se o bem-me-quer
e acredita-se nele.
LA 01/002
Feliz O Rio ( Ou O Homem )...
O pensamento pesa, Rosa,
esmaga a possível ventura.
Bem faz o Espraiado,
que corre
e pensa que não corre...
porque não pensar
já é um modo de fazê-lo.
Ou os rios não pensam
lá em nossos pensamentos?
Sim, minha Amiga, pensar contamina
todas as coisas, e de tal modo
que, se paramos de pensar,
vamos sendo pensados pelo mundo
e pelas coisas...
De tal sorte que o peso de pensar
é um mal tão necessário
( e diga-se: tão amado ),
que, sem ele, não saberíamos
ser a dialética só uma maneira
de justificar o prazer
de sermos infelizes —
de vermos no Espraiado
algo-rio que corre e passa
pelas calhas do tempo... e que, passando,
nos arrasta pelo pensamento
( isto é: pelos cabelos da memória )
para um onde-passado, que dói
só porque existem águas que fingem estar a passar...
Feliz, Rosa, é o rio ( ou o homem ) que passa
e sabe pensar que não passa
em seu nenhum pensar.
LA 02/002
A minha Rosa é humilde como esse Espraiado,
que espelha o azul enquanto em alma canta,
e sopra a sua flauta de bambu
entre o silêncio e os desvãos de suas pedras.
A minha Rosa é tão bela,
que nem sei se ela existe.
Mas entre existir ou não,
me livra de ser só e triste.
Minha Rosa é a saudade
de um futuro feliz —
como a infância o foi por aqui,
tendo por escudeiro
seu não saber que não sabia...
Muitos moinhos e fantasmas —
antes de ouvir de Quixotes
e Dulcinéias,
de Sanchos e suas ilhas...
Muita beleza que nem era bela...
Muitas verdades que hoje são mentiras.
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Mas minha Rosa, não:
Rosinha é bela
como poder sonhar.
E lá em eu amá-la
há uma brisa cheirosa
que a despetala...
então o Espraiado a leva devagar e manso...
( como Ofélia é levada
debaixo do salgueiro,
enquanto Desdêmona canta... )
mas lá embaixo a recompõe,
e me devolve rosa,
sem espinhos nem haste:
Rosa de carne e amor,
Rosa de nervos e bateia —
garimpando diamantes
nas águas da Alameda Ganymèdes.
LA 02/02
Pu, Um Hipocorístico
E havia uma menina
( cujo nome não me lembro )
que morava bem lá longe ao lado do Espraiado,
à direita do seu correr...
( a gente a descer com ele.)
Era mais bela que os anjos
essa moça-menina
a quem chamavam de Pu,
e era fácil saber por quê
ninguém nunca passava
da metade da palavra...
No máximo diziam:
Lá vem a Pu, filha de Dona-Puta.
Sim: Pu virou o seu hipocorístico.
Vivia debaixo dos pés da vida:
gente que o mundo pisa
( cospe-lhe no fundo dentro )
e jamais sabe que existe.
Sempre com suas poucas roupas,
Pu só tinha o seu tenro corpo
e a graça a esvoaçar por ele —
de dentro para fora...
Subia vez por outra
pisando a areia rosada,
fazendo gorjear a água rasa...
Aqui em cima,
no valo do rego d’água
que desce das baçorocas
do Horto Florestal —
Pu adentrava arroio acima,
e, protegida pelos barrancos
de olhos bissextos que por ali passassem,
a menina tirava
a quase nenhuma roupa,
rolava n’água fria e limpa,
sentava num banco de piçarra
( uma perna de cada lado ),
recostava-se no barranco,
e mandava os moleques formarem fila
( liderada pelo Furunha, lembra dele? ),
abria os braços e os ia chamando um a um...
Além da ordem, da disciplina,
havia um regra maior:
acopladas as partes,
ela contava (em voz alta
e em espaços de segundo) —
até dez. E era o ponto fim-final.
Em caso de desobediência,
o expectante imediato
arrancava o trepante,
e — rápido —
espetava a sua vez,
novamente até dez.
( O ritual tinha de ser rápido,
sem lacunas nem falhas.)
Para mais de a metade
o tempo era insuficiente...
Então mestre Furunha ajudou:
Olha bem, minha gente —
enquanto na fila,
o negócio é fazer a coisa
ir pegando no tranco...
Chegada a hora,
o fordeco já está empinado
querendo chupar macaúva...
Aí é só ser ágil
no reengatar primeira e ré...
deram tão certo,
que Pu passou a recompensá-lo
( e ai de quem fingisse perceber!...):
a cada número
ela dava uma tossida...
E o liso Furunha podia agora
comer seu doce com mais charme —
ora pelas beiradas,
ora mais pelo centro.
LA 02/002
As Noites Ficaram...
As noites ficarão tão longas... Sós,
fechados casarões e os rastros fartos,
pelas paredes, de ávidos lagartos...
Sementes de carunchos entre pós.
As noites ficarão tão frias... Mós
de alma de pedra em convulsão de partos...
Fantasmas a espiarem pelos quartos —
arrastando os chinelos dos avós...
As noites ficarão tão tristes... Cães
ladrando longe-perto, uivos do vento...
A infância e o cheiro de café e pães...
As noites ficarão tão sós, que a morte
será temida pelo sofrimento —
jamais pelo seu charme e seu aporte.
LA 02/002
bonitinho, certinho, redondinho —
feliz da vida por fritar bolinho,
um ajudando o outro a se coçar?
Quem sabe não iríamos gostar
de beber pelo avesso o nosso vinho,
numa área cheirando a rosa e pinho —
sempre com uma vontade de adiar?...
Quem sabe não seríamos felizes
sem precisar nem sê-lo?... Assim: de lado,
como a luz n’alma irial dos chafarizes...
Ah! fora bom demais viver assim
e assado, bem ao lado do Espraiado
em porquês-não variando em porquês-sim.
LA 02/002
Aqui, Sim!...
Aqui, sim,
na minha torre de capim —
sonhos herbívoros,
pensamentos vegetais,
emoções de bromélias,
sensações samambaias,
sentimentos arbóreos.
Todo um viver herbícola
com mordomias florais
a gorjear com as brisas,
a operizar com as ventanias.
Aqui, sim,
na minha torre de capim,
vivo dias macios —
assovios chupando cana,
nenhumíssima zurrada.
Novidades? Nem-só-uma.
Aqui sou até feliz
coçando o meu nariz
e aquela peça que homem coça
quando entediado e sozinho.
Aqui, sim, tenho os doces tremeliques
dos ramos que se abaixam
quando o vento — pega-não-pega —
lhes corre atrás...
Aqui, sim,
na minha torre de capim,
faz dias calmos e azuis.
Aqui, sim, me torno sábio
comendo do próprio feno —
degustando a clorofila
dessas paredes herbáceas:
dou à minha razão
aquela víride ração —
rica em folhas, sais e fibras
( folhas de abanar tédios,
sais de sonhos,
fibras de gargalhadas ),
rica também em minerais
e outros “ais”,
“inas”, “enos” e sei lá que mais.
Aqui, sim,
na minha torre de capim,
até que poderia
receber amigos e amigas
e — num rodízio de boas carnes —
tendo ao lado macio feno,
a gente até que devia
zurrar de felicidade,
ter ataques de piripaques,
meliques de aquiliques,
fricotes aos pinotes,
e aqueles tiques tão normais
entre chiques chiliques.
Aqui, sim,
na minha torre de capim.
Daqui estendo o meu braço,
molho a mão no Espraiado
e refresco o meu bigode
debaixo de cuja edícula
escondo meu choro e riso,
minha ironia
e meus assíduos enganos.
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Minha torre de capim
só a troco
pelos sapatos do arlequim.
De volta quero
uma mordida no quindim
e três pétalas de Rosa.
LA 02/002
E Tudo Assim...
que a tarde vai tornando em palha e pó.
Bocas que vindimei, de calorosas,
ei-las já sem orvalho, como Jó...
Sorrisos que guardei em glamourosas
lembranças, como as da mulher de Ló...
Palavras a ecoar, ainda cheirosas
de quem as pronunciava: um brilho em pó...
Corpos de rosa ao vento tresloucado...
Bocas de amora: o vinho derramado
sobre a toalha branquinha de lembrar...
E tudo assim sem lágrimas nem mágoas —
tudo passando como passam águas...
num ritmo ternura de passar.
LA 03/002
Sarar? Sare Não
para agradar,
mas só e quando
para agradar-se
e transcender-se.
Não mude nunca
pra fazer as vontades
do outro.
Nem sare nunca
dessa loucura bonita.
Se o diabo quiser de volta
as diabruras que você ama —
pergunte a Deus se pode devolver,
isto é: se ( Ele-Deus ) tem coisas melhores
para lhe dar.
Com certeza terá...
Então, sim, troque as divinas diabruras
pelas diabólicas divinuras.
Mas sarar, não sare nunca
dessa loucura bonita.
LA 03/002
Às Vezes Pela Tarde...
misturado aos murmúrios do Espraiado.
Lá em cima das palmeiras com seu bócio,
entre as palmas, o vento é masturbado.
Um cheiro doce de uvas, nacarado,
vem lá do outro vizinho, é seu negócio.
Um cachorro a ulular lá no cercado...
Dê-lhe pão quem tiver, e afeto: coce-o...
A Kombi do padeiro evém crocante.
Buzina o “estou aqui”, e vende muito, —
o café já cheirava fumegante...
Curtir o ócio é tão bom quanto adiar —
deixar para outro dia ( e bem fortuito... ).
O melhor dessa vida é se coçar.
LA 03/002
Uma Espécie De...
Uma espécie de bardo do deserto,
constituído de argila e de Espraiado,
misto talvez de grito a descoberto
e silêncio brejeiro, desconfiado.
Uma espécie de grilo abandonado,
tocando violino a céu aberto, —
cansado do revés de ser sonhado
de incertezas cultuadas como o certo...
Uma espécie de piada em timbre grave,
ou de gorjeio e vôo de sombra-ave...
Talvez nem isso, se isso fosse mais
que beijar as mãos frias da princesa,
fugida do palácio para a empresa
que demitiu seus sonhos e cristais...
LA 05/002
Asnos pastam ao de lá do corgo,
juntos com novas éguas —
que deverão emprenhar.
Zurros grotescos,
intermináveis
( comparáveis a nada )
agridem a calma da tarde.
........................................................................
A molecada vem vê-los
cobrir as éguas,
e até aproveitam para masturbar-se.
Um moleque arrazoa:
Deus deu pra esse bicho coisa grande —
senão não alcançava...
O corgo de Ganymèdes
corre gorgolejando
a canção
que mestre Carlos lhe ensinou
ao lhe dar uma flauta de pedras...
LA 05/002
Harpas...
vibrando aos dedos do Espraiado —
parelhas delas pelos ramos,
umas respondendo às outras
coisas-sons tão infindas
quanto lindas
a tilintarem hialinas...
Harpas foliais,
em primavera-verão,
farfalham — vírides —
notas verdes-roliças...
No outono-inverno ciciam finas,
ríspidas-íntimas,
ressequidas-quebradiças —
vozes que voam volúveis
no agosto dos corais de folha e vento.
Harpas liriais,
em alma-coração,
choram em tempos-virtuais,
em horas hiemais —
seus ais
( por silêncios-jamais )
lá em varandas de lembrar você.
LA 05/002
Metade do ano. Muito pó e vento.
O Espraiado ( magrelo ) a espreguiçar...
A folha amarelece e, lento-lento,
o bosque se reconta a bocejar...
( A saracura acorda a alba a trespotar... )
Tempo de carrapato e céu pedrento.
Olha o vento: fantasma em chão poento...
Cavalos, vacas ( vários ) a pastar.
Vozes alegres pelas chácaras vizinhas.
Galos bicam a luz... Rolas-rolinhas
se queixam em arrulhos cor de amora...
Vária música: vozes, folhas, vento,
gorgolejos... A vida aqui-agora
cabe inteira num calmo pensamento.
LA 06/002
que o Espraiado afaga
sua barriga esguia
( outrora, dentre a relva e sobre a areia rosa,
hoje, sobre o chão liso dessa canaleta:
sua flauta de pedras... )
a ouvir coaxos e coaxos...
Sim: há coaxos e coaxos, e até coaxos,
como há batráquios e batráquias...
De sorte que, seu moço, essas calmas águas
têm ouvido de há muito os sons
que vão de uma só rabeca
ao sinfônico de muitos instrumentos
somados àquelas numerosas vozes
dos dezembros chorosos —
que o povo compactou
num diálogo, hoje, a lembrar
a consumodoidice:
Comprou?...
Comprei!...
Por quanto?...
Não sei!...
Pagou?...
Datei!...
Pra quando?...
Nem sei!...
.......................................................................................................................
E o Espraiado, no tobogã de pedras,
marulha manso a ouvir de antanho a hoje
coaxos, coaxos: mil e mil coaxares...
até aqueles tais — não poucos —,
mas outros: sufocados coaxos.
LA 06/002
Trespota um pouco mais alto
para a gente lá de cima
acreditar
que me quebras teus potes
nos portais da minha casa.
Vai, saracura, trespota!
Tira da cama a madrugada,
que os galos já estão bicando
o trigo de um novo dia.
Quebra teus potes:
três potes,
três potes, —
de três em três, mas dúzias deles,
que a luz virá catando os cacos, —
quebra teus potes,
teus potes:
três potes três potes três potes —
o eco espirrando cacos
nos portais da minha casa.
LA 06/002
Que fazer, minha Rosa,
senão usar e abusar
do privilégio de amar
até a tarde arder em chamas?
E entre as cinzas desta tarde,
minha Rosa,
ir saltando com os olhos
de alpondra a alpondra desse céu,
e novamente-sempre —
amar amar amar
até as estrelas uma a uma
irem se despencando
sobre o lençol do dia?
....................................................................
E como é bom, minha Rosa,
cá na beira do Espraiado,
ouvir o canto molhado
— discreto, quase tímido —
da perereca!
LA 07/002
É aflição demais, minha Rosa,
angústia demais da conta
pra tudo acabar
numa só barra de chocolate...
Desfolha-te, minha cara,
despetala-te hoje —
antes que o vento o faça.
Chora copiosamente,
mas de prazer,
só de prazer, minha Rosa.
Sim: goza o te esfolhares
nas mãos da vida.
Não vês nosso Espraiado,
nosso velho Espraiado?
Corre com sede
no meio do ano,
mas nem por isso...
Corre encachoeirado
nos dezembros de voz grossa...
mas nem por isso,
nem por isso, minha Rosa,
se esquece de cantar.
É angústia demais da conta
para tudo acabar
( lá em cima a terra é roxa... )
numa só barra
de chocolate.
Como o Espraiado,
aprendamos, minha amiga,
nós também a passar cantando
( e com o acompanhamento
dessa flauta de pedra... ).
Assim como o Espraiado —
cantando baixo,
quando tem sede...
Cantando alto,
quando em regalo...
E descendo —
porque é descida.
E subindo —
porque é vapor.
Quando a dor é demais,
minha Rosa,
a gente aprende a cantar.
A cantar e passar,
a cantar e passar...
O rio, Rosa,
é um chorar-se por dentro,
e um trazer-se pra fora —
lavado das próprias mágoas.
LA 10/002
Um Soneto, Um Bisbilho...
um burburinho molhado,
um gorgolejo de sonhos
ou gargarejo de ninfa
à espera de seu fauno.
Ninfa? Põe plural nisso: ninfas,
e todas calipígias,
bem ou mais que as camonianas —
num furunhar hi-tech
sem demandar muitas águas...
O Espraiado é um soneto —
um bisbilho delicado,
um murmúrio de coração
como os gemidos de Rosinha
prensando jabuticabas...
LA 11/002
Só As Sobras...
O leito, não da amada,
mas do Espraiado
é talvez menos macio
que o de Rosinha —
pois que aquele não se cobre
de folhas e de pétalas —
ao ponto de a empregada
bronquear no outro dia:
“Pô, patroa! Desfolhando assim,
a senhora me mata —
não de tanto trabalhar,
mas das lombrigas —
a boca sonhando sabores,
louca para acolher
os delírios desse vento...
que lhe entra pé após pé,
leve, bem leve e sorrateiro
a erguer as sedas da alvorada
já entremostrando a lingerie...
Ai, patroa, quem me dera
esse vento de dois pés,
duas mãos cheias de sonhos...
me ofertasse, não a metade,
nem um terço —
mas as sobras, só as sobras
de seus chiliques ( ai, patroa! ),
de seus chiliques de cetim.
LA 11/002
Bom É Lembrar Dezembros...
Bom é lembrar dezembros: chuva e vento...
Tardes chorosas... Bem lá longe os sinos...
A adolescência ardendo em sonhamento,
olhos buscando piscos alcalinos...
Sempre presente o bem-te-vi: seus trinos
bravos e fortes na haste do momento...
Cheiro de pão assando, e outros divinos
cremes beliscam ainda o pensamento...
E os grilos com seu canto niquelado?!...
A voz de bom moleque do Espraiado...
A “árvore” sendo armada e muita pinha...
A moçada sentada pela escada...
Jogos, flertes, risada mais risada...
O olhar sempre bonito de Rosinha.
LA 11/002
A carne moça canta, minha Rosa.
A velha tem gemidos.
E coisas há que hão de ser feitas
com maestria e competência —
com olhos e mãos de sonho:
assim como faz a rosa
que nem sabe da tarde...
O Hoje é o grande dia:
a melhor hora,
o melhor momento.
Nele podemos.
Saber e ousar —
eis a moeda que ele nos exige.
Sim: o Hoje é onde Deus sonha.
Não nos assuste a tarde.
Cantemos, minha Rosa,
cantemos
e o dia degustemos!
.......................................................Depois,
lembremos!
LA 11/002
Tudo passa tão depressa,
que amanhã já não dá tempo.
O hoje é o ponto sazonal
de se plantar-colher.
Inventemos, minha Rosa,
a nossa felicidade
em meio à grande desventura
que o mundo se recicla
a cada dia.
Tudo passa tão depressa,
que quando vemos, não vemos!
Nós e as coisas
já não formamos ângulo...
Façamos, minha Amiga,
o nosso doce de goiaba
( ele vale pelo cheiro! ):
retiremos os bichos de ontem
e depuremos o que serve —
o que temos nas mãos.
O hoje é o doce
e a boca de degustá-lo.
Se lá fora, minha Rosa,
estalam raios —
faz tempo bom no teu olhar.
LA 11/002
quando a gente não tem alternativa.
Bem melhor ter na mão a coisa viva
que seu fantasma a roer amendoim...
Mas, vá lá! Os sapatos do arlequim
nos faz rir porque muda a perspectiva
da nossa dor com aquela que deriva
do riso que transforma o tu em mim...
Sim, vá lá! Pois nem tudo é assim tão caro...
Faltando cão, usa-se o próprio faro,
e aprende-se a narrar para si mesmo.
Sonhar é bom, mas pode ter seu esmo...
A outra margem era mais charmosa
quando por lá morava a minha Rosa.
LA 04/003
Bru-u-u-u-u-u-u!...
Tarde. O outono boceja amarelento.
O Espraiado, magrelo, nem gorjeia...
( Faz pouco esteve de barriga cheia... )
Entre sonhos hiemais, cochila o vento.
A vida sonha em ritmo mais lento —
seiva morosa, — calma — , lagarteia...
Um tédio morno pasce sobre a areia...
O vento unha o barranco branquicento...
Um sono-sonho em tudo... um filme mudo...
O tempo se arrastando nadegudo
por entre moras horas de granito...
Pior que esta tarde molambenta e plácida
só um grito no ouvido: agudo grito
durante liça com xiranha ácida...
LA 04/003
Vamos vivendo, minha Rosa,
este viver pouquinho,
até que ambos tenhamos
dias de chuva criadeira.
Este viver pobrezinho,
pouco como o Espraiado,
há de crescer com as cheias
dos dezembros chorosos.
É o Tempo, minha Rosa,
o tempo anda demais seco —
até o orgasmo tem pó.
O negócio é esperar:
tempo e amor mudam depressa.
Bom é o amor com chuva —
faz o lençol gaguejar
e o estrado dizer coisas
lá do arco-da-velha.
LA 04/003
o Espraiado assoprando a sua flauta
de pedra, pelas pedras canta e salta
em gorgolejos entre o frio e a bruma...
E desliza cantando pela pauta
de pedra, solfejando uma a uma
as notas da canção que nos resuma
o canto numa voz risonha e cauta...
O Espraiado é um soneto a recitar,
com as águas de nudez lá da Piscina,
o seu canto molhado de libido...
E lá vai ele, menestrel a cavalgar
seu cavalo de pedra, em calha cristalina...
O Espraiado é um soneto a ler-se renascido...
LA 04/003
Vem Pra Debaixo Das Cobertas...
Vem pra debaixo das cobertas, Rosa,
e não penses, não penses em mais nada —
que de tanto pensar morreu Formosa,
a vaca do vizinho, enamorada
do capim da outra margem: verdurosa
porque vista de longe e mal-olhada...
Não te deixes ficar assim nervosa,
que deste mundo não se leva nada.
Aliás, se se levasse, eu levaria
teus fungos e gemidos na lembrança
e o teu gingo que é minha afrodisia...
Vem pra debaixo das cobertas, vem,
que a noite é fria qual viver sem esperança...
e o vento, fora, geme em seu harém...
LA 04/003
Diz Como, Rosa...
da beleza outonal que te sobeja?
Sim: como disfarçar o meu encanto
desse teu dom de amora e de cereja?
Diz como, Rosa, desprezar o espanto
desse maduro em ti — posto em bandeja —
que pássaros com bicos de acalanto
sorvem em meio à sombra que voeja...
Diz como, Rosa, desfolhar-te inteira
sem que nenhuma pétala se perca
nem te fiques de mal com a roseira!
Diz como, Rosa, respeitar a cerca
que se põe entre ti e o doce pejo
de vindimar-te inteira em meu desejo!
LA 04/003
Após As Pétalas...
da nossa origem divina,
e nos come,
come-nos sem mesuras nem talheres.
As estrelas que olharam para nossos pais
só nos viram a nós...
As que nos vêem
por certo já têm olhos de outra cor.
Quem se esqueceu de ser feliz
perdeu o trem e as botas,
e se viu sobre um chão que não era de pétalas...
Quem deixou pra depois
viu que entre o “de” e o “pois”
só há um espaço virtual —
como aquele
de quem foi pra Portugal
e perdeu o lugar...
Mas...
Mas não faz mal...
Ou faz?
Sei não. Depende
da digestão
de quem faz o sermão da missa.
Só um consolo, Rosa:
após as pétalas,
os espinhos
ficam muito sem graça —
tornam-se vilões solitários...
LA 04/003
Nosso Espraiado ainda corre,
corre tranqüilo, minha Rosa.
Até aquela pinguela ( lembra? )
ainda existe ( em toda a sua
adorável flexibilidade... ).
Sempre a refaço ( pois que alongo os olhos
da memória e claramente a vejo...),
e é bom, é muito bom lembrar... Há tantas décadas,
já nos era uma máquina perfeita
de aeróbios exercícios...
Por vezes eu a vejo, minha Amiga,
na asa de um sorriso —
congelo a imagem,
e a fico saboreando na memória...
É por isso que as rosas são eternas
e os espinhos apenas os seus servos.
Tudo se foi, minha Rosa,
até os ventos já são outros...
As tardes já não têm o gosto das amoras
nem a boca suja de manga...
nem a camisa de bolinhas do arlequim
já nos baralha os olhos de alegria...
Tudo se foi,
mas nós ainda estamos, minha cara,
segurando nos ventos
e nas crinas do lembrar...
E quem, minha comparsa,
quem poderá roubar de nossa vida
as delícias em flor da mocidade
que saboreávamos no mesmo prato?
LA 10/003
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