OUTONO, A VIDA A LIMPO

                                 Laerte Antonio

     (capítulo 3 - final)

 

Tempo Verbalizado

 

Que nos resta

fazer das frustrações —

senão transmutá-las

em algo bem maior

que o sentimento de perda

que elas trazem em si?

 

Dizer ''não'' à infelicidade —

não aceitá-la: por saber

que não foi ''isso''

o que primeiro semeamos.

E pela arte,

pelo tempo verbalizado —

transformar a demolição

na reconstrução do templo...

E transmudar a derrota

em vitória.

LA 9/05

 

 

 

 

 

Solitudo-inis

 

A solidão machuca:

sociopatologia —

falta de interação

e solidariedade.

 

A solitude é amiga:

oficina de recriar,

clima-germe de fazer-crescer —

jeito de trabalhar(-se).

 

A solidão parece

falta de amor recíproca.

A solitude —

um modo introvidente

de poder fazer-amando.

LA 99/05

 

 

 

 

 

Analogia

 

Se você precisou dar a volta ao mundo

para perceber que o homem

é o mesmo homem em qualquer parte,

você perdeu seu tempo —

podia ter visto isso

sentado em seu alpendre.

A analogia nos faz chegar

sem precisarmos ir.

LA 99/05

 

 

 

 

Espera

 

Lá longe o vento

desenha seus croquis de poeira.

Faz um dia bonito

como lembrar os seus olhos.

 

O mais é pobre

como a gente ter tudo —

menos o que nos falta.

 

Junho chove azul nas colinas,

enquanto bem lá longe o vento

( outra vez ) faz fantasmas de poeira

que correm pelo acostamento

da longa estrada preta...

em quietudes de domingo.

........................................................................

 

A brisa puxa a orelha

de cada folha.

Aos poucos a tarde esfria.

E a solidão é linda

porque sei que você virá.

LA 99/05

 

 

 

 

 

Só Então

 

Só não vê

quem pensa que vê.

Certamente,

daqui a poucos anos

sentiremos vergonha

de pensar-agir

como hoje o fazemos.

Só então nos veremos —

por remoalhos de ver.

LA 99/05

 

 

 

 

Lugar Certo

 

Terra limpa no jardim —

dentro de casa é sujeira.

Comida limpa na cozinha —

dentro do quarto é sujeira.

Também o belo, a arte, o sublime

devem estar

em seus exatos lugares.

LA 99/05

 

 

 

 

 

Ah, O Mais...

 

Vem a vida e nos corta a juba

e nos dá voz de gato,

bocejos de preguiça,

garras de pintassilgo.

Vem a vida e nos dá

voz de prisão aos sonhos.

 

Nada nos resta,

a não ser

um certo autoconsolo:

já rugimos,

mordemos e seguramos —

e “fizemos” com charme.

E viva o que tivemos

coragem para viver!

 

O mais, raios o partam,

e Deus ajunte

os seus destroços.

LA 99/05

 

 

 

 

 

                 

     Auto-Inquisição

 

      Fez uma terrível fogueira

      e foi empurrando entre as chamas

      seus pensamentos

      em forma de xamãs,

      bruxos, feiticeiros, fantasmas,

      erotismos, irreverências, ironias,

      velhos medos e demônios,

      dissimulações, covardias,

      mentiras, autocomplacências,

      unhas, garras e rugidos —

      e outros bichos tão humanos

      e outras coisas tão de todos.

 

      Feito o trabalho, um monge

      ( que de longe vira tudo )

      aproxima-se e lhe diz:

    Agora, meu bom homem,

      peça a Deus que o arrebate...

    Como assim, padre? Explique.

    Explico:

      Sem as suas crenças e dúvidas,

      sem os seus bichos, suas máscaras,

      seus paradoxos e disfarces,

      sem seus diabos velhos,

      sua arrogância de bolso,

      sua desconfiança agarrada

      ao seu braço direito,

      seus sonhos e dialética

      ( a espada da palavra ),

      sem suas quase loucuras e ousadias:

      que vai fazer um homem pelo mundo —

      um homem entre os homens?

      LA 99/05

 

 

 

 

 

Mas Nem Por Isso

 

Meu cão fareja o futuro,

eu nem ligo —

vivo o presente de tal jeito,

que o amanhã se me aconteça

sem surpresa.

 

Vivo em paz com a polícia,

pago em dia meus impostos,

vou cobrindo os cheques-pré —

para ninguém dar fim em mim.

 

Faço o que posso, o que não posso

vou deixando pra mais tarde —

e esse mais tarde vira noite

que vira dia e outra vez noite

( tal como aquela roda mística

meio a meio Yang-Ying ) —

enquanto persistentes galos cantam.

 

Mas nem por isso, meu velho:

dá pra coçar os mimos,

andar de carro com meus netos,

fazer as minhas caminhadas,

viajar no meu psíquico

e ler —

ler-escrever até o dia

ou a noite fazer beiço

de vulva

contando velhas histórias.

 

Meu cão fareja o futuro,

eu nem ligo —

amanhã será melhor:

por ter sido um dia a menos,

por ter sido mais um dia.

LA 99/05

 

 

 

 

     Nós Nos Somos

 

    Quem é este que, pela música,

      move pássaros e pedras

      e por onde passam os seus pés

      a estrada vira canto

      e as criaturas se mediunizam

      da beleza percutida

      lá no seu coração?

    Este é Orfeu, meu pai.

    E este que em sua melodia

      tange rebanhos de pedras

      pelas areias do deserto —

      ovelhas-pedras

      que saltitam e dançam

      e perfumam de ternura

      os olhos de quem as vê?

    É Anfion, meu pai.

 

    Por que perguntas, meu pai,

      se tu mesmo é que dizes

      que tu és estes dois?

    Só para saber de ti, meu filho:

      até quando deixarás de ver

      que eles te são desde sempre?

      Na vida nós nos somos, filho meu —

      diversamente nos somos:

      eus a caminho de Eu Sou.

      LA 99/05

 

 

 

 

 

Um Grito, Um Canto

 

Dou um grito e espero o eco —

lá no vale das almas.

Um grito ( em que me encontre )

já transmudado em canção —

no coração dos homens.

Um canto que torne una

a nossa voz —

voz que — una — torne uno

nosso sentir-pensar-querer-ousar,

para que, unidos e juntos,

peçamos a Deus:

Senhor, dá-nos a Tua Paz

e abençoa-nos em recriarmos

a graça que nos dispensas

a fim de a respirarmos

em forma de todos os bens.

LA 99/05

 

 

 

 

 

Hi-Tec Brooms

 

Motorizou a vassoura —

saiu voando por aí

fazendo inveja a todas quantas

têm lá seus preconceitos

fincados na Idade-Média.

 

Logo encontrou Rui-Escovão

( também motorizado ), e zaz!

[ zaz com dois zz

para não ficar penso...] —

perderam ambos a razão

e caíram mais que depressa

nos contos do coração.

LA 99/05

 

 

 

 

 

 

De Soslaio

 

Muitas vezes, quando me perco,

encontro-me no humor,

na ironia,

no riso cáustico —

no poema.

Não é como não perder-me,

mas me salva de andar perdido.

Fingir que não aconteceu

faz superar o acontecido —

dando-lhe o tratamento

( quem sabe de soslaio )

de um bom remédio.

LA 99/05

 

 

 

 

 

Eterno Como A Rosa

 

O inverno ( lembras? )

era tão quente em nós

que freqüentemente saíamos

com roupa leve

para sentirmos pelo corpo

a afrodisia do frio.

 

Ardia em nós

um sentimento numeroso

de que a vida era boa e bela,

e assim sentindo —

todo o mundo cabia em nossas mãos,

porque nada existia

além de nos querermos um no outro.

 

Um inverno flambado.

Viver um sonho assim

fez muito bem —

e foi eterno como a rosa.

LA 99/05

 

 

 

 

 

Incentivando Cuidados

 

Meu coração é teu, amado.

E se minhoca eu fora —

com certeza te dera, amor,

meus oito corações.

E ficarias aflito,

perdido entre suas tragédias

e comédias.

Por isso, Serafim,

cuida bem do que é teu —

unzinho só coração,

mas do tamanho do teu sonho.

LA 99/05

 

 

 

 

 

 

 

 

Sempre Outra Coisa

 

Tempestades são um jeito

de a vida nos dizer

que a amada não virá —

se vier, será de trem...

 

O sorriso da amada

vive à beira do abismo

com saudade daquela flor

que fizeste muito bem

em não arranjar coragem

para colher.

 

O coração da amada

fuma cachimbo de barro

e cospe no chão da sala —

mas isso num sonho catártico

de que a pobre acorda aliviada

e jura nos amar

num misturador de vozes.

 

A amada beija o vizinho

e vai com ele pra cama —

no último capítulo

da novela em que figura.

 

Deixemos a amada em paz,

que neste exato momento

ela vai limpar a casa,

depois fazer o café

e, em seguida, lavar a roupa.

 

Tempestades são um jeito

de a vida nos dizer

que seus raios e trovões

foram feitos para o ser —

que seria da existência

sem o Ser que a sustenta

e o Tempo que a movimenta?

 

Tempestades são um jeito

de a vida nos dizer

que o que espera de nós

é outra coisa.

( Sempre outra coisa ).

E que a vida         

não é isso que vivemos.

LA 99/05

 

 

 

 

 

Tempo E Ser

 

Inaugurei, meu Pai, o Tempo

quando caí.

Em Teu seio eu tinha ciência.

Em mim-queda tenho consciência:

ciência de mim e do outro —

a criatura se aparta: nasce o ego.

E o tempo fica sendo a Dialética

da Existência em que o ser

se põe atrás de si a perseguir-se

no enlevado auto-engano

de ser-se — agora a se narrar fora de Casa —,

porque deslembrado de si.

Para voltar

terá de usar o caminho

do não-saber, isto é — pelo nunca

ter saído de Casa.

LA 99/05

 

 

 

                

 

Ao Sul

 

Quando me lembro de Zefa,

sinto saudade

ao sul da carne.

 

Zefa era boa como peste

na tiririca de uma horta.

Bela como não ter dívidas.

Prudente como não se lembrar...

Inteligente

como ouvir mil palavras

e só dizer três ou quatro.

Feliz como não saber.

 

Ah, Zefa!...

Quanta saudade

ao sul de nossos papos.

LA 99/06

 

 

 

 

 

Retorturas De Retorto

 

Torto é um porto

que leva a outras torturas

ou lonjuras do reto,

nada discreto —

já que vive a acusar o torto

de não ser reto.

 

Reto não é um porto —

uma vez que saiu da rota

de sua reta

e se fez torto

por seguir as torturas

que lhe ensinaram

que a retidão

caminha sobre o torto —

torturando-o por não ser reto.

LA 99/06

 

 

 

 

 

Compromisso Da Rosa

 

A rosa não se repete,

apenas nasce de novo —

encarna outra vez a voz

que diz amar a eternidade

no efêmero de seu durar.

 

O não saber da rosa

é toda a sua glória —

seu sorriso de sonho

placidamente posto

nas mãos do tempo.

 

A rosa não se repete —

apenas se compromete

a renascer do azul

da intenção e do encanto

de quem a oferta e a recebe.

 

Dizem que as rosas têm espinhos

que lhes contrastam com a suavidade.

Mas se quem as colhe usa luvas,

não dialoga com a vida.

LA 99/06

 

 

 

 

O amor que quebra com o vento

nem merecia existir.

LA 99/06

 

 

 

 

Viver é sentir falta.

LA 99/06

 

 

 

 

 

Córtex E Outros Tex

 

Lá no cortical, Deolinda,

é que o orgasmo floresce

e desce em forma de frutos

até nossas moendas.

 

Caprichemos, então, Deolinda,

com essas florações

em nossas mentes —

e façamos divinos pistaches

dos frutos que colhermos.

 

E tais pistaches

não alteram o diabete,

nem de leve os triglicídeos,

nem ( muito pelo contrário )

provocam obesidade.

 

Nenhuma contra-indicação

em florescer o desejo

e corporificá-lo em frutos

lá nos lagares do córtex.

 

Bem motivados, Deolinda,

prensemos nossas uvas

e façamos nosso vinho.

Tim-tim.

LA 99/06

 

 

 

 

 

       

Fogo Sagrado

 

Para dizer-fazer-criar —

necessário

fogo no coração:

transformar empoadas sucatas

em modelos os mais novos.

Transmudar o passado

em farinha de futuro —

e padejar aquele pão

que tínhamos lá em Casa.

 

É o fogo de Prometeu

roubado aos deuses para o homem?

Não, é o meu, é o teu —

hoje, o fogo do Criador,

distribuído aos homens

pelo Espírito de Deus —

o fogo de Pentecostes.

 

O fogo profetizado

pelo rústico João —

o que aprendeu

entre as areias e o silêncio:

''Eu vos batizo com água,

mas virá Aquele que o fará

com o Espírito e com fogo.''

 

O mesmo fogo

que entrou pelos ouvidos

( pela boca do Filho

explicando a palavra )

e ardeu no coração

daqueles dois discípulos

que palmilhavam

a estrada de Emaús.

 

O mesmo fogo que, hoje,

nos queima os fungos do porão,

nos renova o coração

e nos reaviva o destino

de filhos e herdeiros.

LA 99/05

 

      

 

 

 

 

Reinvenção

 

Outono(-inverno) —

desconstrução.

Um dobrar-se sobre si mesmo —

reflexão.

Despojamento —

aquela fraqueza forte...

naquele trabalhar-se

entre as moendas do sem voz.

Transubstanciação —

metabolismo em alma.

Circulação do espírito

pelas veias de um desígnio

a transcender-se em gamas-nóias.

O sonho re-sonhado,

o sopro re-soprado

de divino.

Trégua da exuberância —

ganho na perda.

A vida se reflete

em adegas de re-sonho,

em revérberos

de reinventar-se —

recriar-se para o baile cósmico

em cada célula.

( Reconstrução dentro do sonho —

mãos que trabalham

por detrás do silêncio ) —

a vida a refazer-se,

a vida a renovar-se

para espiar o mundo

com olhos de primavera.

LA 99/06

 

 

 

 

                  

 Ânimo!

 

Se ficarmos chorando pelos cantos

o mundo dará de ombros

e nos deixará com nossas lágrimas.

Clamemos

em nosso coração para o Senhor —

e Ele enfeixará forças em nós

a fim de prosseguirmos com os outros

em nossa condição

de caminho-caminhantes.

 

O que somos é coisa nossa —

temos de arcar com o que somos:

trabalhar-nos, transmudar-nos.

E a ordem interior da vida é sempre — para a frente!

Unamo-nos aos que já têm essa consciência,

e uma coragem recíproca,

uma solidariedade saudável

serão a nossa estrada.

 

Não nos faltará Aquele

que nos pôs a caminho.

Procuremo-Lo

o mais perto de nós que pudermos.

LA 99/05

 

 

 

 

 Re-Sonho

 

Outono: a vida se repensa,

a vida se reganha

em seu despir-se aparencial

e revestir-se em ser.

Outono se re-sonha

em primavera.

O futuro começa ontem,

por isso é que é possível

já lhe sentir saudades.

LA 99/05

 

 

 

 

 

Gradação

 

Gosto de escrever prosa.

Adoro escrever versos.

A prosa são os sapatos,

a poesia são os pés.

Com os prosadores —caminho.

Com os poetas —convivo.

LA 99/06

 

 

 

 

Na Infância

 

Se nossos pais

não nos apresentaram a Deus —

de maneira bem simples,

testemunhada e metonímica —

certamente sempre teremos

um pé atrás com a vida.

 

Por outro lado,

se soubermos quem é Deus, na infância, —

saberemos em todas as idades

e sem nenhum esforço

nem metafísica —

por já estarmos em Sua Casa

desde a infância, —

por já termos conversado com Ele

na voz de nossos pais, —

por já O termos visto

no relacionamento com os de casa.

 

Se nos apresentaram ao amor,

aprensentaram-nos a Deus.

O assunto

quanto mais intrincado e metafísico,

tanto mais facilmente a criança o assimila

( o amor é o mestre por osmose )

e o vai acomodando, organizando

e reconstruindo em sua consciência-tempo.

LA 99/06

 

 

 

 

 

Consideração

 

Após termos sofrido

tantas felicidades —

tão caras e custosas;

após termos por elas rastejado,

por elas termos procurado

como ratos entre armadilhas...

Após tanto após —

quem sabe a gente não pode

descobrir

outras maneiras de viver

( coisas em tudo diferentes

dessas tolices-venturas ) —

outras felicidades

menos tristes e infelizes?

LA 99/06

 

 

 

 

 

Script

 

O amor perdeu o script.

O sexo, a transa —

cacoetes mentais,

vêm-lhe em socorro.

Machos e fêmeas

buscam fazer

sem dizer.

A casa, a escola

também perderam o script.

Mas tende calma —

não ficareis órfãos:

segui o roteiro

das novelas,

dos artistas,

dos esportes,

dos craques,

das escolas de samba,

da música,

dos modelos:

enfim da mídia —

taí o script.

Bom proveito.

Ou não é isso-coisas

que vos querem enfiar

goela abaixo da consciência?

LA 99/06

 

 

 

 

 

      Gorjeio Metafísico

 

      Aqui aqui,

      agora agora —

      se os há,

      é só agora-aqui

      e já-ali.

 

 — Sou Darli.

      E você?

    Marili.

    Nesta vida que refoge...

      se mal não lhe pergunto:

      já transou hoje?

 — Sim, com a madrugada

      em íntima claridade...

 — De madrugada?!

      Então sua transada

      já perdeu a validade.

      LA 99/06

 

 

 

                   

A tempo

 

Emprestou a mulher para o vizinho.

Seu pai ficou indignado —

partiu para cima dele

que lhe explica a tempo:

Calma, pai, calma! Não foi Clara

que emprestei —

mas seu clone.

LA 99/06

    

        

 

 

Outono-Inverno

 

Sons, muitos sons

em miscelâneas

ou dicelâneas

de redizer —

no íntimo ter

de florescer —

tramando trilhas

num jeito-alma

de recompor

o que se esfaz.

 

Sons, muitos sons —

vocifoliais,

folivocais:

contos-recontos

ventonarrados

em tons hiemais —

gestos florais

nos vindimais

de sons iriais,

undifractais...

por alamedas,

ledas veredas

em vozes quedas

por horas sedas...

em tons liriais —

brisas-duendes

tecendo sendas

interiores

com olhos-flores

engravidando

sonhos-silêncios

lá no por dentro

de outono-inverno

a demolir-e-recriar

um sonho-mundo

em seiva-sonho

de um renascer

em primavera.

LA 99/06

 

 

 

 

 

Texto Grampeado

 

''... quanto às crianças que têm fome,

a gente acaba com sua fome —

fazendo delas

churrasco para formigas...

 

''As que sobrarem

a gente manda para a escola

e esta as vai matando

tanto no corpo,

quanto no sonho, na dignidade —

inculcando-lhes que são na verdade

criaturas que nasceram

para segurar a escada...

 

''A gente as prepara

para a resignação —

para a desesperança.

Para aceitar que as coisas —

boas e belas —

não foram feitas para elas.

 

''A gente faz da religião,

da escola e da moral social —

uma só lâmina

para castrar-lhes a genitália,

a alma,

o espírito —

sua consciência de ser humano.

 

''Depois é só soltá-las por aí...

e i-las fuzilando aos poucos...

I-las banindo, eliminando

jeitosa-automática-naturalmente...

passando-as pelas moendas sociais-normais...

E as crianças — pobres e mendigas —

deixarão de ser problema —

de forma que os dominantes:

os ''notáveis'', os ''donos'', os turistas

não constranjam seus olhos fidalgos

com cenas, atos e paisagens tão... ''

LA 99/06

 

 

 

 

 

Água Salgada

 

Aqueles que — em suas ações —

nos afirmam que lágrima

é só água salgada,

não são feitos de pedra não —

pois até elas

sabem chorar.

LA 99/06

 

 

 

 

 

Música De Choro

 

Em geral,

damos às nossas lágrimas

um fundo musical.

Nossos pais nos ensinaram

a chorar com acalanto.

O autodó é tão terrível

quanto a falta de misericórdia.

LA 99/06

 

 

 

 

 

 

Olho Aceso!

 

Olha, meu filho —

pagando à vista,

amor pode quebrar-te.

 

Se, porém, pagas a prazo —

tudo bem:

divides em parcelas

sóbrias, bem fatiadinhas

( ágio e inflação combinados ) —

e pagas alegremente

à medida que usufruis.

 

Amor, meu filho,

para ser bom —

não pode ser à vista.

LA 99/06

 

 

 

 

Moça No Shopping

 

Um jeito de palmeira ao vento.

Olhar de samurai

( que procura a bolsinha

em que a filha do rei

guardava a virgindade ) —

plurifocal, onividente.

Ar de quem adorou...

Sorriso de quem sabe...

Andar de pés descalços

pisando areia quente.

Semblante

pop-renascentista.

Vê não vendo.

Toca sem pegar.

Olha ternura a mil alvos.

Se detém em movimento.

Se desloca ficando.

Se encanta desencantada.

Pergunta sem ouvir a resposta.

Gosta se desgostando.

Faz questão de — pelo menos —

dizer “oi” a cada espelho.

Compara-se a todo busto,

quadris e pernas

que obrigam a adivinhar...

E vai e vem e passa,

passa rastreando —

levitandando,

passeia por entre panos

metais espelhos

couros jóias coisas-luzes

móbiles iguarias...

........................................................................

Preenche com o corpo o cheque —

e se vai: desliza... orvalho-evola

LA 99/06

 

 

 

 

 

Reinvenções

 

Ela sonhava

com uma semana entre gôndolas,

tim-tim de taças

e espaguetes com tarantela.

 

Ele lhe havia prometido

viajar por esse sonho —

saborear

essas bem-aventuranças.

 

Mas veio a crise,

o desemprego, a inflação

e...

Até que ambos viram

que mais bela que Veneza

é a beleza

( com ou sem sobremesa )

da possibilidade —

não importa que adiada.

( A alma humana é perita

em reinventar os sonhos.)

 

Tim-tim à realidade,

já que as taças

são de um cristal mental —

bem próximo do sonho.

LA 99/06

 

 

 

 

 

Nesta Altura...

 

Nesta altura da grimpada

já não dá pra segurar

o derradeiro orgasmo...

nem já resolve elaborar

uma prótese ao saci.

O circo

já está sendo desmontado.

...........................................................

A gente se afeiçoou

ao lugar, às pessoas...

Se acomodou, habituou...

É sempre um desconforto,

mas Ela está chamando —

uma das donas do circo...

É preciso partir.

LA 99/06

 

 

 

 

 

O Pão Do Pão

 

O Diabo amassa o seu pão

para os filhos de Deus comer.

E Deus permite que assim seja

para que o homem aprenda

( ele mesmo ) a extrair seu pão

da luz.

E entre Deus e o Diabo

o homem vai moendo a sua maturidade

e padejando

( metabolicamente )

sua própria consciência.

LA 99/06

 

 

 

 

 

    De Volta Ao Tema

 

Os mistérios do tempo

estão para a criatura

como o amor para a vida.

 

Ser e Tempo,

Tempo e Ser —

o grito em brilho

de um mesmo diamante.

As penas da mesma dor e vôo.

As delícias

de descobrir-se eternamente

descobrindo.

 

Ser e tempo

existem mesmo?

Ou alguém

nos faz sonhá-los

para nos conhecermos

em transessência?

LA 99/06

 

 

 

 

 

Esses dois

 

Esse diário dialógico

entre eu e mim —

esses dois eus

que se falam, se escutam —

tem sido isso

meu fazer-escrever —

meu recriar-me em ser.

 

Um em mim é virtual —

é sonho.

O outro é real —

está em tempo-espaço.

Da fusão desses dois

tenho a poesia —

forma de transcender-me.

LA 99/04

 

 

 

 

Convocação Para O Riso

 

Se você não aprendeu a rir,

vai ter problemas —

com os outros e consigo.

Não apenas rir

de certas situações —

mas rir de tudo.

Rir de saber que pensa

que sabe rir.

Rir de seu riso não ser

adequado àquilo de que ri

e de as coisas serem

de tamanho diferente

do seu riso...

Rir porque rir faz da perda

um quase ganho —

um quase lucro psicológico

ou dor que — quando vista —

já não dói —

fantasma que refoge

com o nascer do dia.

 

Rir porque rir liberta

do tirano —

e diz ao mundo

que a gente não é tão besta

quanto ele nos faz crer.

LA 99/06

 

 

 

 

Incidente De Comunicação

 

A professora dizia às crianças

que o homem precisa ter os pés no chão —

saber claramente o que quer

e lutar para ‘’trazer’’ o sonho.

Quem tivesse o pé no chão,

teria meio caminho andado.

Foi quando a maioria

de seus alunos lhe disseram

    alegres e recompensados —

que, graças a Deus,

não tinham sapatos nem chinelos.

LA 99/06

 

 

 

 

 

Arte

 

Nada resiste à morte

com mais charme que a arte.

Por isso mesmo a arte

é o suporte da história.

Também por isso

a arte é transgressão,

espanto,

denúncia

e até escândalo —

a falar sempre a um povo

que ainda não nasceu.

LA 99/06

 

 

 

 

 

Um Homem Premiado

 

André foi um homem premiado —

dos últimos venturosos.

Regina era-lhe uma espécie de mulher

encomendada via celestial:

arrastava-lhe um vagão.

Punha-lhe e tirava os sapatos

( sempre engraxadinhos ).

Cozinhava, arrumava, passava

e jamais se descuidava

do básico —

debulhava-se em cuidados,

zelos, perícias, esmeros e extremos

com os ardores do marido.

Ainda falava pouco

e a cada não

retribuía com um sim.

 

Não há portanto exagero

em chamar-lhe premiado.

E assim os anjos lhe iam arremessando

pedaços do céu

e ambrosias pagãs aculturadas —

até que um dia —já enfarado—

arrebataram-no com a coisa

em posição de esgrima

( era um domingo à tarde

meio chuvoso —

danado de bom

pra fornicar ) —

arrebataram André

sem deixá-lo ao menos embainhar —

e entrar no paraíso

de modo mais acadêmico.

LA 99/06

 

 

 

 

 

Sobre Aquela Semente

 

Um placebo, uma palavra,

um percutir

pode nos dar

pés de andar sobre as águas.

E aquela mínima semente

pode germinar em nós

e tornar-se

o de que precisamos.

 

Pelo calor do crer

o sonho se abre

e a borboleta voa

entre as pedras e as flores.

 

Ninguém nem nada

esmague essa semente —

por certo não teria

nada melhor pra dar.

LA 99/06

 

 

 

 

 

 

Mugidos De Outono

 

Se o mugir rubro da rosa

lhe espinhar a mão, Carmela, —

conte para seu pai,

que ele processa a florista

por agressão,

perdas e danos morais,

e manda ordenhar a rosa

e fazer doce de pétalas

pra sobremesa do Outono —

que comeu todas as folhas

e ficou empanzinado

de metanos e neblinas.

 

Se o mugir pontiagudo do Outono

lhe machucar o charme, Carmela,

conte para o padre,

que de chifres ele entende —

até abriu uma fábrica

de berrantes

bordados em ouro e prata.

 

Agora, minha Carmela,

se a diaba daquela rosa

quiser competir com você,

que tire a esperança da chuva —

diga a ela que quem muge,

uiva, ulula em minha cama —

é você.

LA 99/06

 

 Máqui, Para Os Íntimos

 

O mundo lê Maquiavel,

e adora.

 

O mundo manuseia Maquiavel,

e o decora.

 

O mundo estuda Maquiavel,

e o devora.

 

O mundo respira Maquiavel

bem antes de o autor de O Príncipe

ter nascido.

 

O mundo nasceu

sabendo Maquiavel

( que jamais escreveu

o que o mundo interpretou ).

 

É por isso que ler o Máqui

não solve nem resolve:

o Máqui é gene humano —

faz tempo: tenho, tens, temos.

 

Deus nos valha,

dando-nos olho e tempo

de ver.

LA 99/06

 

 

 

 

 

Diferença

 

Uma amizade se acaba

talvez porque as diferenças

vão ficando menores.

 

No diferente

mora a beleza e as nuanças

das nossas verdades.

 

No diferente —

o encanto, o mistério:

aquilo que pensamos não ter.

 

A diferença faz amor com a luz —

cujo orgasmo é conhecer-se

em outros.

LA 99/06

 

 

 

 

 

Do Avesso

 

Não se assuste,

que a hora está do avesso.

Já-já a viram,

ou seu pano se desfia.

Não durar é a beleza

contra tudo o que apequena.

 

A hora só está do avesso.

Nosso caminho, agora,

tem de ser interior:

cavaremos por detrás da luz —

enquanto a hora passa

pelo buraco da agulha

que cose as nossas esperanças.

LA 99/06

 

 

 

 

 

Canção Para Josefina

 

Tem dias, Zefa, que é melhor morrer.

Mas como não adiantaria —

a gente volta até com alegria

para a mania de viver.

 

Que ao menos a alma, Zefa,

esteja sempre de pé.

Quando estiver escuro —

possamos enxergar

com os olhos da fé.

Se o amor é pobre —

tenhamos paciência

com nosso coração.

Se tem mentido a esperança —

nem por isso neguemos a verdade.

 

Tem dias, Zefa,

que é noite em alma —

noite chorando chuva fria...

Mas de repente,

sem que se saiba, Zefa,

o galo canta um novo dia.

LA 99/06

 

 

 

 

 

       Isso É Bom...

 

    Hoje posso dizer,

      alto e bom som, posso dizer

      que sou dono do meu nariz.

 

    Isso é bom , meu amor,

      bom demais —

      se bem que nenhum nariz

      é lá um grande patrimônio,

      nem faz ninguém feliz —

      apesar de rimar

      com Beatriz.

      LA 99/06

 

 

 

 

 

Sopra Pra Ver

 

Amor pode ser hoje

uma palavra gasta,

mas não falo da palavra —

falo da necessidade

de se sentir e dar amor.

 

O mundo pisoteia a flor

e faz um culto hipócrita

ao vaso.

O mundo diz que o símbolo

vale mais que a coisa

( os que não sabem aplaudem ).

 

O mundo é um bêbado pernóstico —

rebate a ressaca de ontem

com os goles de hoje —

aos soluços, aos vômitos

de seus ''ias'' e ''ismos'' azedos.

 

No entanto, o melhor,

o mais sensato

de tudo o que podemos fazer

será irmos reinventando

( com infinita perseverança )

o amor.

O mais, sopra pra ver:

é poeira...

LA 99/06

 

 

 

 

 

     Bobuca

 

    Bô é bom com chocolate?

    Bô dispensa acompanhantes,

      porque bô é sobremesa

      de toda mesa.

 

    Mas bô não cabe

      em qualquer lugar ou conversa...

      Ou cabe?

    Não. Bô apenas cabe

      na hora

      ( como o pensamento

      tenta caber na palavra ).

      Em e a qualquer hora —

      sendo a hora.

 

    Então bô cegamente tateia

      entre os segundos

      até dar horas?

      Não sei,

      filosofar é para os fugibundos...

      Só sei que entre as doçuras

      de além e de aquém —

      bô e bu ( sua irmã )

      são as delícias

      de cá.

      LA 99/06

 

 

 

 

 Artesãos

 

Amor jogava peteca

( todo domingo à tardinha )

com as freiras do hospital.

A superiora via aquilo

e pela cara que fazia

não gostava muito não.

 

Amor ficava no centro,

as freirinhas ao redor —

dando tapinhas fofinhos

lá para o centro do círculo.

Já Amor pegava forte

e batendo nos fundilhos

( nos fundilhos da peteca ),

abria e eriçava as plumas...

 

Vem Domingo, vai domingo,

entra mês e acaba mês.

Lá pelo final do ano

cresceu-lhe asas nos braços...

e Amor mandou-se pra longe

das canções de ninar...

 

O bispo que não se deixava

levar por mitologias —

chamou os padres um a um,

e após ligeiro discurso,

fê-los assumir em cânticos

os seus artesanatos

nos corpos das freirinhas.

LA 99/06

 

 

A Bela Acordada

 

A Bela Acordada  ( no bosque )

pelos metanos do Saci —

levantou-se com muita fome.

Com os nativos saboreou amoras,

deliciou-se com inhames

e sopinhas de cará.

Bebeu cauim.

Pulou, gingou, dançou —

delirou peladona.

Pediu que lhe rachassem a sapucaia

e se regalou,

e pediu mais.

Outra vez mais.

E mais... e...

O cacique fez sinal:

Um pouco para amanhã...

 

Nadou na lagoa,

no rio, na corredeira,

deliciou-se na bica.

Enxugou-se na cabeleira

de exuberantes índios.

 

Pescou traíras,

soberbos bagres,

enguias grandes e graúdas,

piavas bravas, lambaris ariscos.

Cansada,

dormiu de bunda para cima.

 

Lá pelas tantas,

entre ensonada e bocejando,

comeu mandioca de vários tipos

e legumes transgênicos.

Tiraram-lhe de uma forquilha

mel azedinho de arapuá —

que ela comeu por sobremesa

com limão e cauim.

 

Quando ia sarando do porre,

a Bela exigiu mais.

O cacique fez-lhe sinal

que deixasse para a noitinha,

noite a dentro e madrugada.

 

Ao outro dia — deslumbrada —

e a lamber entre os lábios

restos de festa,

Bela pediu ao Saci

que a despertasse sempre —

porém que antes de fazê-lo

comesse algumas folhas de alfazema.

LA 99/07

 

 

 

 

 

Consagração

 

Suas mentiras redondinhas

com azeite importado,

seus gestos de esgrimista,

seu ‘’jogo de cintura’’

suas saídas de arapucas

rolam de boca em boca —

embalam ócios,

bajulam crápulas,

encantam a senhores e senhoras.

Ganham status de genialidade —

com seu quê de heroísmo

e inveja.

O povo lhe consagra

a safadeza

e a corrupção.

Suspiros políticos e saudades.

Mais um herói.

LA 99/07

 

 

 

 

 

      Mal-Entendido

 

      O mestre lhes dizia

      que já que as ''passagens''

      eram de graça —

      o negócio

      era aproveitar a vida.

    Aproveitar de que jeito? —

      lhe pergunta uma jovem ruiva,

      toda incendiada.

    De modo a não criar

      carma negativo...

    O senhor acha que...

      ou que... e que...

      ou ainda que... é

      gerar carma negativo?

    De jeito algum, minha irmã.

      Criar carma negativo

      é dizer não aos ''sins'' da vida...

      Ao ouvir isto,

      a mulherada o derrubou no chão

      e por pouco não o mata

      de beijá-lo e exigir-lhe

      os mecanismos do amor.

      LA 99/07

 

 

 

 

 

Com Calma E Sempre

 

Gostou?

Então aproveita

teres a língua e o sorvete.

Mas com calma —

que o demais mata mais

que o de menos.

O meio-termo,

além de perspicaz,

conserva na superfície...

 

Com muita calma,

mas sempre.

Sem deixar ver o mastigar —

mas sempre degustando.

 

Sempre ,

e com classe —

enquanto tudo

gostosamente

se acaba.

 

Sempre,

e com charme —

a vida é a um tempo o caramelo

e a boca a saboreá-lo...

enquanto os olhos

reinventam o teatro.

LA 99/07

 

 

 

 

 

Lembrança

( Paráfrase Ou Paródia? )

 

Enquanto meu pai ( recém-chegado do trabalho )

estercava os canteiros

para o viço das verduras

e minha mãe costurava bordava arrumava pajeava

[ cozinhava lavava passava comprava pagava

[ cuidava das finanças e mil outros ''avas'',

além do equilíbrio da casa —

eu ( ajudando ) via aquilo tudo

encantado de desencantos

e mal sabendo, então, que nossa vida

era uma coisa gostosa de tão louca.

LA 99/06

 

 

 

 

 

Lábios Podres

 

Lábios hipócritas

que escondem

entre o sorriso e a saliva

as toxinas do ódio.

 

Lábios que decidem

sobre a paz, sobre a guerra.

Lábios que negociam

o destino dos homens —

tangendo-os para os currais

de seus interesses enfermos.

 

Lábios podres —

antecipadamente

podres.

LA 99/06

 

 

 

 

 

      Vocês Tinham E Têm Razão

 

Vocês tinham-têm razão.

Estão cobertas de razão.

Estava, sim, na hora de ir à luta —

fazer o que um homem faz:

ombrear com eles —

de igual para igual:

não lhes dever nada —

não ser mais possuída

( termo macho-afrodisíaco ):

fazer amor ( caso queira ).

 

Razão-razões de sobra.

Todas possíveis —

não dava mais para o machinho

tirar o escalpo de cada dia,

prover a casa,

dar-lhe segurança,

trazer dinheiro — bastante dinheiro —

( pouco é para babaca )

e além de tudo —

ser delicado

nobre cavalheiro

tranqüilo amável

sempre de bom humor

bem disposto

e manso como um perdigueiro

 

Tinham-têm razão —

é muita sevícia para um machinho.

Vocês agora farão a sua parte

e eles a sua:

coisas tolas e tristes

de uma mesma vida besta

( exceto para os que aprenderam

a passar por baixo do pêndulo... ).

No começo

com algum ressentimento,

depois veremos ( machinhos e femeazinhas )

que a coisa não tem volta.

Os tempos mudaram mesmo.

E saudades —

só do que ainda não vivemos.

LA 99/06

 

 

 

 

 

 

O Real E Nós

 

A realidade da vida      

difere da nossa realidade —

nossos olhos vêem o que somos

em nosso estado-ser.

 

A mentira, sendo algo

que se disfarça de verdade,

é uma ilusão —

só existe ao mentiroso.

Nossa mente

e nosso coração

fazem de nós

ridículos atores.

 

( Pela nossa consciência

conhecemos a verdade

e podemos ouvir a sua voz

em nossa original essência —

o próprio Verbo Santo

vindo em socorro da criatura. )

 

Lá no cerne da essêcia

está a verdade à espera sempre

de cada um de nós assumi-la

com nosso espírito à frente

e as nossas mãos transmudadas —

pelas trilhas daquela voz

que é ( desde o princípio-sempre )

em nós.

LA 99/07

Mestre E Discípulo

 

Com a boca fechada,

não se recebe o bocado.

Com o coração trancado  

não germina o conhecimento.

Docilidade e procura —

este o binômio

que acompanha o discípulo.

A vida nos ensina

quando deixamos sua voz

percutir nossa consciência.

A vida é o mestre,

o viver, — seu discípulo.

LA 99/07

 

 

 

 

 

      Folhas E Vozes

 

Pombas arrulham

queixumes cor de amora

que respingam na tarde

 

Estendo a mão atrás do inverno

e pensando em você —

colho rosas azuis

orvalhadas dos sonhos

de todas as princesas já mortas

 

Frias brisas ciciam,

não o seu nome,

mas coisas-contos —

iguais a folhas soltas

de uma saudade

quase sem clorofila

 

Por trilhas lá em alma

passeiam nuas esperanças...

caminham sombras calipígias

e há muitas vozes que cantam

coisas de era uma vez...

 

Pombas arrulham

sua fome de ternura.

No entanto a tarde ( quase noite )

já não dispõe

de grânulos de sol

LA 99/07

 

 

 

 

 

Retalhos

 

      O pão depende do molho,

o tempero, — da fome.

                 *

 

Que a sinceridade não desconcerte

nem a mentira prevaleça.

Nem haja cruz sem Cirineu,

nem o inferno no verão.

                  *

Se acha que vale a pena,

pode encher o travesseiro.

                    *

 

Se bates na porta errada,

a porta te cai em cima.

                   *

 

Que bom —

nada voltará a ser como antes.

                      *

 

Dezembro anda choroso

como a alma do sabiá

que, não obstante, vive cantando —

só ele não sabe de quê...

                     *

 

Foi tudo um voar de penas,

e não penas das pequenas.

                   *

 

O nosso amar-Te, Senhor,

seja voltarmos para Casa.

LA 99/07

Versos Íntimos

 

Disse ao meu coração

que era bom lembrar-nos meninos —

adolescentes, jovens, maduros

e, agora, — já desfolhando...

Que lhe agradecia                   

por ter sido um só em muitos —

pelas lutas, pelos embates,

transes, sonhos, loucuras:

pelo retecer a cada dia

da estrada da esperança.

 

Disse-lhe que sabia

que a ''coisa'' não fora fácil...

E perguntei-lhe qual o segredo

de sua força, de seu...

 

Olhou-me

com um gesto bem grisalho —

mas limpo de mágoas e medo,

e disse que o segredo de sua força

tinha sido saber que a vida

não se repete —

que nada volta a ser como era antes...

e desse modo o hoje,

feliz ou não,

é só um outro dia —

e lindo quanto sendo vivido.

LA 99/07

 

 

 

 

 

      No Quarto

 

A noite era quase fria.

O vento fora zunia

em sugestão apetecível

 

( Abriu a teia de aranha,

coçou-lhe leve a xiranha

e mergulhou no indizível )

 

A velha cama dos regalos

aplaudia com estalos

LA 99/07

 

 

 

 

 

       Retalhos

 

      Não corra, papai.

      Vá a 100/110,

senão o senhor pega em casa

aquele seu amigo dentista —

tirando berne

da perna de mamãe.

                    *

 

    Papai,

      como é que o padre faz?

    Não precisa fazer.

      Fazem por ele.

                  *             

    Mamãe,

      eu pensava que freira

      fosse mulher do padre.

    Pois é, Glorinha,

      os adultos também se enganam.

                      *

 

    Mamãe,

      boiola é o que faz,

      ou o que deixa fazer?

    Pergunte a seu pai, Zezinho —

      que essas coisas são com ele.

                    *

 

    Mamãe,

      o que é cu de boi?

      Cu-de-boi, meu filho —

      com hífen,

      signfica confusão.

    Quer dizer que confusão

      é do tamanho

      de um cu de boi, mamãe?

                    *

 

    Pai, por que o lixeiro entra

      todo dia

      na casa de dona Abgail?

    Para pegar o lixo, Joãozinho.

    Mas, pai, ele não põe na caçamba —

      põe na cabina.

    Põe o lixo na cabina?!

    O lixo não, pai, — dona Abgail.

                             *

 

 

    Pai, por que o delegado de ensino,

      enquanto o senhor lia os papéis,

      piscava para minha mãe

      mostrando-lhe, em uma das mãos, três dedos

      e na outra um zero,

      feito com o indicador e o polegar?

    Com certeza, Carlinhos, para confirmar

      que no outro dia — às três horas —

      ele iria comer ameixa preta

      na casa do seu melhor amigo.

    Esta, pai, não entendi.

    Melhor assim, meu menino.

      Deste modo não carregas

      o epíteto

      mais usado neste mundo.

      LA 99/07

 

 

 

 

 

 Pó Podre Do Poder

 

O dinheiro,

que é poder é

mas só pode

em dimensões precárias:

aquelas em que poder

jaz entre o chão e o sonho —

sem clorofila

em que a esperança

é seiva que o frio congela —

e o que seria árvore

são folhas e galhos secos.

O dinheiro?

Que pode pode —

mas um poder

que traz a morte nas veias:

gorduroso poder —

que suja as mãos que podem.

Poder pó. Poder poeira.

Pó podre. Pólvora pútrida —

com que putos e putas

concentram a riqueza

e repartem a pobreza.

LA 99/07

 

 

 

 

 

Compensações

 

Jamais nos cansaremos

de abraçar nossos amigos:

são sempre muito poucos —

e muitas vezes esses poucos

nem o são.

E não havendo o cansaço

de abraçá-los —

este se torna o lado positivo

de os termos poucos

ou nenhuns.

LA 99/07

 

 

 

 

 

 

Pobreza

 

Já não preciso ir até o monte

para saber que o azul macio que o veste

correria para mais longe

( para dentro, talvez, do meu olhar )

e que tudo ali

é de uma riqueza bruta,

uma beleza exuberantemente pobre:

não me diminuiria

o que me falta.

 

O que nos falta

nos falta em ser —

uma pobreza em nós

que ingenuamente

queremos preencher

com inconsistências azuis.

LA 99/07

 

 

 

 

 

 

Musse De Amora

 

A noite late lá longe.

Grilos cricrilam bem perto.

Amor — ameixa e espada —

num sorriso trespassado,

mói as suas amoras —

faz sua musse a escorrer

pelas paredes do céu...

Em seguida amor cai

de um lado e de outro —

e dorme,

sim: dorme como um porco.

LA 99/07

 

 

 

 

 

Vontade Molhada

 

Junto ao mar

banha o sol

um mar de bundas.

Um sentimento afrodisíaco

no ar que respiram os banhistas.

Um silêncio calipígio —

( seiva quente )

corre das fibrilas às folhas

da árvore do desejo.

Tudo parece dizer bem alto:

Celestes bundas, nós vos adoramos.

E todos riem porque o sol

de tanto boliná-las

está todo manchado

de condicionadores...

 

Bundas.

Viva a vontade

de comê-las!

LA 99/07

 

 

 

 

 

 

Uivos De Agosto

 

Frios “is” sibilam

entre fios,

mugidos pelo vento.

Agosto mia

como famintos felinos

por finos, tísicos arbustos.

Fantasmas de poeira

correm ao longo dos caminhos.

Agosto uiva, ulula, assovia...

deflora uma a uma as corolas

assustadas dos ipês.

Agosto geme apaixonado —

exflora, esfolha, esfola,

espalha o sêmen da estação

pelo corpo da terra em cio.

Agosto faz amor gostosamente

com tudo —

mas uiva mesmo, urra de prazer

é com as árvores-mocinhas

cujo corpo folhudo adentra

com fúrias, fomes de fauno.

LA 99/08

 

 

 

 

 

 

 

Orlando

 

Orlando, Orlando —

tu que fazes viver

o sonho dos pais nos filhos,

acalanta também, Orlando,

o sonho destes naqueles —

de modo que todos se encontrem

na mesma dimensão em que o tempo

é concretamente simbólico

e o ser feliz.

 

Orlando, Orlando burguesa —

ainda bem que a infância

tem vôos em alma.

 

Orlando, Orlando

das crianças e dos velhos ricos —

ainda bem que a vida

é só um piscar

da oficina do viver,

 

Orlando, Orlando —

ainda bem que o homem

tem astronaves psíquicas

que você nem imagina.

 

Orlando, Orlando —

um dia todas as crianças

serão iguais —

os homens

as deixarão sonhar.

LA 99/07

 

 

 

 

 

 

Transgenia Do Espírito

 

Faremos sulcos-sulcos-sulcos —

inúmeros e compridos,

longos sulcos e infinitos,

e aí deitaremos as sementes

de toda a nossa preguiça

e adiamentos e omissões —

as sementes amareladas

da nossa pusilanimidade.

Em seguida,

contritos e arrependidos,

o coração quebrantado e humilde —

pediremos a nosso Pai

enxerte nessas sementes

alguns genes de mostarda —

e as faça germinar,

florescer, frutificar.

E a partir daí nos veja

portadores dessas pobres riquezas

dessas ricas pobrezas

que haveremos de trabalhar

e transformar

nas sementes transgênicas

( sem efeitos colaterais )

de uma solidariedade

cuja vitalidade

há de ser a da mútua

suportação

e incondicional respeito

ao ser humano.

LA 99/06

 

 

 

 

 

 

Meios-Fim

 

Fins-começos,

começos-fins —

meios-fim:

baralhados pelo egoísmo

enfermiço —

afilhado de cinismo.

Será que a hora

estava tão doente

a ponto de não se ver

vedete entre a miséria?

 

Homem-buraco,

mulher-estaca —

um só desejo

e metá-

fora.

 

E haja ambrosia

para mantê-los

( bichos de luxo )

nos seis-estrelas

dessa mentalidade.

LA 99/06

 

 

 

 

 

Dom De Florir

 

Belas flores,

tão belas quanto florescem

sem precisar de um porquê

além daquele

que é seu dom de florir.

 

Belas flores,

cumpridoras de um desígnio

que lhes é espectador, beleza e força —

além de elo-companhia.

 

Belas flores

de lugares inóspitos,

onde o ver não as alcança —

não precisam de palmas

nem de olhos

que lhes instiguem

o desfilar pelo efêmero.

 

Belas flores,

é grato e satisfeito

o sorriso que sorriem

para o Sonho

cuja presença ( em si ) lhes basta.

LA 99/07

 

 

 

    

Pedido De Bênção

 

Quantas vezes, Coração,

com o fio de desesperanças

tu nos teceste novas forças —

esperanças refeitas

pelo vinho de precisar sonhar,

pelo pão

de precisar viver.

Deus te abençõe, Coração,

por saberes

que pelo não saber

é que se chega

ao Santuário da Sabedoria —

onde se faz a oferta

e se recebe o dom.

LA 99/07

 

 

 

 

 

Canção Pra Carolina

 

Acorda, acorda, Carolina,

é hora de levantar —

a manhã relincha a glória

do sol que escorre das colinas

e entre calhas de azul

tua casa vem pintar.

 

Levanta, Carolina,

e corre ver, menina,

com que graça o sol pintor

escreve em tua porta

que maior que seu fulgor

é a luz do nosso amor.

LA 99/07

 

 

 

 

 

Pra Alevantar Teresa

 

Se o mundo, Teresa,

quiser que você chore —

não obedeça não.

Nem por isso nem por aquilo —

chore não.

Antes, Teresa,

chore de rir —

ou chore de ser feliz.

E coce —

e coce os mimos, querida.

Aprenda a bocejar

e a cochilar —

são coisas boas da vida.

 

O mundo quer,

você não quer —

chore não, sua boba.

Nem abra mão

da vida que fervilha

na palma da sua mão.

 

Viva o hoje, minha cara.

Faça dele a sua ponte,

e ensine a você mesma —

à sua humanidade

que ela precisa ir até si ( própria )

porque o caminho será sempre

de ser a ser-se,

de ser-se para Casa.

 

Na alegria do Senhor,

Teresa,

está a nossa força —

e dela nos vem o riso,

vem a coragem:

e a vida vira

um estar nas mãos da graça,

um descansar em Deus.

LA 99/07

 

 

 

 

 

Curtição

 

Te curto, me curtes —

nos curtimos até o circuito.

Se a dosagem for pouca —

cultivamos coniventes

mais um cálido, curto coito.

Caso ainda não der —

só resta nos sentirmos

coitados.

LA/99/07

 

 

 

 

 

Caminho-caminhante

 

O que tem sido a vida,

senão termos passado

por angústias e angústias

no fervilhar de uma luta

pelo contrário disso?

 

Que tem sido, senão luta

por não sermos tragados

enquanto nessa batalha

empreendemos aventuras

de ser felizes —

modos de distrairmos

a dor?

 

Se vale a pena?

Mesmo que não,

as penas se impõem.

Viver é uma maneira

de nos justificarmos

com a vida —

que nos põe no mundo

e ordena:

“Trabalhai-vos,

que não vos quero “isso’’.

 

“Vesti-vos de degraus

essencializados

de assim em assim...

e saltos em si mesmos...

Degraus interiores

quanto exteriores.

 

“Aprendei que o criar

tem sido vosso.

A vida é o mestre,

o viver, — o discípulo.

Assumi vossas lágrimas

e vosso riso —

darão uma boa argamassa

para os degraus

do vosso transcender-vos.

 

“Caminhai, e tende pressa

em sair do que sois

para mais ser:

construí pontes de misericórdia,

e chegareis.

Tende pressa por vós mesmos.

Quanto a mim, sou perfeita em vós —

e pura graça.

Deixai-me ser-vos’’.

LA 99/07

 

 

 

 

 

Motivo

 

Gosto de livros,

e bem mais de literatura —

por isso tive de escrever.

 

Cada texto que faço

é um fio que ficou

do último que fiz.

 

Ler-escrever me explica

o que preciso saber —

( me ) organiza, ( me ) ordena:

 

me faz ver de outros ângulos

e em outras gamas-consciência —

a realidade a recontar-se.

 

Com o fio com que coso

meus poemas, me descoso

de mim e do que me prende.

 

Quero-me livre para Deus —

para Deus que é minha volta

para aquela Casa em mim.

LA 99/07

 

 

 

 

 

Assim Não

 

Mulher que

não fala mal do marido;

não pula;

não joga charme e tira o corpo;

não tem segredos com a mãe;

não admira homens solteiros;

não flerta com a possibilidade;

não olha para ver se é olhada;

não finge orgasmos;

não tem as suas dores de cabeça;

não diz que ganhou das primas;

não gostaria de enterrar o cônjuge;

não se acha mais que merecedora —

( de ) mulher assim

padre não gosta.

LA 99/07

 

 

 

 

 

 

Pinga, Pesca E Papo Em Redondilhas

( Praia De Pescadores )

 

Pedro Fala Mansa: 

 

Nossa parte foi bem feita:

rede por rede foi armada.

Agora, ao pé deste fogo,

é esquentar a madrugada.

 

Tibúrcio:

 

Compadre, passa a garrafa,

senão não posso contar.

Já trabalhei em mais bundas

que padre possa rezar.

 

Jurêncio:

 

Comi mais ameixa preta

que bolo de padaria.

Extraí méis de iraxim

chuchando com vara esguia.

 

Jeremias:

 

Da amada cato carrapatos

e piolhos durante o dia.

Já quando resvala a noite,

mergulho a tirar-lhe pérolas

lá das funduras das águas. 

 

Zefa-Cabocla:

 

A mulher do coronel

dava para o feitor.

Cauteloso, o coronel

comia a do traidor.

No domingo se encontravam

( os dois homens que se enganavam )

e meio a meio se enrabavam.

 

Chica Boa de Rabo:

 

A mulher o corneava tanto,

que o dia em que não fazia

ele em geral se sentia

como coisa atirada a um canto.

 

Orlando Posseiro:

 

Bebi pinga, fiz mais buraco

que filme de bangue-bangue.

Já penetrei mais entranha

que caranguejo no mangue.

 

Luisinha Alicate:

 

Ela dava todo dia,

mas não morreu muito grata:

queria ter duas xotas

pra foder em duplicata.

 

Tião Perna Comida:

 

Depois de comida e pinga,

que é que falta ao Tião cotó —

a não ser um bom cigarro

e os trejeitos de um fiofó?

 

Lola Boca De Compota

 

Meu sonho é que o mundo inteiro

se torne um só picolé —

é a imagem mental que faço

quando estou com meu Mané.

 

João do Padre:

 

Da terra nos vem o pão,

do mar o sabor e o peixe.

Do céu a satisfação...

Que a graça jamais nos deixe.

 

Mário, O Afoito:

 

Cheiro bom de maresia,

com gosto de bacalhau —

isto é o que me dá Joaninha

quando a ergo no meu pau.

 

Madalena Maria:

 

Inverteram o meu nome

a ver se eu me revertia —

gente, deu não: minha fome

não sabe simbologia.

 

Socionato Olho De Abutre:

 

Há xoxotas e pinguelos

tão raros-caros —

de um luxo tão furibundo

que para se aglutinarem

( se vestirem um no outro ) —

provocam toda a miséria

e toda a fome do mundo.

 

Marta Sexóloga:

 

Se cortas o pingolim,

numa santidade louca —

o que não fazes com ele

hás de fazer com a boca.

 

Zé Gaguinho:

 

Ela me cor-cor... cor-or-or-or... neou

com tre-tre-três dos bem ba-a-a-a-a-atutas...

Encabei a faca com os chifres

e ma-matei os fi-das-as-as-as-putas.

 

Tiaguinho da Zula:

 

O dia em  que não houver

pecado maior que o perdão,

então eu como a mulher

do açougueiro Brandão.

 

Chicão Lábios De Mel:

 

Quando penso em seu xibiu,

ela logo me aparece —

o pensamento é assovio

de boca que não esquece.

 

 

Eudócia Passinho Amarrado:

 

Parece que estou subindo

sempre ao céu — cutucadinha

( mais em cima, mais em baixo )

por persistente varinha.

 

Maria Bom Tempo:

 

Faz sempre sol, sempre azul...

É sempre ''sim'', jamais ''não''...

Venha do norte ou do sul —

adoro uma intromissão...

 

Caio Boca de Litro:

 

Abre mais uma, Tianinha,

pra eu afogar as mágoas —

aquelas que bracejarem

depois jogo em outras águas.

 

Teresinha Valita:

 

Mais lenha, Inácio, mais lenha:

constrói um fogo que abrase.

O vento geme de doido —

como amante que está quase.

 

Felício das Letras:

 

O maior problema do homem

é carregar esse ''ardume'' —

sua vida se resume

num comer que é a própria fome.

 

Tonico Boi Sonso:

 

Tinha Virgínia na saliva

um gosto de menta e gengibre.

Fizera um curso pra aprender

a reduzir o calibre.

 

Zé Bento:

 

O dia já vem chifrando

a saia da noite acima —

aos poucos vai revelando

a cara e a bunda das coisas.

 

Bete Coxuda:

 

Forquilhei desde menina

e inda forquilho até hoje —

de peroba que lateja

xibiu de Bete não foge.

 

Gertrudes, A Transeunte:

 

Cortou a própria genitália

e deu para o cão comer.

Não sabia que o desejo

vem da luz em seu arder.

 

Leonor Terapeuta:

 

Amor de raça e saúde,

e que é mesmo bom de taco,

é como grilo que canta

fora ou dentro do buraco.

 

João, O Sarado

 

Eulália e eu... um par certo —

eu, — o mar; ela, — o rochedo...

Se alguém estivesse vendo —

era coisa de dar medo.

 

Tonho Bentinho:

 

Deus do céu tenha piedade

de tanta besteira imunda —

a gente quer beber todas

e comer a própria bunda.

 

Glorinha, A Sensível

 

O vento uiva desejoso

despenteando a fogueira.

Vê gente: até mesmo o vento

adora fazer besteira.

 

Ivã Gaivota

 

O ar é a tua xiranha,

meu desejo, — o sol de outubro.

E são loucuras azuis

os momentos em que te cubro.

 

Lucas Beiçudo

 

Meteoritos vão afagando

a bunda ensonada da noite.

Ajeita, Lala, a enseada

pra que meu caíque apoite.

 

Soninha Imaginação

 

Estrelas se dizem coisas

lá nas alcovas celestes.

Posso vê-las se masturbando

no frufru de suas vestes.

 

Joana Frente e Verso:

 

Os galos estão dedando

que a noite foi deflorada —

a vida é sempre um aliso

e a penúltima trepada.

 

Inácio Cu-d'água:

 

Ela lavava a calcinha,

eu ensaboava a cueca.

Quando vi que era horinha

afoguei-lhe a perereca.

 

Tonica Chave Inglesa:

 

Ao mundo se deixa o pó,

da vida se leva nada.

Para o céu levo as venturas

de uma boceta esfolada.

 

Lazinha Gulosa:

 

Se tivesse tempo e vida

e os homens Deus me emendasse —

nem todo esse paraíso

era coisa que bastasse.

 

Juju Olho De Sogra:

 

Mais lenha, mais lenha, Inácio,

que a madrugada se encorpa

tornando denso o escuro e o frio...

E a noite bufa como orca.

 

Cadão Cabeça Enorme:

 

Rosinha quis o Cadão

bem em cima do jirau —

uma uivação misturada

com estalação de pau.

 

Rualdo Coruja:

 

Os galos estão parindo

a alvorada pelo bico...

Fica de lado, Lalinha,

que só me demoro um tico...

 

Pedro Fala Mansa:

 

Moçada, a luz já vem bicando

o nosso enxergar inconho...

Vamos ver o que deu o mar,

que o sol é o lado cru do sonho.

LA 99/07

 

 

    

 

 

Rosa E Grená

 

O amor e suas lavandas,

suspiros rosa e grená.

O amor e suas varandas,

seus manacás e juás.

O amor amado de banda

pros olhos não se falarem....

O amor gemido de frente —

pra dizer que não mente.

Amado de mil maneiras —

porque vale as canseiras.

Amor de bicho e de gente:

o mundo inteiro é parente.

LA 99/07

 

 

 

 

Bonzo Jugal

 

À medida que arrefecem

nossas ardências,

amor vai nos fazendo

cada vez menos de bestas.

Então nos vem uma saudade

do tempo em que éramos

cavalgados.

LA 99/07

Radical “Ard”

 

Primavera-verão.

Desliza a vida

por tobogãs

de sol e azul.

O dia arde

entre saias bordadas

de pernas.

Entre corolas

cheias de vinho-seios

e ondulações facundas...

 

A vida belisca,

mordisca a vida.

LA 99/07

 

 

 

 

 

 Carma De Fronteira

 

Quando a coisa fica feia

a Argentina troca arrulhos

com o Brasil —

porém não chegam nunca

a acasalar.

Complexo,

ressentimento históricos —

excesso de urucum nas mágoas.

LA99/07

 

 

 

 

 

Triângulo Retângulo

 

Carlos fazia versos

para Beatriz

que era noiva de Renê,

e fazia amor com Bob.

 

E eles achavam uma delícia

( sempre trocando as estações,

pois em geral estavam bêbados )

terem essa relação

de triângulo retângulo:

Beatriz — a hipotenusa,

Carlos e Bob — os catetos,

e Renê — o ângulo perpendicular...

 

É que eles tinham razões

que — somadas aos catetos

( de suas intenções )

com o quadrado da hipotenusa

( de suas satisfações ) —

faziam-se multiplicar

nos fractais da matemática

do caração.

LA 99/07

 

 

 

 

Encontro

 

Mútua contemplação —

arrulhos

tingidos de urucum.

Corações se acasalam.

( Penas? Só o branco delas. )

 

Guizos de prata

tinem-retinem

na alma.

 

Ruflos

O amplo

O livre-azul

LA 99/07

 

 

 

 

 

O Que Há

 

Não haverá últimos nadas,

mas primeiras coisas outras —

fins-começos

de viver e reviver

com raízes em ser,

e o vinho-sonho

de sempre novos transcenderes.

LA 99/07

 

 

 

             Estes textos, a que dei o nome de Outono: A Vida A Limpo, foram escritos entre março e julho de 1999. Guardo seu manuscrito e seus disquetes, aliás — como costumo fazer — Devidamente Registrados.

                                              

                                                    1999/Outono-Inverno.

                                                                                    

                                                                                   Um abraço,           

                                                                                                      Laerte Antônio.

 

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