OUTONO, A VIDA A LIMPO Laerte Antonio (capítulo 3 - final)
Tempo Verbalizado
Que nos resta fazer das frustrações — senão transmutá-las em algo bem maior que o sentimento de perda que elas trazem em si?
Dizer ''não'' à infelicidade — não aceitá-la: por saber que não foi ''isso'' o que primeiro semeamos. E pela arte, pelo tempo verbalizado — transformar a demolição na reconstrução do templo... E transmudar a derrota em vitória. LA 9/05
Solitudo-inis
A solidão machuca: sociopatologia — falta de interação e solidariedade.
A solitude é amiga: oficina de recriar, clima-germe de fazer-crescer — jeito de trabalhar(-se).
A solidão parece falta de amor recíproca. A solitude — um modo introvidente de poder fazer-amando. LA 99/05
Analogia
Se você precisou dar a volta ao mundo para perceber que o homem é o mesmo homem em qualquer parte, você perdeu seu tempo — podia ter visto isso sentado em seu alpendre. A analogia nos faz chegar sem precisarmos ir. LA 99/05
Espera
Lá longe o vento desenha seus croquis de poeira. Faz um dia bonito como lembrar os seus olhos.
O mais é pobre como a gente ter tudo — menos o que nos falta.
Junho chove azul nas colinas, enquanto bem lá longe o vento ( outra vez ) faz fantasmas de poeira que correm pelo acostamento da longa estrada preta... em quietudes de domingo. ........................................................................
A brisa puxa a orelha de cada folha. Aos poucos a tarde esfria. E a solidão é linda porque sei que você virá. LA 99/05
Só Então
Só não vê quem pensa que vê. Certamente, daqui a poucos anos sentiremos vergonha de pensar-agir como hoje o fazemos. Só então nos veremos — por remoalhos de ver. LA 99/05
Lugar Certo
Terra limpa no jardim — dentro de casa é sujeira. Comida limpa na cozinha — dentro do quarto é sujeira. Também o belo, a arte, o sublime devem estar em seus exatos lugares. LA 99/05
Ah, O Mais...
Vem a vida e nos corta a juba e nos dá voz de gato, bocejos de preguiça, garras de pintassilgo. Vem a vida e nos dá voz de prisão aos sonhos.
Nada nos resta, a não ser um certo autoconsolo: já rugimos, mordemos e seguramos — e “fizemos” com charme. E viva o que tivemos coragem para viver!
O mais, raios o partam, e Deus ajunte os seus destroços. LA 99/05
Auto-Inquisição
Fez uma terrível fogueira e foi empurrando entre as chamas seus pensamentos em forma de xamãs, bruxos, feiticeiros, fantasmas, erotismos, irreverências, ironias, velhos medos e demônios, dissimulações, covardias, mentiras, autocomplacências, unhas, garras e rugidos — e outros bichos tão humanos e outras coisas tão de todos.
Feito o trabalho, um monge ( que de longe vira tudo ) aproxima-se e lhe diz: — Agora, meu bom homem, peça a Deus que o arrebate... — Como assim, padre? Explique. — Explico: Sem as suas crenças e dúvidas, sem os seus bichos, suas máscaras, seus paradoxos e disfarces, sem seus diabos velhos, sua arrogância de bolso, sua desconfiança agarrada ao seu braço direito, seus sonhos e dialética ( a espada da palavra ), sem suas quase loucuras e ousadias: que vai fazer um homem pelo mundo — um homem entre os homens? LA 99/05
Mas Nem Por Isso
Meu cão fareja o futuro, eu nem ligo — vivo o presente de tal jeito, que o amanhã se me aconteça sem surpresa.
Vivo em paz com a polícia, pago em dia meus impostos, vou cobrindo os cheques-pré — para ninguém dar fim em mim.
Faço o que posso, o que não posso vou deixando pra mais tarde — e esse mais tarde vira noite que vira dia e outra vez noite ( tal como aquela roda mística meio a meio Yang-Ying ) — enquanto persistentes galos cantam.
Mas nem por isso, meu velho: dá pra coçar os mimos, andar de carro com meus netos, fazer as minhas caminhadas, viajar no meu psíquico e ler — ler-escrever até o dia ou a noite fazer beiço de vulva contando velhas histórias.
Meu cão fareja o futuro, eu nem ligo — amanhã será melhor: por ter sido um dia a menos, por ter sido mais um dia. LA 99/05
Nós Nos Somos
— Quem é este que, pela música, move pássaros e pedras e por onde passam os seus pés a estrada vira canto e as criaturas se mediunizam da beleza percutida lá no seu coração? — Este é Orfeu, meu pai. — E este que em sua melodia tange rebanhos de pedras pelas areias do deserto — ovelhas-pedras que saltitam e dançam e perfumam de ternura os olhos de quem as vê? — É Anfion, meu pai.
— Por que perguntas, meu pai, se tu mesmo é que dizes que tu és estes dois? — Só para saber de ti, meu filho: até quando deixarás de ver que eles te são desde sempre? Na vida nós nos somos, filho meu — diversamente nos somos: eus a caminho de Eu Sou. LA 99/05
Um Grito, Um Canto
Dou um grito e espero o eco — lá no vale das almas. Um grito ( em que me encontre ) já transmudado em canção — no coração dos homens. Um canto que torne una a nossa voz — voz que — una — torne uno nosso sentir-pensar-querer-ousar, para que, unidos e juntos, peçamos a Deus: Senhor, dá-nos a Tua Paz e abençoa-nos em recriarmos a graça que nos dispensas a fim de a respirarmos em forma de todos os bens. LA 99/05
Hi-Tec Brooms
Motorizou a vassoura — saiu voando por aí fazendo inveja a todas quantas têm lá seus preconceitos fincados na Idade-Média.
Logo encontrou Rui-Escovão ( também motorizado ), e zaz! [ zaz com dois zz para não ficar penso...] — perderam ambos a razão e caíram mais que depressa nos contos do coração. LA 99/05
De Soslaio
Muitas vezes, quando me perco, encontro-me no humor, na ironia, no riso cáustico — no poema. Não é como não perder-me, mas me salva de andar perdido. Fingir que não aconteceu faz superar o acontecido — dando-lhe o tratamento ( quem sabe de soslaio ) de um bom remédio. LA 99/05
Eterno Como A Rosa
O inverno ( lembras? ) era tão quente em nós que freqüentemente saíamos com roupa leve para sentirmos pelo corpo a afrodisia do frio.
Ardia em nós um sentimento numeroso de que a vida era boa e bela, e assim sentindo — todo o mundo cabia em nossas mãos, porque nada existia além de nos querermos um no outro.
Um inverno flambado. Viver um sonho assim fez muito bem — e foi eterno como a rosa. LA 99/05
Incentivando Cuidados
Meu coração é teu, amado. E se minhoca eu fora — com certeza te dera, amor, meus oito corações. E ficarias aflito, perdido entre suas tragédias e comédias. Por isso, Serafim, cuida bem do que é teu — unzinho só coração, mas do tamanho do teu sonho. LA 99/05
Sempre Outra Coisa
Tempestades são um jeito de a vida nos dizer que a amada não virá — se vier, será de trem...
O sorriso da amada vive à beira do abismo com saudade daquela flor que fizeste muito bem em não arranjar coragem para colher.
O coração da amada fuma cachimbo de barro e cospe no chão da sala — mas isso num sonho catártico de que a pobre acorda aliviada e jura nos amar num misturador de vozes.
A amada beija o vizinho e vai com ele pra cama — no último capítulo da novela em que figura.
Deixemos a amada em paz, que neste exato momento ela vai limpar a casa, depois fazer o café e, em seguida, lavar a roupa.
Tempestades são um jeito de a vida nos dizer que seus raios e trovões foram feitos para o ser — que seria da existência sem o Ser que a sustenta e o Tempo que a movimenta?
Tempestades são um jeito de a vida nos dizer que o que espera de nós é outra coisa. ( Sempre outra coisa ). E que a vida não é isso que vivemos. LA 99/05
Tempo E Ser
Inaugurei, meu Pai, o Tempo quando caí. Em Teu seio eu tinha ciência. Em mim-queda tenho consciência: ciência de mim e do outro — a criatura se aparta: nasce o ego. E o tempo fica sendo a Dialética da Existência em que o ser se põe atrás de si a perseguir-se no enlevado auto-engano de ser-se — agora a se narrar fora de Casa —, porque deslembrado de si. Para voltar terá de usar o caminho do não-saber, isto é — pelo nunca ter saído de Casa. LA 99/05
Ao Sul
Quando me lembro de Zefa, sinto saudade ao sul da carne.
Zefa era boa como peste na tiririca de uma horta. Bela como não ter dívidas. Prudente como não se lembrar... Inteligente como ouvir mil palavras e só dizer três ou quatro. Feliz como não saber.
Ah, Zefa!... Quanta saudade ao sul de nossos papos. LA 99/06
Retorturas De Retorto
Torto é um porto que leva a outras torturas ou lonjuras do reto, nada discreto — já que vive a acusar o torto de não ser reto.
Reto não é um porto — uma vez que saiu da rota de sua reta e se fez torto por seguir as torturas que lhe ensinaram que a retidão caminha sobre o torto — torturando-o por não ser reto. LA 99/06
Compromisso Da Rosa
A rosa não se repete, apenas nasce de novo — encarna outra vez a voz que diz amar a eternidade no efêmero de seu durar.
O não saber da rosa é toda a sua glória — seu sorriso de sonho placidamente posto nas mãos do tempo.
A rosa não se repete — apenas se compromete a renascer do azul da intenção e do encanto de quem a oferta e a recebe.
Dizem que as rosas têm espinhos que lhes contrastam com a suavidade. Mas se quem as colhe usa luvas, não dialoga com a vida. LA 99/06
O amor que quebra com o vento nem merecia existir. LA 99/06
Viver é sentir falta. LA 99/06
Córtex E Outros Tex
Lá no cortical, Deolinda, é que o orgasmo floresce e desce em forma de frutos até nossas moendas.
Caprichemos, então, Deolinda, com essas florações em nossas mentes — e façamos divinos pistaches dos frutos que colhermos.
E tais pistaches não alteram o diabete, nem de leve os triglicídeos, nem ( muito pelo contrário ) provocam obesidade.
Nenhuma contra-indicação em florescer o desejo e corporificá-lo em frutos lá nos lagares do córtex.
Bem motivados, Deolinda, prensemos nossas uvas e façamos nosso vinho. Tim-tim. LA 99/06
Fogo Sagrado
Para dizer-fazer-criar — necessário fogo no coração: transformar empoadas sucatas em modelos os mais novos. Transmudar o passado em farinha de futuro — e padejar aquele pão que tínhamos lá em Casa.
É o fogo de Prometeu roubado aos deuses para o homem? Não, é o meu, é o teu — hoje, o fogo do Criador, distribuído aos homens pelo Espírito de Deus — o fogo de Pentecostes.
O fogo profetizado pelo rústico João — o que aprendeu entre as areias e o silêncio: ''Eu vos batizo com água, mas virá Aquele que o fará com o Espírito e com fogo.''
O mesmo fogo que entrou pelos ouvidos ( pela boca do Filho explicando a palavra ) e ardeu no coração daqueles dois discípulos que palmilhavam a estrada de Emaús.
O mesmo fogo que, hoje, nos queima os fungos do porão, nos renova o coração e nos reaviva o destino de filhos e herdeiros. LA 99/05
Reinvenção
Outono(-inverno) — desconstrução. Um dobrar-se sobre si mesmo — reflexão. Despojamento — aquela fraqueza forte... naquele trabalhar-se entre as moendas do sem voz. Transubstanciação — metabolismo em alma. Circulação do espírito pelas veias de um desígnio a transcender-se em gamas-nóias. O sonho re-sonhado, o sopro re-soprado de divino. Trégua da exuberância — ganho na perda. A vida se reflete em adegas de re-sonho, em revérberos de reinventar-se — recriar-se para o baile cósmico em cada célula. ( Reconstrução dentro do sonho — mãos que trabalham por detrás do silêncio ) — a vida a refazer-se, a vida a renovar-se para espiar o mundo com olhos de primavera. LA 99/06
Ânimo!
Se ficarmos chorando pelos cantos o mundo dará de ombros e nos deixará com nossas lágrimas. Clamemos em nosso coração para o Senhor — e Ele enfeixará forças em nós a fim de prosseguirmos com os outros em nossa condição de caminho-caminhantes.
O que somos é coisa nossa — temos de arcar com o que somos: trabalhar-nos, transmudar-nos. E a ordem interior da vida é sempre — para a frente! Unamo-nos aos que já têm essa consciência, e uma coragem recíproca, uma solidariedade saudável serão a nossa estrada.
Não nos faltará Aquele que nos pôs a caminho. Procuremo-Lo o mais perto de nós que pudermos. LA 99/05
Re-Sonho
Outono: a vida se repensa, a vida se reganha em seu despir-se aparencial e revestir-se em ser. Outono se re-sonha em primavera. O futuro começa ontem, por isso é que é possível já lhe sentir saudades. LA 99/05
Gradação
Gosto de escrever prosa. Adoro escrever versos. A prosa são os sapatos, a poesia são os pés. Com os prosadores —caminho. Com os poetas —convivo. LA 99/06
Na Infância
Se nossos pais não nos apresentaram a Deus — de maneira bem simples, testemunhada e metonímica — certamente sempre teremos um pé atrás com a vida.
Por outro lado, se soubermos quem é Deus, na infância, — saberemos em todas as idades e sem nenhum esforço nem metafísica — por já estarmos em Sua Casa desde a infância, — por já termos conversado com Ele na voz de nossos pais, — por já O termos visto no relacionamento com os de casa.
Se nos apresentaram ao amor, aprensentaram-nos a Deus. O assunto quanto mais intrincado e metafísico, tanto mais facilmente a criança o assimila ( o amor é o mestre por osmose ) e o vai acomodando, organizando e reconstruindo em sua consciência-tempo. LA 99/06
Consideração
Após termos sofrido tantas felicidades — tão caras e custosas; após termos por elas rastejado, por elas termos procurado como ratos entre armadilhas... Após tanto após — quem sabe a gente não pode descobrir outras maneiras de viver ( coisas em tudo diferentes dessas tolices-venturas ) — outras felicidades menos tristes e infelizes? LA 99/06
Script
O amor perdeu o script. O sexo, a transa — cacoetes mentais, vêm-lhe em socorro. Machos e fêmeas buscam fazer sem dizer. A casa, a escola também perderam o script. Mas tende calma — não ficareis órfãos: segui o roteiro das novelas, dos artistas, dos esportes, dos craques, das escolas de samba, da música, dos modelos: enfim da mídia — taí o script. Bom proveito. Ou não é isso-coisas que vos querem enfiar goela abaixo da consciência? LA 99/06
Gorjeio Metafísico
Aqui aqui, agora agora — se os há, é só agora-aqui e já-ali.
— Sou Darli. E você? — Marili. — Nesta vida que refoge... se mal não lhe pergunto: já transou hoje? — Sim, com a madrugada em íntima claridade... — De madrugada?! Então sua transada já perdeu a validade. LA 99/06
A tempo
Emprestou a mulher para o vizinho. Seu pai ficou indignado — partiu para cima dele que lhe explica a tempo: Calma, pai, calma! Não foi Clara que emprestei — mas seu clone. LA 99/06
Outono-Inverno
Sons, muitos sons em miscelâneas ou dicelâneas de redizer — no íntimo ter de florescer — tramando trilhas num jeito-alma de recompor o que se esfaz.
Sons, muitos sons — vocifoliais, folivocais: contos-recontos ventonarrados em tons hiemais — gestos florais nos vindimais de sons iriais, undifractais... por alamedas, ledas veredas em vozes quedas por horas sedas... em tons liriais — brisas-duendes tecendo sendas interiores com olhos-flores engravidando sonhos-silêncios lá no por dentro de outono-inverno a demolir-e-recriar um sonho-mundo em seiva-sonho de um renascer em primavera. LA 99/06
Texto Grampeado
''... quanto às crianças que têm fome, a gente acaba com sua fome — fazendo delas churrasco para formigas...
''As que sobrarem a gente manda para a escola e esta as vai matando tanto no corpo, quanto no sonho, na dignidade — inculcando-lhes que são na verdade criaturas que nasceram para segurar a escada...
''A gente as prepara para a resignação — para a desesperança. Para aceitar que as coisas — boas e belas — não foram feitas para elas.
''A gente faz da religião, da escola e da moral social — uma só lâmina para castrar-lhes a genitália, a alma, o espírito — sua consciência de ser humano.
''Depois é só soltá-las por aí... e i-las fuzilando aos poucos... I-las banindo, eliminando jeitosa-automática-naturalmente... passando-as pelas moendas sociais-normais... E as crianças — pobres e mendigas — deixarão de ser problema — de forma que os dominantes: os ''notáveis'', os ''donos'', os turistas não constranjam seus olhos fidalgos com cenas, atos e paisagens tão... '' LA 99/06
Água Salgada
Aqueles que — em suas ações — nos afirmam que lágrima é só água salgada, não são feitos de pedra não — pois até elas sabem chorar. LA 99/06
Música De Choro
Em geral, damos às nossas lágrimas um fundo musical. Nossos pais nos ensinaram a chorar com acalanto. O autodó é tão terrível quanto a falta de misericórdia. LA 99/06
Olho Aceso!
Olha, meu filho — pagando à vista, amor pode quebrar-te.
Se, porém, pagas a prazo — tudo bem: divides em parcelas sóbrias, bem fatiadinhas ( ágio e inflação combinados ) — e pagas alegremente à medida que usufruis.
Amor, meu filho, para ser bom — não pode ser à vista. LA 99/06
Moça No Shopping
Um jeito de palmeira ao vento. Olhar de samurai ( que procura a bolsinha em que a filha do rei guardava a virgindade ) — plurifocal, onividente. Ar de quem adorou... Sorriso de quem sabe... Andar de pés descalços pisando areia quente. Semblante pop-renascentista. Vê não vendo. Toca sem pegar. Olha ternura a mil alvos. Se detém em movimento. Se desloca ficando. Se encanta desencantada. Pergunta sem ouvir a resposta. Gosta se desgostando. Faz questão de — pelo menos — dizer “oi” a cada espelho. Compara-se a todo busto, quadris e pernas que obrigam a adivinhar... E vai e vem e passa, passa rastreando — levitandando, passeia por entre panos metais espelhos couros jóias coisas-luzes móbiles iguarias... ........................................................................ Preenche com o corpo o cheque — e se vai: desliza... orvalho-evola LA 99/06
Reinvenções
Ela sonhava com uma semana entre gôndolas, tim-tim de taças e espaguetes com tarantela.
Ele lhe havia prometido viajar por esse sonho — saborear essas bem-aventuranças.
Mas veio a crise, o desemprego, a inflação e... Até que ambos viram que mais bela que Veneza é a beleza ( com ou sem sobremesa ) da possibilidade — não importa que adiada. ( A alma humana é perita em reinventar os sonhos.)
Tim-tim à realidade, já que as taças são de um cristal mental — bem próximo do sonho. LA 99/06
Nesta Altura...
Nesta altura da grimpada já não dá pra segurar o derradeiro orgasmo... nem já resolve elaborar uma prótese ao saci. O circo já está sendo desmontado. ........................................................... A gente se afeiçoou ao lugar, às pessoas... Se acomodou, habituou... É sempre um desconforto, mas Ela está chamando — uma das donas do circo... É preciso partir. LA 99/06
O Pão Do Pão
O Diabo amassa o seu pão para os filhos de Deus comer. E Deus permite que assim seja para que o homem aprenda ( ele mesmo ) a extrair seu pão da luz. E entre Deus e o Diabo o homem vai moendo a sua maturidade e padejando ( metabolicamente ) sua própria consciência. LA 99/06
De Volta Ao Tema
Os mistérios do tempo estão para a criatura como o amor para a vida.
Ser e Tempo, Tempo e Ser — o grito em brilho de um mesmo diamante. As penas da mesma dor e vôo. As delícias de descobrir-se eternamente descobrindo.
Ser e tempo existem mesmo? Ou alguém nos faz sonhá-los para nos conhecermos em transessência? LA 99/06
Esses dois
Esse diário dialógico entre eu e mim — esses dois eus que se falam, se escutam — tem sido isso meu fazer-escrever — meu recriar-me em ser.
Um em mim é virtual — é sonho. O outro é real — está em tempo-espaço. Da fusão desses dois tenho a poesia — forma de transcender-me. LA 99/04
Convocação Para O Riso
Se você não aprendeu a rir, vai ter problemas — com os outros e consigo. Não apenas rir de certas situações — mas rir de tudo. Rir de saber que pensa que sabe rir. Rir de seu riso não ser adequado àquilo de que ri e de as coisas serem de tamanho diferente do seu riso... Rir porque rir faz da perda um quase ganho — um quase lucro psicológico ou dor que — quando vista — já não dói — fantasma que refoge com o nascer do dia.
Rir porque rir liberta do tirano — e diz ao mundo que a gente não é tão besta quanto ele nos faz crer. LA 99/06
Incidente De Comunicação
A professora dizia às crianças que o homem precisa ter os pés no chão — saber claramente o que quer e lutar para ‘’trazer’’ o sonho. Quem tivesse o pé no chão, teria meio caminho andado. Foi quando a maioria de seus alunos lhe disseram — alegres e recompensados — que, graças a Deus, não tinham sapatos nem chinelos. LA 99/06
Arte
Nada resiste à morte com mais charme que a arte. Por isso mesmo a arte é o suporte da história. Também por isso a arte é transgressão, espanto, denúncia e até escândalo — a falar sempre a um povo que ainda não nasceu. LA 99/06
Um Homem Premiado
André foi um homem premiado — dos últimos venturosos. Regina era-lhe uma espécie de mulher encomendada via celestial: arrastava-lhe um vagão. Punha-lhe e tirava os sapatos ( sempre engraxadinhos ). Cozinhava, arrumava, passava e jamais se descuidava do básico — debulhava-se em cuidados, zelos, perícias, esmeros e extremos com os ardores do marido. Ainda falava pouco e a cada não retribuía com um sim.
Não há portanto exagero em chamar-lhe premiado. E assim os anjos lhe iam arremessando pedaços do céu e ambrosias pagãs aculturadas — até que um dia —já enfarado— arrebataram-no com a coisa em posição de esgrima ( era um domingo à tarde meio chuvoso — danado de bom pra fornicar ) — arrebataram André sem deixá-lo ao menos embainhar — e entrar no paraíso de modo mais acadêmico. LA 99/06
Sobre Aquela Semente
Um placebo, uma palavra, um percutir pode nos dar pés de andar sobre as águas. E aquela mínima semente pode germinar em nós e tornar-se o de que precisamos.
Pelo calor do crer o sonho se abre e a borboleta voa entre as pedras e as flores.
Ninguém nem nada esmague essa semente — por certo não teria nada melhor pra dar. LA 99/06
Mugidos De Outono
Se o mugir rubro da rosa lhe espinhar a mão, Carmela, — conte para seu pai, que ele processa a florista por agressão, perdas e danos morais, e manda ordenhar a rosa e fazer doce de pétalas pra sobremesa do Outono — que comeu todas as folhas e ficou empanzinado de metanos e neblinas.
Se o mugir pontiagudo do Outono lhe machucar o charme, Carmela, conte para o padre, que de chifres ele entende — até abriu uma fábrica de berrantes bordados em ouro e prata.
Agora, minha Carmela, se a diaba daquela rosa quiser competir com você, que tire a esperança da chuva — diga a ela que quem muge, uiva, ulula em minha cama — é você. LA 99/06
Máqui, Para Os Íntimos
O mundo lê Maquiavel, e adora.
O mundo manuseia Maquiavel, e o decora.
O mundo estuda Maquiavel, e o devora.
O mundo respira Maquiavel bem antes de o autor de O Príncipe ter nascido.
O mundo nasceu sabendo Maquiavel ( que jamais escreveu o que o mundo interpretou ).
É por isso que ler o Máqui não solve nem resolve: o Máqui é gene humano — faz tempo: tenho, tens, temos.
Deus nos valha, dando-nos olho e tempo de ver. LA 99/06
Diferença
Uma amizade se acaba talvez porque as diferenças vão ficando menores.
No diferente mora a beleza e as nuanças das nossas verdades.
No diferente — o encanto, o mistério: aquilo que pensamos não ter.
A diferença faz amor com a luz — cujo orgasmo é conhecer-se em outros. LA 99/06
Do Avesso
Não se assuste, que a hora está do avesso. Já-já a viram, ou seu pano se desfia. Não durar é a beleza contra tudo o que apequena.
A hora só está do avesso. Nosso caminho, agora, tem de ser interior: cavaremos por detrás da luz — enquanto a hora passa pelo buraco da agulha que cose as nossas esperanças. LA 99/06
Canção Para Josefina
Tem dias, Zefa, que é melhor morrer. Mas como não adiantaria — a gente volta até com alegria para a mania de viver.
Que ao menos a alma, Zefa, esteja sempre de pé. Quando estiver escuro — possamos enxergar com os olhos da fé. Se o amor é pobre — tenhamos paciência com nosso coração. Se tem mentido a esperança — nem por isso neguemos a verdade.
Tem dias, Zefa, que é noite em alma — noite chorando chuva fria... Mas de repente, sem que se saiba, Zefa, o galo canta um novo dia. LA 99/06
Isso É Bom...
— Hoje posso dizer, alto e bom som, posso dizer que sou dono do meu nariz.
— Isso é bom , meu amor, bom demais — se bem que nenhum nariz é lá um grande patrimônio, nem faz ninguém feliz — apesar de rimar com Beatriz. LA 99/06
Sopra Pra Ver
Amor pode ser hoje uma palavra gasta, mas não falo da palavra — falo da necessidade de se sentir e dar amor.
O mundo pisoteia a flor e faz um culto hipócrita ao vaso. O mundo diz que o símbolo vale mais que a coisa ( os que não sabem aplaudem ).
O mundo é um bêbado pernóstico — rebate a ressaca de ontem com os goles de hoje — aos soluços, aos vômitos de seus ''ias'' e ''ismos'' azedos.
No entanto, o melhor, o mais sensato de tudo o que podemos fazer será irmos reinventando ( com infinita perseverança ) o amor. O mais, sopra pra ver: é poeira... LA 99/06
Bobuca
— Bô é bom com chocolate? — Bô dispensa acompanhantes, porque bô é sobremesa de toda mesa.
— Mas bô não cabe em qualquer lugar ou conversa... Ou cabe? — Não. Bô apenas cabe na hora ( como o pensamento tenta caber na palavra ). Em e a qualquer hora — sendo a hora.
— Então bô cegamente tateia entre os segundos até dar horas? Não sei, filosofar é para os fugibundos... Só sei que entre as doçuras de além e de aquém — bô e bu ( sua irmã ) são as delícias de cá. LA 99/06
Artesãos
Amor jogava peteca ( todo domingo à tardinha ) com as freiras do hospital. A superiora via aquilo e pela cara que fazia não gostava muito não.
Amor ficava no centro, as freirinhas ao redor — dando tapinhas fofinhos lá para o centro do círculo. Já Amor pegava forte e batendo nos fundilhos ( nos fundilhos da peteca ), abria e eriçava as plumas...
Vem Domingo, vai domingo, entra mês e acaba mês. Lá pelo final do ano cresceu-lhe asas nos braços... e Amor mandou-se pra longe das canções de ninar...
O bispo que não se deixava levar por mitologias — chamou os padres um a um, e após ligeiro discurso, fê-los assumir em cânticos os seus artesanatos nos corpos das freirinhas. LA 99/06
A Bela Acordada
A Bela Acordada ( no bosque ) pelos metanos do Saci — levantou-se com muita fome. Com os nativos saboreou amoras, deliciou-se com inhames e sopinhas de cará. Bebeu cauim. Pulou, gingou, dançou — delirou peladona. Pediu que lhe rachassem a sapucaia e se regalou, e pediu mais. Outra vez mais. E mais... e... O cacique fez sinal: Um pouco para amanhã...
Nadou na lagoa, no rio, na corredeira, deliciou-se na bica. Enxugou-se na cabeleira de exuberantes índios.
Pescou traíras, soberbos bagres, enguias grandes e graúdas, piavas bravas, lambaris ariscos. Cansada, dormiu de bunda para cima.
Lá pelas tantas, entre ensonada e bocejando, comeu mandioca de vários tipos e legumes transgênicos. Tiraram-lhe de uma forquilha mel azedinho de arapuá — que ela comeu por sobremesa com limão e cauim.
Quando ia sarando do porre, a Bela exigiu mais. O cacique fez-lhe sinal que deixasse para a noitinha, noite a dentro e madrugada.
Ao outro dia — deslumbrada — e a lamber entre os lábios restos de festa, Bela pediu ao Saci que a despertasse sempre — porém que antes de fazê-lo comesse algumas folhas de alfazema. LA 99/07
Consagração
Suas mentiras redondinhas com azeite importado, seus gestos de esgrimista, seu ‘’jogo de cintura’’ suas saídas de arapucas rolam de boca em boca — embalam ócios, bajulam crápulas, encantam a senhores e senhoras. Ganham status de genialidade — com seu quê de heroísmo e inveja. O povo lhe consagra a safadeza e a corrupção. Suspiros políticos e saudades. Mais um herói. LA 99/07
Mal-Entendido
O mestre lhes dizia que já que as ''passagens'' eram de graça — o negócio era aproveitar a vida. — Aproveitar de que jeito? — lhe pergunta uma jovem ruiva, toda incendiada. — De modo a não criar carma negativo... — O senhor acha que... ou que... e que... ou ainda que... é gerar carma negativo? — De jeito algum, minha irmã. Criar carma negativo é dizer não aos ''sins'' da vida... Ao ouvir isto, a mulherada o derrubou no chão e por pouco não o mata de beijá-lo e exigir-lhe os mecanismos do amor. LA 99/07
Com Calma E Sempre
Gostou? Então aproveita teres a língua e o sorvete. Mas com calma — que o demais mata mais que o de menos. O meio-termo, além de perspicaz, conserva na superfície...
Com muita calma, mas sempre. Sem deixar ver o mastigar — mas sempre degustando.
Sempre , e com classe — enquanto tudo gostosamente se acaba.
Sempre, e com charme — a vida é a um tempo o caramelo e a boca a saboreá-lo... enquanto os olhos reinventam o teatro. LA 99/07
Lembrança ( Paráfrase Ou Paródia? )
Enquanto meu pai ( recém-chegado do trabalho ) estercava os canteiros para o viço das verduras e minha mãe costurava bordava arrumava pajeava [ cozinhava lavava passava comprava pagava [ cuidava das finanças e mil outros ''avas'', além do equilíbrio da casa — eu ( ajudando ) via aquilo tudo encantado de desencantos e mal sabendo, então, que nossa vida era uma coisa gostosa de tão louca. LA 99/06
Lábios Podres
Lábios hipócritas que escondem entre o sorriso e a saliva as toxinas do ódio.
Lábios que decidem sobre a paz, sobre a guerra. Lábios que negociam o destino dos homens — tangendo-os para os currais de seus interesses enfermos.
Lábios podres — antecipadamente podres. LA 99/06
Vocês Tinham E Têm Razão
Vocês tinham-têm razão. Estão cobertas de razão. Estava, sim, na hora de ir à luta — fazer o que um homem faz: ombrear com eles — de igual para igual: não lhes dever nada — não ser mais possuída ( termo macho-afrodisíaco ): fazer amor ( caso queira ).
Razão-razões de sobra. Todas possíveis — não dava mais para o machinho tirar o escalpo de cada dia, prover a casa, dar-lhe segurança, trazer dinheiro — bastante dinheiro — ( pouco é para babaca ) e além de tudo — ser delicado nobre cavalheiro tranqüilo amável sempre de bom humor bem disposto e manso como um perdigueiro
Tinham-têm razão — é muita sevícia para um machinho. Vocês agora farão a sua parte e eles a sua: coisas tolas e tristes de uma mesma vida besta ( exceto para os que aprenderam a passar por baixo do pêndulo... ). No começo com algum ressentimento, depois veremos ( machinhos e femeazinhas ) que a coisa não tem volta. Os tempos mudaram mesmo. E saudades — só do que ainda não vivemos. LA 99/06
O Real E Nós
A realidade da vida difere da nossa realidade — nossos olhos vêem o que somos em nosso estado-ser.
A mentira, sendo algo que se disfarça de verdade, é uma ilusão — só existe ao mentiroso. Nossa mente e nosso coração fazem de nós ridículos atores.
( Pela nossa consciência conhecemos a verdade e podemos ouvir a sua voz em nossa original essência — o próprio Verbo Santo vindo em socorro da criatura. )
Lá no cerne da essêcia está a verdade à espera sempre de cada um de nós assumi-la com nosso espírito à frente e as nossas mãos transmudadas — pelas trilhas daquela voz que é ( desde o princípio-sempre ) em nós. LA 99/07 Mestre E Discípulo
Com a boca fechada, não se recebe o bocado. Com o coração trancado não germina o conhecimento. Docilidade e procura — este o binômio que acompanha o discípulo. A vida nos ensina quando deixamos sua voz percutir nossa consciência. A vida é o mestre, o viver, — seu discípulo. LA 99/07
Folhas E Vozes
Pombas arrulham queixumes cor de amora que respingam na tarde
Estendo a mão atrás do inverno e pensando em você — colho rosas azuis orvalhadas dos sonhos de todas as princesas já mortas
Frias brisas ciciam, não o seu nome, mas coisas-contos — iguais a folhas soltas de uma saudade quase sem clorofila
Por trilhas lá em alma passeiam nuas esperanças... caminham sombras calipígias e há muitas vozes que cantam coisas de era uma vez...
Pombas arrulham sua fome de ternura. No entanto a tarde ( quase noite ) já não dispõe de grânulos de sol LA 99/07
Retalhos
O pão depende do molho, o tempero, — da fome. *
Que a sinceridade não desconcerte nem a mentira prevaleça. Nem haja cruz sem Cirineu, nem o inferno no verão. * Se acha que vale a pena, pode encher o travesseiro. *
Se bates na porta errada, a porta te cai em cima. *
Que bom — nada voltará a ser como antes. *
Dezembro anda choroso como a alma do sabiá que, não obstante, vive cantando — só ele não sabe de quê... *
Foi tudo um voar de penas, e não penas das pequenas. *
O nosso amar-Te, Senhor, seja voltarmos para Casa. LA 99/07 Versos Íntimos
Disse ao meu coração que era bom lembrar-nos meninos — adolescentes, jovens, maduros e, agora, — já desfolhando... Que lhe agradecia por ter sido um só em muitos — pelas lutas, pelos embates, transes, sonhos, loucuras: pelo retecer a cada dia da estrada da esperança.
Disse-lhe que sabia que a ''coisa'' não fora fácil... E perguntei-lhe qual o segredo de sua força, de seu...
Olhou-me com um gesto bem grisalho — mas limpo de mágoas e medo, e disse que o segredo de sua força tinha sido saber que a vida não se repete — que nada volta a ser como era antes... e desse modo o hoje, feliz ou não, é só um outro dia — e lindo quanto sendo vivido. LA 99/07
No Quarto
A noite era quase fria. O vento fora zunia em sugestão apetecível
( Abriu a teia de aranha, coçou-lhe leve a xiranha e mergulhou no indizível )
A velha cama dos regalos aplaudia com estalos LA 99/07
Retalhos
Não corra, papai. Vá a 100/110, senão o senhor pega em casa aquele seu amigo dentista — tirando berne da perna de mamãe. *
— Papai, como é que o padre faz? — Não precisa fazer. Fazem por ele. * — Mamãe, eu pensava que freira fosse mulher do padre. — Pois é, Glorinha, os adultos também se enganam. *
— Mamãe, boiola é o que faz, ou o que deixa fazer? — Pergunte a seu pai, Zezinho — que essas coisas são com ele. *
— Mamãe, o que é cu de boi? Cu-de-boi, meu filho — com hífen, signfica confusão. — Quer dizer que confusão é do tamanho de um cu de boi, mamãe? *
— Pai, por que o lixeiro entra todo dia na casa de dona Abgail? — Para pegar o lixo, Joãozinho. — Mas, pai, ele não põe na caçamba — põe na cabina. — Põe o lixo na cabina?! — O lixo não, pai, — dona Abgail. *
— Pai, por que o delegado de ensino, enquanto o senhor lia os papéis, piscava para minha mãe mostrando-lhe, em uma das mãos, três dedos e na outra um zero, feito com o indicador e o polegar? — Com certeza, Carlinhos, para confirmar que no outro dia — às três horas — ele iria comer ameixa preta na casa do seu melhor amigo. — Esta, pai, não entendi. — Melhor assim, meu menino. Deste modo não carregas o epíteto mais usado neste mundo. LA 99/07
Pó Podre Do Poder
O dinheiro, que é poder é — mas só pode em dimensões precárias: aquelas em que poder jaz entre o chão e o sonho — sem clorofila em que a esperança é seiva que o frio congela — e o que seria árvore são folhas e galhos secos. O dinheiro? Que pode pode — mas um poder que traz a morte nas veias: gorduroso poder — que suja as mãos que podem. Poder pó. Poder poeira. Pó podre. Pólvora pútrida — com que putos e putas concentram a riqueza e repartem a pobreza. LA 99/07
Compensações
Jamais nos cansaremos de abraçar nossos amigos: são sempre muito poucos — e muitas vezes esses poucos nem o são. E não havendo o cansaço de abraçá-los — este se torna o lado positivo de os termos poucos ou nenhuns. LA 99/07
Pobreza
Já não preciso ir até o monte para saber que o azul macio que o veste correria para mais longe ( para dentro, talvez, do meu olhar ) e que tudo ali é de uma riqueza bruta, uma beleza exuberantemente pobre: não me diminuiria o que me falta.
O que nos falta nos falta em ser — uma pobreza em nós que ingenuamente queremos preencher com inconsistências azuis. LA 99/07
Musse De Amora
A noite late lá longe. Grilos cricrilam bem perto. Amor — ameixa e espada — num sorriso trespassado, mói as suas amoras — faz sua musse a escorrer pelas paredes do céu... Em seguida amor cai de um lado e de outro — e dorme, sim: dorme como um porco. LA 99/07
Vontade Molhada
Junto ao mar banha o sol um mar de bundas. Um sentimento afrodisíaco no ar que respiram os banhistas. Um silêncio calipígio — ( seiva quente ) corre das fibrilas às folhas da árvore do desejo. Tudo parece dizer bem alto: Celestes bundas, nós vos adoramos. E todos riem porque o sol de tanto boliná-las está todo manchado de condicionadores...
Bundas. Viva a vontade de comê-las! LA 99/07
Uivos De Agosto
Frios “is” sibilam entre fios, mugidos pelo vento. Agosto mia como famintos felinos por finos, tísicos arbustos. Fantasmas de poeira correm ao longo dos caminhos. Agosto uiva, ulula, assovia... deflora uma a uma as corolas assustadas dos ipês. Agosto geme apaixonado — exflora, esfolha, esfola, espalha o sêmen da estação pelo corpo da terra em cio. Agosto faz amor gostosamente com tudo — mas uiva mesmo, urra de prazer é com as árvores-mocinhas cujo corpo folhudo adentra com fúrias, fomes de fauno. LA 99/08
Orlando
Orlando, Orlando — tu que fazes viver o sonho dos pais nos filhos, acalanta também, Orlando, o sonho destes naqueles — de modo que todos se encontrem na mesma dimensão em que o tempo é concretamente simbólico e o ser feliz.
Orlando, Orlando burguesa — ainda bem que a infância tem vôos em alma.
Orlando, Orlando das crianças e dos velhos ricos — ainda bem que a vida é só um piscar da oficina do viver,
Orlando, Orlando — ainda bem que o homem tem astronaves psíquicas que você nem imagina.
Orlando, Orlando — um dia todas as crianças serão iguais — os homens as deixarão sonhar. LA 99/07
Transgenia Do Espírito
Faremos sulcos-sulcos-sulcos — inúmeros e compridos, longos sulcos e infinitos, e aí deitaremos as sementes de toda a nossa preguiça e adiamentos e omissões — as sementes amareladas da nossa pusilanimidade. Em seguida, contritos e arrependidos, o coração quebrantado e humilde — pediremos a nosso Pai enxerte nessas sementes alguns genes de mostarda — e as faça germinar, florescer, frutificar. E a partir daí nos veja portadores dessas pobres riquezas dessas ricas pobrezas que haveremos de trabalhar e transformar nas sementes transgênicas ( sem efeitos colaterais ) de uma solidariedade cuja vitalidade há de ser a da mútua suportação e incondicional respeito ao ser humano. LA 99/06
Meios-Fim
Fins-começos, começos-fins — meios-fim: baralhados pelo egoísmo enfermiço — afilhado de cinismo. Será que a hora estava tão doente a ponto de não se ver vedete entre a miséria?
Homem-buraco, mulher-estaca — um só desejo e metá- fora.
E haja ambrosia para mantê-los ( bichos de luxo ) nos seis-estrelas dessa mentalidade. LA 99/06
Dom De Florir
Belas flores, tão belas quanto florescem sem precisar de um porquê além daquele que é seu dom de florir.
Belas flores, cumpridoras de um desígnio que lhes é espectador, beleza e força — além de elo-companhia.
Belas flores de lugares inóspitos, onde o ver não as alcança — não precisam de palmas nem de olhos que lhes instiguem o desfilar pelo efêmero.
Belas flores, é grato e satisfeito o sorriso que sorriem para o Sonho cuja presença ( em si ) lhes basta. LA 99/07
Pedido De Bênção
Quantas vezes, Coração, com o fio de desesperanças tu nos teceste novas forças — esperanças refeitas pelo vinho de precisar sonhar, pelo pão de precisar viver. Deus te abençõe, Coração, por saberes que pelo não saber é que se chega ao Santuário da Sabedoria — onde se faz a oferta e se recebe o dom. LA 99/07
Canção Pra Carolina
Acorda, acorda, Carolina, é hora de levantar — a manhã relincha a glória do sol que escorre das colinas e entre calhas de azul tua casa vem pintar.
Levanta, Carolina, e corre ver, menina, com que graça o sol pintor escreve em tua porta que maior que seu fulgor é a luz do nosso amor. LA 99/07
Pra Alevantar Teresa
Se o mundo, Teresa, quiser que você chore — não obedeça não. Nem por isso nem por aquilo — chore não. Antes, Teresa, chore de rir — ou chore de ser feliz. E coce — e coce os mimos, querida. Aprenda a bocejar e a cochilar — são coisas boas da vida.
O mundo quer, você não quer — chore não, sua boba. Nem abra mão da vida que fervilha na palma da sua mão.
Viva o hoje, minha cara. Faça dele a sua ponte, e ensine a você mesma — à sua humanidade que ela precisa ir até si ( própria ) porque o caminho será sempre de ser a ser-se, de ser-se para Casa.
Na alegria do Senhor, Teresa, está a nossa força — e dela nos vem o riso, vem a coragem: e a vida vira um estar nas mãos da graça, um descansar em Deus. LA 99/07
Curtição
Te curto, me curtes — nos curtimos até o circuito. Se a dosagem for pouca — cultivamos coniventes mais um cálido, curto coito. Caso ainda não der — só resta nos sentirmos coitados. LA/99/07
Caminho-caminhante
O que tem sido a vida, senão termos passado por angústias e angústias no fervilhar de uma luta pelo contrário disso?
Que tem sido, senão luta por não sermos tragados enquanto nessa batalha empreendemos aventuras de ser felizes — modos de distrairmos a dor?
Se vale a pena? Mesmo que não, as penas se impõem. Viver é uma maneira de nos justificarmos com a vida — que nos põe no mundo e ordena: “Trabalhai-vos, que não vos quero “isso’’.
“Vesti-vos de degraus essencializados de assim em assim... e saltos em si mesmos... Degraus interiores quanto exteriores.
“Aprendei que o criar tem sido vosso. A vida é o mestre, o viver, — o discípulo. Assumi vossas lágrimas e vosso riso — darão uma boa argamassa para os degraus do vosso transcender-vos.
“Caminhai, e tende pressa em sair do que sois para mais ser: construí pontes de misericórdia, e chegareis. Tende pressa por vós mesmos. Quanto a mim, sou perfeita em vós — e pura graça. Deixai-me ser-vos’’. LA 99/07
Motivo
Gosto de livros, e bem mais de literatura — por isso tive de escrever.
Cada texto que faço é um fio que ficou do último que fiz.
Ler-escrever me explica o que preciso saber — ( me ) organiza, ( me ) ordena:
me faz ver de outros ângulos e em outras gamas-consciência — a realidade a recontar-se.
Com o fio com que coso meus poemas, me descoso de mim e do que me prende.
Quero-me livre para Deus — para Deus que é minha volta para aquela Casa em mim. LA 99/07
Assim Não
Mulher que não fala mal do marido; não pula; não joga charme e tira o corpo; não tem segredos com a mãe; não admira homens solteiros; não flerta com a possibilidade; não olha para ver se é olhada; não finge orgasmos; não tem as suas dores de cabeça; não diz que ganhou das primas; não gostaria de enterrar o cônjuge; não se acha mais que merecedora — ( de ) mulher assim padre não gosta. LA 99/07
Pinga, Pesca E Papo Em Redondilhas ( Praia De Pescadores )
Pedro Fala Mansa:
Nossa parte foi bem feita: rede por rede foi armada. Agora, ao pé deste fogo, é esquentar a madrugada.
Tibúrcio:
Compadre, passa a garrafa, senão não posso contar. Já trabalhei em mais bundas que padre possa rezar.
Jurêncio:
Comi mais ameixa preta que bolo de padaria. Extraí méis de iraxim chuchando com vara esguia.
Jeremias:
Da amada cato carrapatos e piolhos durante o dia. Já quando resvala a noite, mergulho a tirar-lhe pérolas lá das funduras das águas.
Zefa-Cabocla:
A mulher do coronel dava para o feitor. Cauteloso, o coronel comia a do traidor. No domingo se encontravam ( os dois homens que se enganavam ) e meio a meio se enrabavam.
Chica Boa de Rabo:
A mulher o corneava tanto, que o dia em que não fazia ele em geral se sentia como coisa atirada a um canto.
Orlando Posseiro:
Bebi pinga, fiz mais buraco que filme de bangue-bangue. Já penetrei mais entranha que caranguejo no mangue.
Luisinha Alicate:
Ela dava todo dia, mas não morreu muito grata: queria ter duas xotas pra foder em duplicata.
Tião Perna Comida:
Depois de comida e pinga, que é que falta ao Tião cotó — a não ser um bom cigarro e os trejeitos de um fiofó?
Lola Boca De Compota
Meu sonho é que o mundo inteiro se torne um só picolé — é a imagem mental que faço quando estou com meu Mané.
João do Padre:
Da terra nos vem o pão, do mar o sabor e o peixe. Do céu a satisfação... Que a graça jamais nos deixe.
Mário, O Afoito:
Cheiro bom de maresia, com gosto de bacalhau — isto é o que me dá Joaninha quando a ergo no meu pau.
Madalena Maria:
Inverteram o meu nome a ver se eu me revertia — gente, deu não: minha fome não sabe simbologia.
Socionato Olho De Abutre:
Há xoxotas e pinguelos tão raros-caros — de um luxo tão furibundo que para se aglutinarem ( se vestirem um no outro ) — provocam toda a miséria e toda a fome do mundo.
Marta Sexóloga:
Se cortas o pingolim, numa santidade louca — o que não fazes com ele hás de fazer com a boca.
Zé Gaguinho:
Ela me cor-cor... cor-or-or-or... neou com tre-tre-três dos bem ba-a-a-a-a-atutas... Encabei a faca com os chifres e ma-matei os fi-das-as-as-as-putas.
Tiaguinho da Zula:
O dia em que não houver pecado maior que o perdão, então eu como a mulher do açougueiro Brandão.
Chicão Lábios De Mel:
Quando penso em seu xibiu, ela logo me aparece — o pensamento é assovio de boca que não esquece.
Eudócia Passinho Amarrado:
Parece que estou subindo sempre ao céu — cutucadinha ( mais em cima, mais em baixo ) por persistente varinha.
Maria Bom Tempo:
Faz sempre sol, sempre azul... É sempre ''sim'', jamais ''não''... Venha do norte ou do sul — adoro uma intromissão...
Caio Boca de Litro:
Abre mais uma, Tianinha, pra eu afogar as mágoas — aquelas que bracejarem depois jogo em outras águas.
Teresinha Valita:
Mais lenha, Inácio, mais lenha: constrói um fogo que abrase. O vento geme de doido — como amante que está quase.
Felício das Letras:
O maior problema do homem é carregar esse ''ardume'' — sua vida se resume num comer que é a própria fome.
Tonico Boi Sonso:
Tinha Virgínia na saliva um gosto de menta e gengibre. Fizera um curso pra aprender a reduzir o calibre.
Zé Bento:
O dia já vem chifrando a saia da noite acima — aos poucos vai revelando a cara e a bunda das coisas.
Bete Coxuda:
Forquilhei desde menina e inda forquilho até hoje — de peroba que lateja xibiu de Bete não foge.
Gertrudes, A Transeunte:
Cortou a própria genitália e deu para o cão comer. Não sabia que o desejo vem da luz em seu arder.
Leonor Terapeuta:
Amor de raça e saúde, e que é mesmo bom de taco, é como grilo que canta fora ou dentro do buraco.
João, O Sarado
Eulália e eu... um par certo — eu, — o mar; ela, — o rochedo... Se alguém estivesse vendo — era coisa de dar medo.
Tonho Bentinho:
Deus do céu tenha piedade de tanta besteira imunda — a gente quer beber todas e comer a própria bunda.
Glorinha, A Sensível
O vento uiva desejoso despenteando a fogueira. Vê gente: até mesmo o vento adora fazer besteira.
Ivã Gaivota
O ar é a tua xiranha, meu desejo, — o sol de outubro. E são loucuras azuis os momentos em que te cubro.
Lucas Beiçudo
Meteoritos vão afagando a bunda ensonada da noite. Ajeita, Lala, a enseada pra que meu caíque apoite.
Soninha Imaginação
Estrelas se dizem coisas lá nas alcovas celestes. Posso vê-las se masturbando no frufru de suas vestes.
Joana Frente e Verso:
Os galos estão dedando que a noite foi deflorada — a vida é sempre um aliso e a penúltima trepada.
Inácio Cu-d'água:
Ela lavava a calcinha, eu ensaboava a cueca. Quando vi que era horinha — afoguei-lhe a perereca.
Tonica Chave Inglesa:
Ao mundo se deixa o pó, da vida se leva nada. Para o céu levo as venturas de uma boceta esfolada.
Lazinha Gulosa:
Se tivesse tempo e vida e os homens Deus me emendasse — nem todo esse paraíso era coisa que bastasse.
Juju Olho De Sogra:
Mais lenha, mais lenha, Inácio, que a madrugada se encorpa tornando denso o escuro e o frio... E a noite bufa como orca.
Cadão Cabeça Enorme:
Rosinha quis o Cadão bem em cima do jirau — uma uivação misturada com estalação de pau.
Rualdo Coruja:
Os galos estão parindo a alvorada pelo bico... Fica de lado, Lalinha, que só me demoro um tico...
Pedro Fala Mansa:
Moçada, a luz já vem bicando o nosso enxergar inconho... Vamos ver o que deu o mar, que o sol é o lado cru do sonho. LA 99/07
Rosa E Grená
O amor e suas lavandas, suspiros rosa e grená. O amor e suas varandas, seus manacás e juás. O amor amado de banda pros olhos não se falarem.... O amor gemido de frente — pra dizer que não mente. Amado de mil maneiras — porque vale as canseiras. Amor de bicho e de gente: o mundo inteiro é parente. LA 99/07
Bonzo Jugal
À medida que arrefecem nossas ardências, amor vai nos fazendo cada vez menos de bestas. Então nos vem uma saudade do tempo em que éramos cavalgados. LA 99/07 Radical “Ard”
Primavera-verão. Desliza a vida por tobogãs de sol e azul. O dia arde entre saias bordadas de pernas. Entre corolas cheias de vinho-seios e ondulações facundas...
A vida belisca, mordisca a vida. LA 99/07
Carma De Fronteira
Quando a coisa fica feia a Argentina troca arrulhos com o Brasil — porém não chegam nunca a acasalar. Complexo, ressentimento históricos — excesso de urucum nas mágoas. LA99/07
Triângulo Retângulo
Carlos fazia versos para Beatriz que era noiva de Renê, e fazia amor com Bob.
E eles achavam uma delícia ( sempre trocando as estações, pois em geral estavam bêbados ) terem essa relação de triângulo retângulo: Beatriz — a hipotenusa, Carlos e Bob — os catetos, e Renê — o ângulo perpendicular...
É que eles tinham razões que — somadas aos catetos ( de suas intenções ) com o quadrado da hipotenusa ( de suas satisfações ) — faziam-se multiplicar nos fractais da matemática do caração. LA 99/07
Encontro
Mútua contemplação — arrulhos tingidos de urucum. Corações se acasalam. ( Penas? Só o branco delas. )
Guizos de prata tinem-retinem na alma.
Ruflos O amplo O livre-azul LA 99/07
O Que Há
Não haverá últimos nadas, mas primeiras coisas outras — fins-começos de viver e reviver com raízes em ser, e o vinho-sonho de sempre novos transcenderes. LA 99/07
Estes textos, a que dei o nome de Outono: A Vida A Limpo, foram escritos entre março e julho de 1999. Guardo seu manuscrito e seus disquetes, aliás — como costumo fazer — Devidamente Registrados.
1999/Outono-Inverno.
Um abraço, Laerte Antônio.
LALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALALAL
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