OUTONO, A VIDA A LIMPO

                               Laerte Antonio

 

(capítulo 1)

 

 

      No outono de 1999 escrevi este livrinho. Era alguém que precisava ruminar o que a vida lhe dera para  digerir em mais um pedaço de caminho . Sim, sempre que possível, precisamos refletir e conversar muito com nós mesmos. Daí que tais textos são remoalhos ( bocados ) que tive de remastigar e metabolizar pelo entendimento e consciência de mim mesmo e do mundo. E entre máscaras, espelhos, risos e lágrimas, ridículos, fantasmas e farpas de realidades — o saldo me foi positivo: saí fortalecido e com outros estratos de ver(-me). Somos muito diferentes naquilo em que sobejamos e muito semelhantes naquilo que nos falta, ou melhor: pelas nossas experiências e vivenciações ( não raramente ) podemos nos ajudar. Quem tiver forças de não ficar só pelas bordas, haverá de gostar de ver-se nesses fantasmas e entrelinhas... e no reflexo dessas  muitas águas.

     Um abraço, e esteja à vontade. Deliciosamente à vontade.

   

                                                                                   Laerte Antonio

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Gene Supressor

 

Dor de amor é bom, amada —

coisa nobre, chique até:

com a dor-consolação

dos paradoxos

e a angústia das antíteses.

 

Já quando amor vai passando

de bichinho amador —

catador de piolhos,

coçador daqueles pontos

aonde não chega a mão...

 

Já quando alguém vai passando

de herói para bandido,

de honesto para safado,

de bicho companheiro

para bicho displicente,

de amigo para impostor,

de leal para traidor,

de inventor-criador

para destruidor —

aí-então, amada,

não se iluda mais não:

o negócio é inocular no amor

( que se hospeda em nós lá dentro )

aquele gene supressor

que — de forma toda indolor —

livra-nos desse bicho,

e de seus íntimos carrapatos.

 LA 99/03

 

 

 

 

 

 

A Vítima Era O Réu

 

Cortou-lhe a esposa a coisa e a colocou

no freezer. Indignado, o promotor

rasgou o verbo e, cheio de furor,

à mão decepadora condenou.

 

A acusação também não alisou:

partiu da tese de que o pênis é o bem-mor

de um homem e, emproada, navegou

falicamente nesse tom de honor...

 

A defesa não diz, só desembrulha

aquela coisa que — sozinha — entulha

parte da mesa onde — nodosa — hiberna...

 

Chegou o júri à conclusão ruidosa

de que a vítima fora sempre a esposa —

pois só amputara uma terceira perna.

LA 99/03

 

 

 

 

 

 

Bibliotecário

 

A luz perpassando a vidraça

lhe aquecia as mãos e a mesa,

e o papel e a pena

algaraviando coisas

de lembrar sem chorar,

sorrir em alma,

prantear a seco —

sobre as açucenas que lhe cresciam

em torno a toda a mesa,

e os astros e as galáxias

que orbitavam sobre a sua cabeça

enquanto ele escrevia,

olhando de soslaio os elegantes volumes

de que era o bibliotecário —

escrevia um poema

sobre a rosa.

Sobre o tempo, a rosa e o sempre desfolhar

de um amor

entre a mesa, as mãos

que insistiam em sentir ao sol

a ilusão de não ser só —

enquanto existir o pó, os ácaros

e a gripe e as alergias

e quem escreva e leia-escreva

entre o narrar e o tempo que semeia.

LA 99/03

 

 

 

 

 

 

Os Quatro Temas

 

De política e de tempo,

futebol e religião —

todos nós entendemos bem

e acertamos sempre mal.

 

Mas agradeçamos a Deus

por nos ter dado essas coisas

que nos preenchem tão bem

aqueles tristes desvãos

da nossa infelicidade

de não termos o que ser

em nosso pobre dizer.

 

E pé na tábua,

que vem chuva!

Votem no Boi —

e terão bifes.

Bola pra frente!

Aleluia!

Amém, irmãos?!?

Amém!

LA 99/03

 

 

 

 

 

 

Excalibur

 

Todos nós temos

a nossa Excalibur —

com ela exorcizamos

os nossos demos, e alheios.

Excalibur é feita

do aço do mental

com que cortamos

as pedras de tropeço

que impedem nossos pés

de abrir aquela trilha

de nós ao outro

e do outro para Casa.

 

Excalibur é lâmina

que relampeja

entre o nosso pedir

e as mãos dos anjos.

LA 99/03

Tenho O Menino

 

Eu fiquei com o Menino,

deixei-o, sol dourado,

instalar-se lá em mim —

e era um sonho tão real

quanto Deus

ser a nossa aventura.

Depois que se fundiu em mim,

nunca mais estive sozinho.

Ele é a alegria que dá força.

A esperança que fortifica.

O amor que alimenta e nos livra

da dívida com o outro.

A fé que nos ilumina

( por um jogo interior de espelhos —

os pés e a estrada.

O Menino era belo

como ter pai e mãe

que com o seu testemunho

dizem ''não'' à infelicidade.

O Menino é de ouro —

não o ouro dos garimpeiros,

mas aquele refinado,

três vezes refinado pelo fogo

do amor de Deus.

Tenho o Menino

no colo do meu coração.

 LA 99/03

 

 

 

 

 

União

 

O caminho será sempre

o da superação dos dualismos —

unidade e integridade.

O viver pilotado

por uma vontade lúcida.

Um espírito decidido

levará o ser humano

de volta para aquela luz ( nele )

que lhe é caminho-verdade-e-vida.

 LA 99/03

 

Chega-Se A Deus Pelo Amor De Deus

 

Rei Arthur, Rei Arthur,

vos devolvi ( em sonho )

a vossa Excalibur

( ireis precisar dela

tão-logo as vossas fadas

vos liberarem de Avallon ) —

tirei-lhe a medida e o encanto,

e mandei fundir em Ur

( na terra de Abraão )

uma gêmea Excalibur.

Quem comigo se puser, ó Rei,

agora pode ‘sifur’...

Mas como bom francês,

vou brandi-la avec amour

ao estilo de Ben-Hur.

Sossegai, pois, meu Rei,

que convosco me iniciei:

bebi do Santo Graal —

longe de mim o mal,

iluminei-me e vi-me em Deus

que estava em Casa ( em mim ).

 LA 99/03

 

 

 

 

 

 

Dois-Um

 

Crianças,

falávamos como crianças.

Crescidos,

deveríamos falar

como crescidos —

conservando da infância

a confiança na vida

e a beleza do mistério.

 LA 99/03

 

 

 

 

Anúncio Em Chaveiro

 

Passando por Trepália,

não deixe de visitar-nos.

Para você, senhor, senhora,

jovem, adolescente ou púbere —

temos a mercadoria

que se encaixa direitinho.

 

Spa de trepadoria,

Trepália espera por você.

Fodófilos e fodófilas,

aqui vocês viverão

amazônicos orgasmos.

 LA 99/03

 

 

 

 

 

 

De Uma Tela De Fodornet

 

Na praça do mercado,

caiada de luar

e mordiscada de uivos

de cães mendigos —

Rosinha segura às costas

um muro enorme,

enquanto Tião Cara de Bagre

( pedreiro desde os onze ) —

num capricho de mestre,

vai alisando alisando

e tapando buracos.

 LA 99/03

 

 

 

 

 

 

     Cabos De Vassoura

 

    Ela pula cerca

      sem relar no arame.

    Verdade, babu?

    Para crer, veja

      o tamanho de suas pernas...

    E vale a pena, babu?

    Pra ela, sim. Pro namorado

      ( de certo modo ) também: dizem que tem

      muitas vassouras sem cabos...

    Que quis dizer com isso,

      babu?

    Que vai chover chuva de prata

e estragar todas as rosas.

      LA 99/03

 

 

 

 

 

 

Riso Extraviado

 

Melhor que nenhum amigo

fora livrar-se

de fazer inimigos.

Melhor que um amigo,

só a inconsciência de seus defeitos —

que nos faz acreditar na amizade

e praticar o seu riso extraviado.

 LA 99/03

 

 

 

 

 

 

Caminho De Arame

 

De Messalina à Irmã Dulce,

de Nero a São Francisco —

cada criatura

capitaliza o que tem.

E a humanidade só prossegue

porque os opostos a contrabalanceiam

em seu caminho de arame.

 LA 99/03

 

 

 

 

 

 

 

Plasmas-Sonhos

 

Os sonhos se realizaram.

E você agradece a Deus,

à vida,

ao seu coração que intermediou

a força de transformar o informe(-lá )

em formas(-cá ).

E em vez de satisfeito —

já se põe a sonhar

novas possibilidades —

outras transfigurações:

humanas transcendências.

 LA 99/03

 

 

 

 

 

 

Cultura Atual

 

Joaninha sempre foi mais que demais.

Trazia em si, com vigoroso charme,

o turbilhão dos temporais.

Tanto é que muito antes de seus vinte,

já tinha seu — com máximo requinte —

um lupanar dos mais fatais.

Dizem que ela plantou seus vendavais

e colheu tempestades por acinte...

Joaninha era um pitel

e uma dos que colaboraram

com a atual e avassalante

cultura de bordel.

LA 99/03

 

 

 

 

 

 

 

     Sonhótipo

 

      Disse à Joaninha

      que mulher tem que ser pernuda.

      Seios de pera-d'água

      com bicos de amora.

      Glúteo de cuia

      serrada ao meio

      e um molejo

      de carruagem imperial.

      Olhos de céu de maio

      ( de manhã ou de noite ).

      Lábios de goiaba em compota.

      Mãos de beija-flor em adejos.

      Cabelos de trigal ao vento.

      Gestos de muita flor à brisa.

      Suavidade de dois nativos

      fazendo amor em águas claras.

      Pés de pássaro alçan... do.

      Cintura-trilo de siriri.

      Sensualidade

      de canto longo longo de canário.

      Beijo de tomate com sal.

      Sorriso de pétala

      caída no lago...

      Jeito de rosa

      conversando com a manhã.

      Coração de criança

      correndo pela praia...

      Perfume de ousadia

      resvalando na carne.

      Orgasmo engolindo céu.

 

    E onde achar isso-mulher? —

      pergunta-lhe Joaninha.

    Dentro de cada uma delas

( quando estiverem distraídas... ).

       LA 99/03

 

 

 

 

 

 

 

 

Poema Pagão

 

Há os que adoram terem sido traídos

por cônjuges já defuntos.

Quando se lembram da traição

sentem aqueles orgasmos

que lhes foram roubados.

 

Viúvas e herdeiros

choram gostosas saudades.

Só perguntam aos céus

( lá no seu coração )

por que é que não tiveram

a graça de o terem tido

no mínimo dez anos antes.

 

Melhor que não ter um cônjuge

é ter se livrado de dois.

Delicioso ter sido abandonado

quando quem nos abandonou

nem de longe nos lembra

a pessoa que ora morde

a ponta da nossa orelha.

 

E é grato saber que aquele

que nos foi falsa testemunha

e nos prejudicou muito

no que tínhamos de mais precioso —

sim, é muito grato saber

que a esse tal

um ventozinho qualquer

o levou.

Mas sosseguem: que o levou

desta para melhor.

LA 99/03

 

 

 

 

 

 

Daqui A Pouco

 

Daqui a pouco

a luz há de cantar

com sua voz de ousar

a canção de uma outra vez.

 

Daqui a pouco

a rosa

vai olhar para a vida

com sorriso de quem não sabe...

 

Daqui a pouco

a vida vai ser outra —

tão outra que ninguém

vai notar a diferença.

 

Daqui a pouco

esse momento pouco

( e louco )

será o sorriso da rosa

pisado pelo tempo.

 

Daqui a pouco

resgataremos o sonho

das mãos onívoras

do nunca mais.

 

Daqui a pouco

o amor há de saber

que é, sim, maior que a vida —

sobretudo porque a vida

não satisfaz o Ser.

 

Daqui a pouco,

mais uma vez, a luz

aspira a noite

e expira os olhos da vida.

E tudo daqui a pouco,

não mais que daqui a pouco —

de um modo lucidamente louco.

  LA 99/03

 

 

 

 

 

 

Mais Que Dom

 

Entre o espinho

e a rosa —

o prístino caminho.

 

Dolorosa

é a vida

a caminho da rosa.

 

Mais que dom,

é a vida —

a Rosa de Sarom.

LA 99/03

 

 

 

 

 

 

Sopro

 

Soprado do Teu amor,

Senhor,

que bem não devo esperar?

Que mal devo temer?

 

Soprado da Tua graça,

que é que me falta

que já não o tenho em mim?

 

Soprado do Teu  Espírito,

que é que me impede de ter

os pés na estrada do Teu reino?

 

Soprado, Senhor, de Ti,

é loucura, meu Pai, sentir

que Tu me és?

 LA 99/03

 

 

 

 

 

 

Dom Maior

 

Tu sempre podes,

se és verdadeiro —

tu podes sempre.

 

Quantos maios em agosto,

quantas flamas sobre o gelo.

Quantas manhãs ao sol-posto,

quanto espinho tornado velo.

 

Tu sempre podes —

és dom maior

a recriar o homem.

Tu podes sempre.

O mundo só ainda existe

porque nas tuas atitudes

vives a dizer ''não''

a tudo o que desumaniza.

Vives — pacientemente —

a dizer ''não''

à humana infelicidade.

 

As tuas mãos de céu

encarnadas na argila

a dizer sempre aos homens

que a criatura é uma ponte

lá para os lados de si mesma.

 

Benditas,

sejam benditas, Amor,

as tuas mãos —

água fresca na jornada,

pão com cheiro de Casa.

LA 99/03

 

 

 

 

 

 

Canção De Casa

 

Minha terra, Dolores,

tem estratégias anestésicas:

um ritmo futebolizado,

um jeito carnavalizado

( com quaresma subentendida )

e enterros e ressurreições

de ufanismos.

Também tem muitos UFOs

pra distrair toda gente

que vive aos ''ufas!''

 

Tem mamíferos de luxo:

os ''donos,'' os ''notáveis''.

Tem camelos. Muitos. Muitos

( chamados de vagabundos ).

Tem cachorros grã-finos

e cães uivando de rabugens.

 

Minha terra, Dolores,

só ficou com as palmeiras...

O pau-brasil e outros paus —

levaram tudinho embora.

 

Minha terra, Dolores,

perdeu o jeito heróico,

o tom de decassílabo

e a elegância rimada

na lepidez tagarela

das redondilhas.

Quebraram a asa do canto

da minha terra.

Mais uma vez, quebraram.

 

A gente da minha terra

tem trabalhos forçados

( emprego vitalício )

com o FMI

 

Chorar pra quem, Dolores,

se só restou o pasmo

do bem-te-vi?

.......................................................

( Mas sossega, Dolores,

que lá no coração

já ouço um coro de máquinas —

bem, ali, naquela curva...

onde a estrada se adivinha

e o sonho a reinventa.)

LA 99/03

 

 

 

 

 

 

Crise

 

Cresce-se

com crise, sim.

Desde que a crise

não crie clima acrítico

ou tão cáustico-hipócrita

que creste

seu crescer.

LA 99/03

 

 

 

 

 

 

Os Que Ficam

 

De todos os poemas

hão de ficar aqueles

que falam do ser e seu destino.

Os que falam do gesto

da mão a mitigar a dor.

Os que ensinam o caminho

entre os espinhos e a rosa.

Os que não abriram mão

da fé,

da esperança,

do amor.

Os que sabem o que é o bem,

o que é o mal.

Os que dizem não à desventura.

Os que intuíram um sentido,

um rumo, um nexo,

uma finalidade

por entre a negação

e a insistência de não havê-los.

Os que sabem no coração

o que é a verdade,

o que são meias-verdades,

hipóteses e inverdades.

Os que se deixam alentar

pelo sopro do Espírito.

Os que conseguem expressar

conflitos e bloqueios

tornando a doença realização

e liberdade.

Os que reúnem num só ser

o adulto, o jovem, a criança

e permitem-se fluir

num ponto-centro microscópico do círculo —

onde chegar é chegar-se.

Os que sabem ser humanos

e, claro, não ficam por aí —

mas ensinam o salto...

 LA 99/03

 

 

 

 

 

 

Mais Uma Vez

 

Que bom:

carnaval vem vindo aí,

Teresa.

Mas uma vez vamos cuspir

todo o fel engolido —

todo o vinagre

que ano após ano nos preparam.

Que delícia, Teresa,

mais uma vez

aquela sensação afrodisíaca

de pura liberdade.

As nossas fantasias

com o desejo alucinado —

atingindo os seus orgasmos

só de tocar em pensamentos...

 

Que bom: mais uma vez

( livres de tempo-espaço )

vivemos a sensação

de que a vida também é nossa.

 LA 99/03

 

 

 

 

 

 

Olhos Feridos

 

Pobre poesia.

Tua riqueza

é não calares —

não aceitares

a humana pobreza.

 

Pobre poesia.

Tua força interior,

tua fraqueza sublime,

tua beleza de sonho

recostado na pedra —

serão sempre uma maneira

de — com os olhos feridos —

dizeres não à dor

e a tudo quanto impede

o sonho-mais da vida.

 LA 99/03

 

 

 

 

 

 

Questão De Enfoque

 

Não estás vendo?

Afasta um pouco,

e verás.

 

Não sabes?

Espera um pouco,

e saberás.

 

Não estás bem?

Só um pouquinho,

e tudo muda.

 

Não é por isso

que a vida é bela

e nós a amamos?

 LA 99/03

 

 

 

 

 

 

Gulatria

 

A gula de pregar.

De ser o melhor,

o maior.

A gula de “salvar”.

A gula dos “salvos”.

A gula de ser mais,

e mais.

A gula do dízimo,

e outras ofertas.

A gula material.

A gula espiritual.

A gula de preencher-se,

de realizar-se.

A gula dos carismas.

A gula de fazer-se ouvir

em heróicos testemunhos.

A gula de iluminar-se,

levitar, santificar-se.

A gula de orar, criar.

A gula de ter o Espírito —

uma poção dobrada d'Ele.

A gula de ter os dons.

A gula de dizer ao monte:

..........................................................................,

e a gulosa frustração

que vem após...

A gula de ser puro.

A gula de ser diferente.

A gula de não ter gula.

A gula que é gulatria

de uma gula que se diz não ter.

A gula que finge não morar

no coração do justo...

Do justo...

 LA 99/03

 

 

 

 

 

 

 

A Caminho

 

O poeta, o profeta,

o andarilho, o menestrel —

claro que andam por nós dentro,

morrem e ressuscitam

do pó das gerações.

 

Vibrai, cordas inquietas

do humano coração.

Convertei vossa inquietude

numa canção de paz.

 

Estamos todos

a caminho da rosa...

( A caminho do quê?! )

A caminho da Rosa.

  LA 99/03

 

 

 

 

 

 

Canção Carnal

 

Dança um lundum pra mim,

minha nega, —

peladona e sensual,

e me sossega,

me sossega do meu mal.

 

Parafusa o teu corpo,

minha nega,

no meu sonho carnal,

e me sossega,

me sossega do meu mal.

 

Uiva, ulula, suspira,

minha nega,

em tremelique espiral —

e me sossega,

me sossega do meu mal.

 LA 99/03

 

 

 

 

 

Vade Retro, Flumen!

 

Não perdi tempo nenhum,

seu Proust. Sai de mim.

Põe teu romance num caminhão,

indeniza-me por tê-lo lido —

e vê se me somes.

 

Pros diabos com teu rio-dizer!

Vida é síntese,

o contrário estoura a paciência.

Na juventude falava

que gostava de ti

porque achavam bonito

falar que gostava de ti

entre aqueles que fingiam te ter lido

e te julgavam um mamífero especial.

 

Cai fora,

senão chamo o velho Borges,

cujo desprezo de mestre

faz doer.

 

 

Longus és. Patientia mea brevis. Scrotus

meus amat synthesem.

Vade retro, flumen dictionis!

 

Meu tempo não perdi

porque aprendi que meu é só um modo

de chamar algo

que na verdade nunca tive:

algo por que passei —

apenas uma estrada

que percorri

e em que deixei minhas pegadas.

O tempo só se vence

 pela consciência em contrário.

   LA 99/03

 

 

 

 

 

Chicle-de-Bola

 

A dor mascada,

amada,

de te perder

faz a alma ruminar estrelas

e cuspir os caroços

daquelas uvas carnosas

de Cânticos dos Cânticos.

 

A dor de te perder,

amada,

faz mascar tua lembrança

nas horas enfermas de alma

e coração resvalado

em suas sozinhidões.

 

Chicle-de-bola,

amada —

tua saudade.

 LA 99/03

 

 

 

 

 

 

Nuanças De Sério

 

Levei-te a sério, sim, amor.

Quando rias eu chorava.

Quando choravas eu ria.

Chorava pra não competir...

Ria pra te animar.

Levei-te a sério, sim.

 

Levei-te tão a sério,

que jamais lhe pude ser sério.

( Se bem que isto

já é uma outra coisa .)

Sinceridade não correspondida,

amor,

deve rimar

com sinceridade não correspondida —

aí dá rima charmosa

( aquela dos filhos da... ),

caso contrário

é uma pobreza de diabo velho,

amor.

 LA 99/03

 

 

 

 

 

 

Sim-Não

 

Capitu comete ou não?

Quando-onde?

De modo topo-carnal

ou apenas psicotópico?

Parece que Machado

faz questão de nos dizer:

Se descobrirem, me digam —

que eu fiz de tudo para que a graça do livro

fosse essa.

Há coisas belas

porque não as sabemos nunca.

E há desafios que não merecem

o nosso atrevimento.

 

Sentimos o adultério no romance

e respiramos essa atmosfera —

apenas porque trazemos

tudo isso em nós.

A sugestão no caso (: é não é, foi não foi )

transforma-se ou não na coisa —

já que o plasma mental é nosso.

 

O não-ver

é o requinte de ver —

a desaguar

na questão shakespeariana

que se abre em labirinto

lá em ser ou não ser.

 LA 99/03

 

 

 

 

 

 

Dica

 

Pela atenção plena,

mantemos a prevalência

do espírito sobre a mente.

Assim nos podemos ver agindo

( de modo neutro,

ou ao lado de nós ):

vermos a nós e como agimos.

Aí fica, talvez, mais fácil

sermos o cocheiro da carruagem.

 LA 99/03

 

 

 

 

 

 

Boa Teresa

 

Gostava de Teresa

por me deixar sempre claro

que o que queria comigo

não passava daquilo,

e por me dar sempre a entender

que eu era um imaturo de um panaca...

mas que, com o tempo e muita vontade,

eu haveria de aprender

a não dar importância

ao que nunca teve.

 

Boa Teresa.

A jovem extraía mel

até das pedras.

Morreu de AIDs.

Mas nem por isso

esboçou algum sentimento

de autopiedade.

  LA 99/03

 

 

 

 

 

 

Querem Fazer, Façam

 

Façam o amor ou a guerra —

ambos têm dado muita satisfação

a muita e muita gente,

além de semear idéias

de que a sua prática

em muito ajuda o crescimento

e ao gênio criativo humano ( sic ).

 

Façam o amor, façam a guerra.

Só me façam o favor

de não me encher o saco

nem sujar no meu sofá.

 

Façam o amor, façam a guerra.

Se não puderem fazer

nem um nem outro,

vejam os outros fazerem —

e morram de vontade

( ou de inveja ) de seus heróis.

Um dia, talvez, tenham coragem

ou condições

de fazer o amor e/ou a guerra.

Então, meus caros, —

não passem vontade não.

Só não me encham o saco

nem me esporrem no sofá.

  LA 99/03

 

 

 

 

 

 

O Mais Velho Dos Temas

 

O amor ganha espaço —

não no coração,

mas na necessidade

de amar.

 

O amor ganha espaço

e vindima os seus cantos —

fazendo o vinho de sonhar

e a beleza de não ter idade.

 

O amor

é o sedativo natural

dessa realidade

que temos o dever

de mudar —

e que a vida quer outra

em todas as nossas células.

 

O amor é um mago

porque vive das delícias

que aprendeu a extrair

das pedras do caminho.

 

O amor não morre nunca

porque sabe transformar-se

naquilo que ama.

  LA 99/03

 

 

 

 

 

 

Rosinha E Ego

 

Rosinha era bela

como um pisão em caranguejo.

Bonita de tudo.

Casou com Ego,

seu conhecido desde sempre.

Ego a sabia bela

de fazê-lo tresloucar.

Tão bela quanto o seu amá-la.

E descobriu que, amando-a,

era a si mesmo que amava.

Eram o espelho e o lago.

A flor e o fecundá-la.

O fruto e o degustá-lo.

 LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Técnicas

 

Como é que pode mulher casada

transar mais que o marido?

Poder não pode,

mas entende-se o mecanismo.

 

E o homem, não faz o mesmo?

Fazer faz, mas sem charme...

Como assim?

A mulher  ( em casos especiais )

trama ritualisticamente

cópulas digníssimas —

suando sensibilidades.

Seriedade de psicoterapeutas...

Sorriso além do bem e do mal,

jeito e agrados de poesia concreta.

Silêncios filosóficos,

masturbações metafísicas

e sensações transconscienciais —

orgasmos de levitar as pedras.

 

E uma técnica final

que leva o cônjuge a ficar

com a consciência pesada

e sentir-se um cachorro —

pedindo-lhe ( à mulher ) perdão

por lhe ter ( ela ) sido infiel.

  LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Em Movimento

 

Quem sentou para pensar

se valeria a pena...

não pôde mais se levantar —

nem prosseguir.

 

Os que — em movimento —

sopesaram a vida —

tais conseguiram corrigir a rota

e prosseguir.

 

Quando a razão despreza a intuição,

em vez de ter o seu impulso —

fica mancando de uma perna.

  LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Vinho E Carnes

 

O vizinho chamou sua vizinha

para tomar um vinho lá com ele,

enquanto seu marido tinha ido

levar o carro para revisão.

 

Ela trouxera um guisado

( recém-tirado do microondas )

para acompanhar o vinho.

 

Naquela noite

não tocaram nas iguarias.

As duas longas velas

( que alumiavam a mesa )

queimaram até o fim.

 

No outro dia

( manhã, tarde e noite )

também não tocaram em comida.

 

No terceiro dia o esposo

( o homem do carro )

trouxera mais um assado

e os três fizeram uma ceia

em que se regalaram,

falaram de política, futebol,

carnaval... e riram, gargalharam

por um tempo enfiado em destempo.

 

O homem do carro se despede.

Sua mulher lhe pede permissão

par ''ficar mais esta noite''...

Ele concorda e lhe lembra,

com infinita delicadeza, de que a filha

já está perguntando por ela...

de modo que, se ela não se importasse,

fosse vê-la no dia seguinte...

Disse que sim e o beija no rosto.

  LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Quando Achares

 

Quando achares, apenas diz:

Achei isto, para mim.

E humildemente,

vê o que os outros têm achado:

compara com o teu —

e verás a diversidade

na unidade.

Já então terá visto

uma só fome, uma só sede

no coração humano.

E só com vê-las —

buscarás desse pão,

buscarás dessa água

de jamais teres

a mesma fome e sede.

 

Quando achares saberás:

tudo vira um só caminho.

E as pedras

já não são coisas mudas.

 LA 99/04

 

 

 

 

   

 

 

 

 

 

 

Por Um Surto

 

 

Se não ousamos o mistério,

como é que poderemos

ir tirando os seus véus?

 

Se não nos aventuramos

ao sempre desconhecido,

como extrairmos de nós

o conhecimento dele

e o de nós mesmos?

 

Nossas conquistas

são nós mesmos através

de conquistá-las.

 

Nossas crenças nos ajudam,

não pelo que refletem,

mas pela força

que nelas insuflamos.

 

Caminhos prontos

só levam até aonde

fingem levar.

Para chegarmos

temos de construir a estrada

como que por um surto

de atrevimento.

 

Buscar é a nossa liberdade.

Ir achando é um processo

de transformar nossas derrotas

em vitórias.

  LA 99/04

 

 

 

 

 

Escrivaninha De Vento

 

Ninguém se desanime:

hoje a poesia se faz

apoiando-se no ar —

mas nem por isso

deixará de caminhar

com o destino dos homens.

 

Ninguém se desanime:

já não há uma direção histórica

para a poesia.

Temos de trabalhar sobre a hora —

fazer de sua ferrugem

modelos novos.

 

Ninguém se desanime:

guardando-se o rumo interior

será preservada a liberdade

e a tirania não terá mãos.

 

Ninguém se desanime:

o Sonho será tão realidade

que as coisas velhas do mundo

chorarão lágrimas

de uma nova consciência.

Lágrimas que o sol

tornará em água viva

de uma sede para sempre extinta.

 LA 99/04

 

 

 

 

 

 

''Vem  Conosco!''

 

Se te chamarem: ''Ei, vem conosco,

não é bom estar só''...

Ajeita bem a voz, e sem magoar:

''Não posso. Estou arrancando minhocas.

Vou pescar bagres no sítio

da finada Filosofia.''

 

Se insistirem: "Ah, vem conosco,

nós vamos a um churrasco

na cobertura de Teologia''...

Arranja bem o tom e:

''Já ouvi a voz dessa senhora —

lembro-me bem de suas brisas,

de seu semblante azul

e sua voz de cocote...

Outro dia, quem sabe... Hoje estou indo

catar marolos lá nos campos

da enforcada Poesia.''

 

Se ainda insistirem: ''Ei, vamos... etc.

Então vai. Quem sabe essa insistência toda

não é instrumentalização de Deus?...

Quem sabe...

Vai, que a cara é tua.

  LA 99/04

 

 

 

 

 

 

O Outro Ângulo

 

Uma sagacidade

no efêmero da rosa.

Um riso disfarçado

de pura felicidade

no seu gozo fugaz

a transferir para nós

a sua autopiedade

enferma de beleza.

 

No fundo, lá no fundo

é o tempo da rosa

bem maior que o da pedra —

pois essa criatura, a rosa,

nasce, vive e morre

num só suspiro

de silencioso orgasmo.

 LA 99/04

 

 

 

 

 

 

De Volta Ao Tema

 

O não durar de tudo

é talvez

a mais nobre beleza

de tudo —

ainda mais quando se tem

a doce inconsciência disso.

 

No que respeita àqueles homens

que ''já não dormem'',

parece que o tempo lhes funciona

como um mordomo —

não contratado por eles,

mas pela vida.

 

Igualmente parece

que o tempo é um filão cósmico

( uma condição plástico-dinâmica )

de que se pode extrair

meios de refazer(-se)...

 

Quando o homem souber o que é o tempo

terá conhecido o caminho

que não precisa de caminho.

 LA 99/04

 

 

 

 

 

                                              

( Outra Vez ) Tempo E Ser

 

Sem o tempo

o Ser seria congelado.

A existência,

sem o testemunho da criatura —

seria a Bela Adormecida

sem o Príncipe para acordá-la.

 

O tempo tem a sua alquimia.

O ser precisa dela

para tornar-se outros —

em plurigamas, multicanais

e várias confluências:

de si para múltiplos tempos

e inúmeras moradas.

 

O tempo fornece o plasma

e a dinâmica interdimensionais

em que se expande por si mesma

a criatura —

num movimento que elabora a consciência.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Uma Tecla

 

Você poderia encontrar

aquilo com que sonhou

a sua vida toda —

se pressionasse

apenas uma tecla...

 

Mas... tem um mais:

ao pressioná-la,

poderia esquecer-se

de que era bom seu sonho:

que esse sonho era o que você queria.

 

Pressionar ou não,

esse seria o seu dilema:

sonho realizado,

sonho esquecido

ou sonho não ousado.

 

Todos nós já tivemos

( lembremo-nos ou não )

frente aos olhos e o dedo

ao menos uma tecla dessas.

  LA 99/04

 

 

 

 

 

 

 

 

Arte

 

A arte é vida —

sem ser imitação.

A vida não é arte —

a vida é vida.

 

A arte reflete

sobre algo-vida —

do particular

para o geral.

 

A arte sempre vem suja

de vida e humano.

Relação humana com o mundo,

reflete esteticamente

sobre um dado universo

em que o objeto isolado,

de forma sempre estranha,

espelha sempre o todo.

 

Arte é o caminho estético,

sem cobertura de vidro —

do ''eu'' para o ''nós''.

 

Ser em trânsito,

a arte inclui.

Seu fim

é sempre outro começo.

 

Fazê-la é liberar-se

de casa para o mundo.

Fazê-la é trabalharmos o que somos.

   LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Sempre Amigos

 

Disse ao meu coração que não —

que não explodisse.

Que explodir, certamente,

não lhe valia as flores...

 

Disse ao meu coração

que o humor, o riso, a ironia

e outros assemelhados,

em geral, são bons remédios.

Ensinei-o a rir

e até, em alguns casos,

a gargalhar.

Ele gostou, se deu bem:

tanto, que aprendeu a se coçar,

a bocejar

e a cantar pelo nariz...

Entendeu mais ( eu acho )

as chamadas ''coisas da vida''.

E hoje somos amigos.

Nem sempre de bem com a vida,

mas sempre amigos.

  LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Em Trânsito

 

Com o amanhecer de consciência

as coisas se superam,

desde que lhe demos um impulso

para saírem (de nós) outras.

 

Consciência é saber-com-o-outro

( que também está em nós )

as coisas que trabalhamos

no mundo e em nós.

 

Consciência é o estado atualizado

e provisório de ser —

capaz de vir à tona

e trazer aquelas ostras

contendo pérolas

de grande preço.

 

De consciência em consciência

vamos tirando de nós dentro

( da nossa arca em trânsito )

aquelas coisas novas e velhas

que nos ajudarão no entre percursos

do nosso caminho em várias gamas —

mas todos afluentes

do nosso ser.

LA 99/04

 

 

 

 

 

      

     Tempo-Des

 

      No tempo da desmorália:

      Desbunde-Desfalque-Despudor.

      Desbundália, meu amor.

 

      Tempo de quá-quá-quá,

      modulado em rá-rá-rá.

    Despudorália?

    Despudorália, amada.

    Desfalcália, darling?

    Para trepálias, amorzão, —

      em dólar e esterlino:

      eurofodas, meu tigrão.

 

   — Em tempo-des,

      que fazer, linda Inês,

      a não ser vaginação

      em rotação e translação?

      LA 99/04

 

 

 

 

 

 

    Fodotecnia

 

      Mandei construir um aparelho

      trans-ultracopulativo-fodológico

      de altas trepadorias —

      para extrairmos, amada,

      sem cansaços nem estresses

      nossos inúmeros diamantes.

    E quando vem, amor?

    Bem, chinês... sabe como é...

    essa raça não tem pressa.

      Disseram que no máximo em três décadas

      estaremos copulando a laser.

    E até lá, meu querido?

    Até lá fornicaremos

      como nos tempos bíblicos.

       LA 99/04

 

 

 

 

            

 

Tempo-Ser

 

Toda vez que em ti penso, Ofélia,

penso-te diferente.

E quando o faço reiteradamente,

chego a chamar-te de Amélia...

mas Amélia conota, minha Hélia,

feministicamente mal —

então já te finjo Adélia

com uma dicção de Lélia

e um certo jeito de Cornélia.

Até mais, minha Célia.

  LA 99/04

 

 

 

 

 

 

      Didática Filial

 

    Trepar é perigoso, pai?

    Depende da árvore, meu filho.

    E é bom, meu pai?

    Depende da árvore.

    Dizem que relaxa, realiza...

    Depende da árvore, filho.

    Falam que até prolonga a vida...

    Dependendo da árvore, sim.

 

—  E você, tem trepado muito, Pedrinho?

    Só na passiva, meu pai... assim mesmo

      dependendo da carranca

      que vem na frente do barco...

      Sim, pai, eu relincho

      com a boca no travesseiro.

    Mas, Pedrinho!...

    Relaxe, meu pai.

      Trepar ou ser trepado

      é só uma questão

      de trepar ou ser trepado.

      LA 99/04

 

 

 

 

 

 

 

A Ciência

 

Pelo que se vê,

a ciência ainda não tem meios

de fazer os homens se amarem.

Não tem pílulas de solidariedade,

nem drágeas para a felicidade.

A ciência tem salvo 1 coração

e baleado 100.

O homem pobre edifica,

ela — através do homem rico — incendeia,

esfarinha.

A ciência tem dado uma no prego

e quatro no dedo.

A ciência é uma rainha —

dá uma de boazinha

para os áulicos

e ó ...! ó e ó ! no  povo.

 

La science n'a pas de patrie...

Claro que não, — só tem banqueiros,

ou quem paga mais.

É hora de tirar-lhe a máscara.

O mundo precisa vê-la pistoleira

dos Estados e dos Dominantes

que em nome da 'liberdade'

e da 'dignidade humana' —

dizimam aqueles que não querem

se alfabetizar e orar

pelos seus livretos feitos de hemácias.

Sim: a ciência

será julgada pela razão.

  LA 99/04

 

 

 

 

 

 

E Mais

 

A palavra?

Taco-bola-caçapa.

Só jogo não, bem mais.

Só brincadeira não, bem mais.

Ludofazer metafísico.

E mais. E mais, além de

taco-bola-caçapa,

pé-bola-rede. E mais.

Sei lá que mais.

Mais tudo.

Tudo o que foi puxado

( por ela ) para ser.

  LA 99/04

 

 

 

 

 

Dentro Desse Frio

 

Um frio ( não lá fora ).

Um frio muito frio —

o reflexo de um rio

lavando o sangue da aurora.

 

Escuro ( não lá fora ).

Nenhuma voz ou carinho

que ilumine o caminho

de quem se vai embora.

 

Um vento ( não lá fora ).

Um vento espanta, uivando,

esperanças em bando...

Na varanda alguém chora.

 

Vazio ( não lá fora ).

Um vazio tão ermo...

Um esperar enfermo

de alguém que se demora.

 

Frio-escuro-vento-vazio

( não lá fora, não lá fora ) —

mas tudo como se fora

aqui dentro desse frio.

 LA 99/04

 

 

 

 

 

História Antiga

 

Um príncipe

( lá da casa do Egito )

faraozava hebréias

no ápice da Pirâmide —

toda vez que a luz da lua

formava com seu desejo

um ângulo obtuso

tumidamente escuso...

Sua alma então nadava,

não no Nilo

nem no Vermelho Mar —

mas em orgasmos esfíngicos

que encabulavam Anúbis

e atormentavam as múmias.

 LA 99/04

 

 

 

 

 

 

      Nem Por Isso

 

    Será que nos amamos,

      amor?

    Decerto, mais que decerto.

    Então por que o deserto,

      tão perto?

    É que isso-amar não exclui

      as areias.

    Bonito e épico.

    Nem por isso, amor.

LA 99/04

 

 

 

 

 

Indústria De Panquecas

 

O príncipe negro disse

ao príncipe de semblante azul

que ia fabricar panquecas

com gosto de mulata

para vender à Europa loira.

 

O de semblante azul

lhe deu a sugestão

de acrescentar às tais

uns pigmentos de lua e aurora

para torná-las comida universal.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Reclamos

 

A palavra, ferida,

falida,

reclama novos tratos —

outros tatos,

menos vaias de alfaias,

nem mais cobaias:

ratos do mato

ou patos

em vôos sem a memória

da história de chumbo...

 

A palavra,

de asas pensadas —

volta a ser azul.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Velhas Mãos

 

Olhei para as minhas mãos:

estavam velhas e sozinhas.

Tinham passado por elas

multidões de dias e noites.

Finas e frágeis,

a pele flácida e pintada —

tinham lidado com a vida

e dado feição aos seus próprios dias.

Conheciam o bem e o mal

e haviam aprendido

a discernir entre os dois.

Agradeci no coração

pela bênção desse discernimento.

 

Narravam tudo de mim.

Ninguém mais do que elas

conhecia meus pensamentos,

sabia meus sentimentos

e captava as entranhas

do meu ser físico e moral:

eram meu ser inteiro —

antenas e canais,

superfícies e funduras,

alegrias e tristezas,

planuras e mistérios —

sabiam de meu bem,

sabiam de meu mal.

 

Olhei-as: velhas e sozinhas.

Haviam crido.

Haviam desacreditado,

sem descrer.

Haviam se enganado.

E entre tantos feitos

e negligências e omissões —

construído-desconstruído-reconstruído.

Haviam segurado golpes,

desfechado outros.

Haviam assinado,

endossado, pactuado —

segurado esperanças.

E agasalhado sonhos

e acariciado utopias.

Haviam segurado o mundo.

Haviam retido nada.

Pensado que podiam tudo,

depois, visto, aliviadas,

que não detinham nada —

a não ser terem efetivamente nada.

E ficaram sabendo por si mesmas

que o seu fazer

é toda a sua alegria

e toda a sua tristeza.

E que não é porque as ações

começam em outros ''departamentos''

que elas não sejam tais ações:

entre fazer e quem faz

a distância é nenhuma.

 

Olhei-as: cansadas e vazias.

Estavam bambas, mas não medrosas.

Feias, mas não envergonhadas:

sempre que se soubessem arrogantes —

curvavam-se em oração.

Mãos que riam e choravam,

fizeram e se alegraram,

fizeram e se arrependeram —

e arrependidas buscavam transcender-se,

batendo às portas de Deus.

..............................................................................       

Mãos a quem foi dado aprender

terem uma só coisa de especial:

serem iguais a todas as mãos do mundo.

Mãos a quem foi dado aprender

que a maior plenitude

que pudessem aparar para si mesmas

era estarem vazias —

jamais tentarem reter em si

o que existe para fluir.

 

Olhei-as: velhas e vazias.

E agradeci a Deus

pela leveza,

não de nada terem,

mas de já não segurar.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Nossos Agradecimentos

 

Agradeçamos àqueles

que não perseguem senão seus sonhos.

Que não ferem

senão as cordas de pensamentos de paz.

Que não matam

senão a fome dos miseráveis.

Que não batem

senão palmas à solidariedade.

Que não falam

a não ser para facilitar.

Que não odeiam

senão odiar.

Que não roubam

senão um tempo para cooperar.

Enfim, a todos os que não fazem

senão fazerem aos outros

o que desejam que lhes façam.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Ar muito seco,

fumaça.

Estio em alma.

Rosas sacrificadas

e as intenções

que nelas poderiam

dizer-tecer o sonho.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Folhas

 

Fogo no bosque.

As folhas de Verlaine!

As folhas...

elas devem arder

na alma,

no sonho do poeta —

pois nem tinham ainda

se vestido de longo...

sim, de seu amarelo longo.

 

Fogo no bosque.

As crianças que brincavam

mergulharam na fonte.

Coragem,

que o fogo passa,

o fogo passa.

      Os bichinhos que cantavam

      e tinham asas

      ou tinham pés velozes

      foram-se, foram-se para longe...

      mas muitos, muitos que não são espertos,

      esses, meu Deus, esses...!

 

As folhas mortas

são as que caem naturalmente

a-ma-re-le-ci-das...

São as folhas de Verlaine.

Já as folhas matadas

são as que as mãos de homens

fazem arder com o fogo.

São as folhas de mãos

que não pensam nem sentem.

 

As folhas mortas,

as de Verlaine,

são aquelas que ainda sonham,

sonham até

o seu último bailado com o vento...

e que ao tacar o solo

já se ofertam sorrindo

ao futuro de luz e cores

da primavera.

LA 99/04

 

 

 

 

 

Tarde.

Horizonte de uvas.

O mosto escorre em taça

onde a alma bebe

e sonha o que haveria

além do que se vê.

LA 99/04

 

 

 

 

 

A noite,

pura luxúria,

cobre o seu corpo

de jóias que palpebram —

e acende na carne dos homens

o antigo jogo

das recompensas.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

    Afluentes

 

Lembrar sonhar amar

interagir

e tudo o que oxigena

e faz fluir as nossas águas

de nós para as dos outros

e as dos outros para nós —

afluentes de um mesmo rio

a caminho de Casa.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Cocô-Tur

 

Cocô gosta de viajar —

Cavalga corgo, rio

em cabeças de banhistas

e ‘despingola’ no mar.

Cuidado, não vá se banhar,

que o mar tá puro cocô.

Cocô viaja mais

que qualquer navegador.

Homem, não dá pra competir —

cocô viaja mais.

Tragam o Guiness

pra cocô assinar.

E vivam os cocôs, —

esses novos Ulisses

da interação universal.

Senhoras e senhores —

o mar tá pra cocô.

LA 99/04

 

 

 

 

 

               

Previsão

 

Meus ossos transarão com os vossos

num esplendor de fungo e pó.

Nossas caveiras

num beijo sepulcral

( de invejar o poeta Augusto )

hão de sentir saudades

de suas línguas

e seus furos e saliências

dependurados no esqueleto.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

 

      Um dia ( não demora )

nossos ais se abraçarão

bem ali onde Khayyam

construiu o seu harém de vento.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

      Dança, dança e canta, Hafiz.

Espanta essa dor que é tanta.

Faz minha sombra feliz.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

     Água  Morta

 

Aos olhos que não choram

a beleza usa véu,

e não a vê nem ouve

o coração —

a quem a vida

se torna ressequida

e a palavra

não mais lhe flui —

água morta.

LA 99/04

 

 

 

 

 

     Maturação

 

Um intelectual só madura

quando consegue superar

sua intelectualidade.

Quando seu refletir

vai além do seu reflexo:

momento em que seu coração

começa a pensar.

Seu sentimento

a ter visões.

Sua esperança

a gerar sonhos.

O seu imaginar

a plasmar utopias.

E suas utopias

a arrebatarem-no

até o terceiro céu

da terra dele mesmo.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Intenções

 

O que fazemos vem sujo

das nossas intenções.

O nosso egoísmo as vê

boas sempre.

Estamos muito longe

de superar

a intencionalidade

das nossas intenções.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

      Velhas Delícias

 

O amor e a guerra

são as delícias mais antigas

da humanidade.

Não sejam bobos:

façam os dois.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Serviços

 

Há serviços profissionais

que exigem certa soma.

E pronto.

 

Há serviços amadores

que nos exigem a vida.

E sempre.

 

A diferença é grande, claro.

Tão grande quanto o preço.

E a escolha é nossa.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

      Tarefa

 

Virou a amada de bruço

e com a exata perícia de um cata-laser,

pôs-se a catar-lhe

( era um domingo sem ponteiros )

carrapatinho por carrapatinho —

escondidinhos-escondidinhos...

Só sei dizer

que catando frente e verso —

deu quase meio litro.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

     Chalim Explica

 

Calmo, o pai de Chalim

vem dizer-lhe que Beliz,

sua esposa, fugira

com seu irmão Tagira.

 

Calmo, Chalim sorriu

com tanta felicidade

( sempre gostara de Chiling —

esposa do irmão traidor...)

que seu pai, na verdade,

não entendeu o que viu.

 

    Por que Chalim se riu,

      se lhe roubaram Beliz? —

      pergunta-lhe o pai com zanga

      e fúrias de urso panda.

 

      Chalim lhe explica em tom rouco:

      "Beliz, meu pai, é um robô

      que de um lado faz amor

      e do outro rala coco.''

      E os dois sorriram chinesmente....

      LA 99/04

 

 

 

 

 

Festa

 

Fiéis, só os enganos.

O mais é vento-veleidade

com saudade

das canções que não dançou

e daquilo-amor que não foi.

 

A realidade é um boi.

Se a quisermos andorinha —

demora só um pouco.

Se a sonharmos liberdade —

isso só lá em alma.

Se a ambicionarmos maior —

já é um trabalho de consciência.

Constantes,

só os que nos detestam

e se esquecem “clicados”

em seu ódio charmoso.

 

Não é que o mundo é leviano —

seu peso é que se sente mal

e quer rolar e voar.

 

E olho vivo

( já dizia Ibraim, hoje dos anjos... ):

Jacaré que morde o próprio rabo

nunca foi jacaré, mas cachorro.

................................................................

E o homem tem sido o cachorro

de suas próprias mordidas.

 

Mais que fiéis,

só mesmo os desenganos —

irmãos mais novos dos enganos.

E o mais é festa

( de debutantes ).

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Roda

 

O homem é o escravo do homem.

O orgulho de nem pensarmos nisso

é que nos dá a força

para continuarmos

a nos fazer mutuamente escravos

nesse teatro fingidor

em que há livres e cativos.

 

Todos escravos.

E escravos alegres

porque inconscientes do processo

de fazer-e-ser-feito.

 

Como escapar à roda do tempo

( esta, sim, é escravidão ) —

senão direcionando

nossas ações

para o caminho-do-meio

do que chamamos bem e mal?

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Relações

 

''Não me exporei

para não precisar

usar deformadoras máscaras'' —

disse-lhe o coração.

Estava habituado

a viver à sombra da luz

e tinha acesso

a outros departamentos

da realidade —

dizia.

Afinal,

a vida é o dentro e o fora

de alguma coisa

que nem precisa ser

exterior e interior.

( O bocejar da rosa

não lhe revela tédio —

a não ser que estejamos entediados.)

 

A ''falta'' de relação

( não raramente)

é um bom relacionamento.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Sinais

 

O povo que não for capaz

de ir além de si próprio

e caminhar com o mundo —

terá perdido o trem de si mesmo.

 

Por mais que, talvez, doa,

doravante a história do mundo

será a história de cada pessoa.

 

Consciência universal

a fluir entre o nacional

e o pessoal

( feita um só rio, uma só água ) —

são estes os sinais

de outros tempos.

A vida é hoje

aldeolita.

 

E isto não é capricho —

mas Homem E Destino.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Longe/Perto

 

Lá em pensar em você

brilha um jardim

de onde colho as flores

que lhe mando

e que você ( por vezes )

acha tão lindas.

 

Só não lhe digo de onde as colho

pra você não ficar

convencida demais.

Mas se ficar

lhe digo que ( não sei por quê )

lá em pensar em você

às vezes é mais bonito

do que estar com você.

Se ficar brava, argumento

que isto também se dá

com relação

ao misterioso deserto,

às fantásticas geleiras,

aos altíssimos picos —

ao grandioso, enfim.

...............................................................

E por falar em flores,

tome mais estas...

Estas colhi atrás do inverno.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Amar-Te É Amar-Te

 

Amar-te é um luxo

Pistaches,

desejos-passa

Sedas chinesas

na penumbra crispada

de mais, só mais um pouco

Além de um porto,

que é vinho e cais,

onde partir-chegar

é loja e sonhos

de especiarias

 

Amar-te é um luxo

que já me dei

com cerejas e papoulas

E céus de maio

se desdobrando em flores

e fofo,

despudorado azul

 

Amar-te é um luxo —

mãos num concerto de pétalas

e lingerie —

com brisas lá em alma

 

Amar-te é um luxo

com jardins

e repuxos

em fim sem fins

 

Amar-te é amar-te.

O mais e em tudo

é sempre

tão pobre a arte!

LA 99/04   

 

 

 

 

 

Via Vias

 

A verdade é trivial:

extremo, meio, extremo.

Tão trivial,

que, por usar três máscaras,

só lhe resta, afinal,

por identificação,

o timbre ( o personal ) —

o Verbo que se faz carne

e a torna univial.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Escola

 

O dedo jovem mata

esmaga

mói metralha

explode

 

Tem alarmado o mundo

o dedo infante,

o dedo adolescente,

o dedo jovem.

 

Com quem terá aprendido

a matar tão friamente,

a assassinar

tão calculadamente

o dedo jovem?

 

Invadir explodir

metralhar

queimar povos pobres —

em nome da liberdade

( hoje em nome da liberdade ),

não é uma ''bela'' escola

ao olhar do aprendiz,

ávido de imitar, —

de mostrar que também ''pode''?

 

Fazer de gentes

ratos,

micróbios,

lixo,

esgoto —

em nome de qualquer coisa,

não é dizer ao mundo

que um ''ismo'', um ''ia'',

uma idéia, um pensar

valem bem mais que a vida?

 

Quando as ''crianças'' mostram

que foram bons alunos,

que assimilaram as lições

e metabolizaram bem

o aprendizado —

dá para não saber

por que é que estão assassinando?

LA 99/04

 

 

 

 

 

        

Who'S Next?

 

Muito difícil caminhar

com uma corda atada na cintura.

Correr, então, — nem pensar.

O Governo Universal

( aqueles países

que chacinam e queimam

os pobres dos povos pobres )

vai ter de repensar

seu Sistema de Agiotagem

( capetalismo vídeo-financeiro )

sobre a garganta dos pobres

dos chamados países pobres.

 

Tais senhores de ternos cinza

dominam por terra, água e ar,

e em nome de seus deuses

matam à fome, à bala, a míssil

aquelas pessoas tornadas pobres

pelas raposas coniventes

dos apelidados países pobres.

 

Tais senhores,

disfarçados de anjos de luz,

deitam e rolam no mundo.

Soprados do antiCristo,

matam e queimam e, em seguida,

fabricam letras voadoras

com suas esquadrilhas

e vôos grafando no ar

o símbolo da SUÁSTICA,

com o desafio terrorista —

Who'S Next?

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Ao Pé Do Fogo

 

Aprendemos tanto,

e não fomos felizes.

Quem sabe pelo desaprendizado

não o seremos?

LA 99/04

 

 

 

 

 

Ficava cismando no infinito

até trazer à tona

algumas sementinhas...

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Sem perceber,

fez amor com a morte,

virou pro canto, — e dormiu.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Nosso mal é sabermos demais

e sermos felizes de menos.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Ela fingiu não me ver.

Fiquei envaidecido.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Ah, Os Sapatos...

 

Os sapatos do palhaço

diziam coisas sem fim.

E as crianças riam e riam

das coisas que lhes contavam

os sapatos do arlequim.

 

Eles podiam lhes falar

de coisas sonhos tão lindas

que sapatos nenhuns

sequer jamais as lembraram.

E riam, como elas riam

desses sapatos.

 

 

E pelo mundo que dá muitas voltas

apenas umas poucas

dessas crianças

não foram amordaçadas

pela adultez

e continuaram a amar

os sapatos do arlequim.

LA 99/04

 

      

 

 

 

Melhor Só...

 

Um amor que passou

pelo vinil,

peloK-7,

pelo CD

e agora, sabe Deus

por que outras diabruras internáuticas —

um amor desses

é coisa chique, amada:

por nada se bota fora —

vinho da aurora

bebido na corola

de um sonho... que eis aflora

com gosto tinto de amora

entre manhãs de domingo,

domingo zonzo de lembrar...

 

Melhor que um amor assim

só paçoca de gergelim.

Mais belo?

Só os sapatos do arlequim.

LA 99/04

 

 

 

 

         

 

Quem Sabe

 

Aprendemos.

Fizemos tudo direitinho.

Deu tudo certo.

Só não fomos felizes.

 

Quando a neve derreter,

voltaremos para casa.

Iremos pelo caminho

do coração.

 

Quem sabe encontraremos,

não mais aqueles velhos sonhos:

a varanda

ciciada de folhas secas

com pedaços de vozes

contando-se coisas

que se tecem no ar, no vento —

e , de um triste amarelo,

aquelas frágeis flores

da infância e adolescência

sorrindo em pequenos cacos de louça...

 

Sim: não mais os enfermos sonhos,

mas o riso de nossos pais

brilhando,

farfalhando em cada folha

a nos dizer:

“Não tenham medo das quedas...

Quedas e ascensões

são quase sempre

dois belos impostores...

Passem ao largo.

Sim: passem pelos dois,

enquanto seus pés constroem

novo caminho

entre o destino e a vontade.”

...........................................................................

 

Quem sabe a graça nos enxergue,

e o caminho de casa

já não seja tão frio...

 LA 99/04

 

 

 

 

 

 

 

 

Auto-Explicação

 

Escrevo

pela urgência de dizer-me

que nada é ''assim'',

mas que ''assim'' pode ser

o suporte de reinventar

as minhas invençoes.

 

Escrevo,

ou melhor: reescrevo

porque não me atrevo

a deixar que o silêncio

diga por mim.

 

Escrevo, enfim, para dizer-me

que fica o dito

pelo não dito —

enquanto eu não me chamar

Benedito.

LA 99/04

 

 

 

 

 

Camélia

 

Camélia —

corpo da amada

no desejo dos amantes.

Camélia, — carme da carne.

LA 99/04

 

 

 

 

 

Seu Dadá

 

Seu levantar às 11h30

( quinze antes do almoço ),

sua política de esquina

( que o mantém vereador ),

seu carro muito pobre,

a casa

sempre por terminar.

O seu jeito de otário,

seus ditos de arlequim,

seus pedaços de obras-primas,

seu sorriso de Mona Lisa,

seus acenos espichados,

seus tapinhas nas costas,

seus trovões e só respingos,

suas meias coloridas,

seu não ligar,

a não ser para ela

( a cobrar ) —

que delícia

ver que tais artimanhas

dão certo ainda.

LA 99/04

 

 

 

 

 

Bom Proveito

 

Que pouco é tudo

( você pensa ):

não só mereço

o todo total de tudo

como aquilo que o contém.

E empilhando seus teres

( que já não cabem ) —

você remete pilhas

para quinhentas partes

desse mundo que pensa seu,

mas que na realidade

não é só seu:

tem também outros donos

como você.

Bom proveito.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

 

Sesmeiros

 

As ilhas,

que outrora habitamos,

foram povoadas por nossos

chiliques e piripaques.

 

Tais ilhas,

que agora recriamos,

guardam disfarces e marcas

de nossos atuais tremeliques.

 

As ilhas

cujo suplantá-las fez penínsulas

e o conhecê-las terra nossa —

tais ilhas se nos tornaram

em autoconhecimento.

 

Essa terra

( outrora ilha ) agora

são nossas sesmarias

e é preciso trabalhá-las —

que a nossa parte nelas

é só o nosso transformá-las.

LA 99/04

 

 

 

 

 

Lembrança

 

Quando vinham temporais,

minha avó, com muito medo,

dava-me muitas palhas bentas,

pegava uma lamparina

e se punha a rezar

enquanto as palhas queimavam.

 

E o tempo descarregava

a sua formidável fúria

em relâmpagos, trovões,

raios, coriscos, estalos,

chuva grossa, grosso vento

e carrancas de céu negro.

 

Em seguida, a outra face:

a calma se recompunha

com um sorriso arrependido.

Minha avó, então, me olhava,

pálida ainda, e me dizia:

“Tá vendo, caro? É só rezar...”

LA 99/04

 

 

 

 

 

Sempre Estás

 

És inerente ao ser,

és inerente à vida —

vejamos-te ou não,

tu sempre estás.

 

Quanto mais os homens

pensam que já não cabes —

mais te vejo que fluis

como o ar, como a luz:

só precisamos saber-Te—

então abrimos a janela

e toda a casa se ilumina.

LA 99/04

 

 

 

 

 

    Clones Mentais

 

    Psiu, Rosinha:

      pra onde vai este caminho?

    Pra parte alguma, como todos

      os caminhos.

    Não leva para Maria,

      a que me diz amar

      com gesto de girassóis?

—  Metáforas só, meu amigo.

      Tal Maria não existe.

      Existe aquela

      que você fez pensar coisas bonitas

      e que por sua vez

      mediunizou a tal Maria

      que lhe anda jurando amor.

      Essa Maria é um clone do teu sonho —

      existe enquanto a energiza

      como a mulher ideal.

      Quando já não tiver

      forças-sonho para alimentá-la,

      então ela se vai

      como muitas se vão —

      desencantadas:

      sem a seiva do sonho,

      os sais daquela utopia

      que lhe davam motivo e vida.

      Quando ( essas ) se descobrem clones

      então se vão para qualquer caminho...

      Quando já não se tem um rumo,

      qualquer caminho serve

      pra nos levar a parte alguma.

      Só o sábio mantém acesa a chama —

      porque ele sabe pô-la

      nas mãos de Deus.

      LA 99/04

 

 

 

 

 

Passas, Ou Passas?

 

Aceitas, amada, umas passas,

ou passas?

Se passas, então vem cá, —

me dá um beijo

com gosto de arrebol.

Um abraço

com cheiro de jasmim.

Um sorriso

sujo de manga.

Um olhar com um jeito

bem sem-vergonha.

O mais, amada,

a gente faz

entre lembranças passas...

Ou passas?

LA 99/04

 

 

 

 

Amar Com Amor

 

      Amor disse que já não pescava —

      a lagoa tinha secado.

    E o rio? — lhe perguntaram.

    O rio só dá piranhas.

    E não dá pra comer?

    Que dá, dá, mas o bicho é fera.

    E o mar?

    O mar se abriu para Moisés.

    Mas já fechou sobre Faraó.

    E isso espantou os peixes.

    Pescar onde, então, amor?

    Pescar mulher no banho.

    Mas isto é estupro!

    Não porque encarno no parceiro dela

      e a isso ( com muito chique )

      se chama amar com amor.

      LA 99/04

 

 

 

 

        

Um Outro Clima

 

Os sinos.

Os sinos lá em nós.

Natal canta cor de estrela

no coração da gente.

O Verbo Santo

nos abençoe,

insufle em nós

a sua natureza

e nos transforme

segundo o sonho do Pai

e o ministério do Espírito.

 

Ouro, incenso e mirra

agora fluem

por nossas vidas Nele.

 

Nos quebrantamos:

quebramos as nozes

dos nossos corações.

Sem suas duras cascas

nos veremos uns nos outros

como Um visto em muitos:

nossas nozes

tornam-se nós...

e nós, — um só entendimento.

(Quem não tem noz

a encontrará em nós.)

 

Repicam sinos

cor de alegria.

Alegria

que é a força do Senhor

em nós.

E todos sentem

que nesses dias

paz e unidade

têm seu espaço:

táteis, palpáveis —

a vida fica abraçável.

Um outro clima.

A esperança tem gosto e cheiro —

e fortalece.

As promessas do reino

se fazem de carne e osso.

Que nos tornemos ‘noses’ —

sem casca.

LA /99/04

 

 

 

 

 

Quando Não For Isso

 

Quantas vezes

não busquei recompensa

ao sul de amar-te.

Repuxos, chafarizes,

ramos e brisas

lá em pensarmos ser felizes.

Viadutos e pontes,

metrôs de chegarmos

à conclusão de que o amor

só vale a pena quando é

algo-recíproco especial.

Quando não for isso,

amor é um diabo velho

gemendo a frustração

de ter caído do céu

e hoje bebendo cachaça

nos bordéis cheirando a cloacas.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Marginal

 

Marginal, claro que sim,

e sempre.

 

Marginal porque sim

ao diferente,

porque sim ao jamais-isto.

 

Marginal porque não à dor gratuita,

causada pelos lobos:

os donos do que é de todos.

 

Marginal, porque, da margem,

se vê com olhos que sentem,

enquanto que, do centro,

se vê o que a vista alcança.

 

Marginal, porque para a margem

é que empurram com os pés

os que incomodam —

os que dificilmente se omitem:

e fazem cair as máscaras,

as alvas peles de ovelhas,

as drogas e moedas falsas

dos fariseus

no meio-dia das ruas.

 

Marginal, porque não

aos senhores de ternos cinza,

mediunizados pelas trevas.

 

Marginal, porque sim

ao novo sol que reponta

dentro da consciência planetária.

LA 99/04

 

 

 

 

 

 

Além Da Inculcação

 

Não seremos os últimos.

Sempre haverá o que dizer

numa linguagem

que vá além da inculcação.

 

Um modo de dizer,

uma via transversa

à da civilização.

 

Uma voz sensitiva

caminhando entre os homens

e seu destino.

 

Um coração que saiba

não saber —

e que, por isso mesmo,

complemente a razão.

 

Um ver que busque repensar

a realidade vista

em visões e revisões.

 

Voz alerta em denunciar,

e transcender

e esperar-se lá na frente.

 

Pés que caminhem

por fora e dentro

da realidade.

 

Um jeito de sonhar

e transonhar —

sempre senhor dos próprios sonhos.

 

Um modo de emprenhar o escuro

com a luz do coração

para se proteger

na lucidez do dia.

 

Não seremos os últimos.

Haverá sempre o que dizer

numa linguagem

que vá além da inculcação.

LA 99/04