NA HASTE DO HOJE

Textos 3 - final

                      Laerte Antonio

 

 

 

 

De Viés

 

Não invejes os grandes.

São secretamente pequenos.

Nem os fortes —

tão igualmente fracos.

Nem os bons.

O maior deles broqueou

ao lhe chamarem assim.

Os corajosos?

Os covardes os incentivam.

Os felizes?

Não o pareceriam tanto,

pudesses ver os bastidores

do seu sorriso.

..............................................................

Por outro lado, os opostos

precisam ser preenchidos:

eles explicam

( ainda que de viés... )

o inexplicável.

 

Quando, por uns instantes,

conseguimos não fingir

( : moldar em barro a realidade... ) —

então nos vemos todos

( lá em nós dentro )

muito frágeis e medrosos

pelas areias de nós mesmos —

por aquele deserto

onde nenhuma voz tem som...

nenhum ouvido escuta...

olhar nenhum enxerga...

Por aquelas areias

bem entre ser e ser-se...

e o sorriso terrível

do sem-começo e o sem-fim...

 

Sim: não invejes.

Somos apenas diferentes

em nossas grandes diferenças

e miseráveis grandezas.

Por isso mesmo todos temos

aquele precioso dom

de inventar felicidades.

 

Há uma grandeza única

que pode fazer bem ao mundo:

a que se deixa partilhar —

rochedo que se transforma

em pedaços de solidariedade.

O resto? Não há resto. Há tudo:

a Vida,

que é o mestre;

e o viver,

que é o discípulo.

E a finalidade da existência

há de ser sempre a alegria.     

LA 12/002

 

 

 

 

Juízos-Avaliações

 

Entre fazer e não fazer

a consciência nos espera

para juízos

de que terapia nenhuma

poderá nos livrar.

 

A consciência não nos acusa,

apenas se vê-revela

de si para o Eu-Profundo

em nós.

São juízos-avaliações —

para essencialização da vida

nos pontos que exigirão

assesto da visão interior

com a exterior.

 

Sim, o discernimento

nos levará a fazer assim

ou de outro modo —

mas um fazer-melhoramento,

um fazer-alegria —

porque feito por mãos

que aprenderam que o seu fazer

faz para os outros

e para si.

LA 12/002

 

 

 

 

Por Toda A Estrada

 

Um dia Rosa me disse:

Me assume, que eu ensino

tuas dores a cantar

e as pedras do teu caminho

a recitar aqueles poemas

que nem sabias tê-los feito.

 

Me assume, e me desfolho

por toda a tua estrada

e meandros do teu ser.

Embaixo, tens meus serviços,

em cima, o meu coração.

Na boca, tens minha bênção,

no sorriso, minha alegria —

que será a nossa força.

Em minhas mãos tens os sonhos

feito do pó das estrelas

a constelar-nos a carne.

 

Embaixo, tens meus serviços,

em cima, tens minha mão:

entrelaça a tua na minha,

e iremos pelo jardim

dos bem-me-queres —

até que uma delas adoeça

e se torne saudade,

saudade cheirosa e quente

como o pão que te fazia.

LA 12/002

 

 

 

 

Cavalos E Pardais

 

Que a vida severina

( em todas as esquinas

e cafundós do mundo )

construa a si um desvio

quebrando-lhe a severidade.

 

Vida e morte sejam apenas

vida e morte —

dispensem seus predicados

de severinas:

aprendam a rir, cantar

e a coçar-se entre as pernas.

E com bastante humor

descasquem o ananás

antes de dá-lo a comer.

 

Severo seja o riso

ou o desprezo lúcido

ante toda severidade.

Sim: dividamos a severidade,

e há de sobrar um cantinho na boca

para zombar do cinismo

que toma o suco

e distribui a casca —

“educando”a maioria

a dar graças a Deus

por terem o bagaço.

Como os cavalos de luxo

de cujos excrementos

os pardais se alimentam.

 

Severo seja o deboche

que toda severidade

daqui por diante provoque.

LA 01/003

 

 

 

 

Sim: Leve, Mande Flores.

 

Leve flores para os mortos

a fim de que elas os chorem

por você.

Elas se entendem com a morte:

sim, sabem orvalhar

os olhos do silêncio.

E choram, choram até morrer.

 

Mande flores para os vivos

para que elas lhes digam,

no eco de sua graça,

o que sabemos muito mal

externar para eles.

Elas se entendem com a vida:

sua ternura tem um tom,

um timbre

que nos lembram o que a realidade

nos pisa com os dois pés...

e que elas catam do chão

e põem em cima da mesa —

bem ao lado dos nossos óculos.

Elas encantam,

encantam até se desfolhar —

no vaso cuja água trocamos

fingindo que nem ligamos...

 

( Por vezes as flores nos espantam:

são tão de carne e osso...

tão gente, tão pessoais —

que nos são: sim, elas são

o nosso lado de lá:

varandas com vitrais de sonho...

num espiar-se

trazido para fora... )

 

Sim, leve, mande flores —

não importa a quem nem porquê.

Leve flores apenas pelo sim

que elas não sabem omitir.

Leve flores, que, mesmo quando mentem,

dizem coisas tão belas,

que acreditamos verdadeiras.

LA 01/03

 

 

 

 

Depois

 

Depois do vento,

vem a tempestade.

Depois da tempestade,

aí, sim, meu amigo, —

vem a enxurrada!

...................................................

Mas você não precisa

estar lá.

LA 01/003

 

 

 

 

Lá Dos Lados Da Infância

 

Me lembro de suas dálias...

Ela só não as tinha

das cores que não havia.

Frágeis dálias, atadas

por suas mãos compridas

e magras

em finas hastes de bambu.

Quase todas espiavam

por cima do velho muro...

Tinham não sei o que de doloridas...

 

Me lembro da manjerona,

do coentro, da alfavaquinha,

do louro, do poró,

da salsa, da cebolinha....

tudo perto da cozinha,

mais o almeirão, o espinafre,

a couve-manteiga, a rúcula...

A parreira: alta, alta —

como aquela da raposa

de La Fontaine...

 

Mais à direita de quem entrava:

as bocas-de-leão,

as “esporinhas”,

os copos-de-leite...

os cravos vermelhosos,

cheirando a sonhos ruidosos...

As rosas cor-de-rosa,

iguais à filha da holandesa

da esquina: sempre à janela...

despetalando sorrisos,

com seu olhar

sempre fazendo tempo bom...

 

As malvas, malvas cheirosas,

como os sonhos da infância...

A melissa, a alfavaca,

o tomilho, a erva-doce...

o boldo, a hortelã, a cidreira...

a macela... A pariparoba

com suas folhas redondas

e enormes.

 

Me lembro das bromélias,

carnudochinhas e sensuais,

o sorriso molhado,

o olhar libidinoso...

com os pés se deliciando

junto às águas do tanque.

 

Me lembro das onze-horas,

das flores-de-maio...

das açucenas.

Do jasmineiro:

pequeno, esguio, cheiroso,

por vezes todo vestido

de linho branco... ( parecia-se

com a professorinha Duda,

que dava balas, beijos

e ainda contava histórias

de almas do outro mundo...

que André — corajoso ele! —

queria ver,

mas só passou vontade... ).

 

Dos amores-perfeitos,

dos bem-me-queres

( que minhas tias desfolhavam:

Bem-me... mal-me...

bem-me...

Minha avó ficava brava:

Sim, não plantava flores

pra ninguém estragar... ).

 

Ah! E aquelas fidalgas:

aquelas tais madressilvas —

tão belas nos canteiros

quanto belas colhidas

e nos vasos:

exibiam um arzinho

de eternas...

 

Das margaridas... ah, sim!

Me lembro com unção

das margaridas

com seu sorriso branquinho

a cirandar em torno

de um miolo dourado e fofo...

Quando atadas em feixes,

pareciam noivas felizes...

 

Do pé de beijos

com seus lábios vermelhos

e sensualmente grossos...

Da macieira toda mimos

bem ao lado

do manacá todo olhos...

 

As margaridas eram cuidadas

de um modo bem especial

pelas mãos frágeis e magras

de minha avó,

que  não raro as acariciavam...

Uma boa parte delas

era guardada para o meu avô,

que um dia foi levado

( tinha eu uns três anos... )

lá, bem lá para trás da Estação Velha —

bem mais longe do que agüentavam minhas pernas...

E eu fiquei com o seu lado na “camona”,

onde aprendi a rezar em italiano

e a ouvir ( entre a vigília e o sono ) minha avó

conversando com Deus e com a Mãe de Seu Filho...

até ( aos seis anos? ) me arrebatarem

para longe das histórias

que nunca ninguém jamais em tempo nenhum

saberia contar melhor

e fazer tão verdadeiras.

......................................................................................................

As margaridas

com seu jeito de medrosas,

deliciosamente ingênuas —

frágeis, esguias,

em suas pernas compridas...

Pareciam ter vergonha

de dançar com o vento...

Eram o tesouro dos canteiros:

o zelo, a ternura de minha avó...

............................................................................................

O pé de beijo

( o hibisco repolhudo )

chorava à toa, à toa...

nem precisava de vento —

qualquer brisa

o fazia debulhar-se...

Parecia a minha avó.

...........................................................................

 

Nos fundos, o quintal-pomar.

Mãos caprichosas dispuseram

geometricamente cada planta:

à direita descendo —

a manga-espada, a laranja-ribeirão,

o caju amarelo, a pitanga,

a lima-da-pérsia.

Bem no fundo, à direita de quem sobe:

a fruta-do-conde, o pêssego,

a tangerina, o limão-cravo,

a laranja-baiana

( com seu umbigo atrevido... ).

De cima, descendo para a Rua do Bosque,

nove belas matronas: quatro à esquerda

e cinco à direita. Altas e fortes,

eu cavalgava em seus flexíveis braços...

( Fiz nelas minhas primeiras viagens psíquicas...)

Ao menos uma vez por ano essas senhoras

vestiam-se de um longo negro —

desde o pescoço até os pés...

Não sabíamos qual das nove criaturas

sabia ser mais doce...

Sim: era divino estalar na boca

as suas jabuticabas.

 

À esquerda, o galinheiro,

coberto de folhas-de-zinco.

Lembro que as galinhas cantavam bonito,

alto e longamente,

logo após porem os seus ovos.

...........................................................................................

 

A casa ainda está

a agüentar-se nas velhas pernas...

Todos ( quase todos ) os que a habitavam

foram provar daquele chocolate

que a Terrinha nos reserva

lá pra cima: um pouco antes e à esquerda

da Chácara da Roseira...

Chocô que a gente come

até ficar branquinho,

tangendo liras por detrás das brisas...

 

A casa ainda está

sobre suas pernas bambas...

Ainda está:

Praça do Fórum, 66.

Aí existiram margaridas

de pernas compridas como as do arlequim

anunciando o Espetáculo

de logo mais à noite...

( O circo era armado bem à nossa frente,

no então Largo da Boa Morte. )

Sim: a casa ainda está,

e acaba de ser vendida.

........................................................................................

Foi o Armandinho, vó,

o filho da tia Hortênsia

( que deve estar com a senhora ),

foi ele que vendeu a “nossa” casa...

Mas suas flores, minha vó,

as suas flores antigas

( muito antes de fazerem sobre elas

a área da frente e a garagem ) —

essas estão a salvo:

eu as pus num lugar,

num lugar em mim tão lá dentro,

que ninguém, nada

deste mundo pode tocar nelas...

E se um dia,

se um dia a gente se encontrar

nalgum cantinho

desse infinito de Deuspai —

depois de lhe beijar as mãos,

eu lhe deponho nelas

todas as flores da “ nossa” casa.

Inclusive as margaridas

que a senhora plantava

e amava —

naquela dimensão maior do amor,

numa historia que assim começa:

Era uma vez...

LA 01/003

 

 

 

 

Sem Dó

 

Não tendo estômago

de comer cru —

vais te dar mal.

Comerás cru:

sem compromisso

nem afeição.

Isso, meu caro,

é hoje lei.

.......................................................

Os delicados?

Pobres deles ou delas!

Têm de engolir

a coisa crua —

sem nenhum molho,

nem sonho ou lua.

E mesmo asssim,

comer, — só ensacado,

e a preço de mercado.

..................................................................

Mas nem por isso, meu Romeu,

esse  belíssimo jogo

corre o risco de acabar:

aprenderás a comer cru.

Guerra é guerra.

Dança é dança.

......................................................................

Além do mais,

aliás,

se a coisa ficar mais preta

( ou se quiseres: mais amarela ) —

a gente assobia

alguma coisa qualquer

coçando o fiofó,

sem dó.

LA 01/003

 

 

 

 

Esperansauriamente

 

Se a concretude irracional

é do tamanho

da abstração racional —

então é a hora de os ponteiros

fazerem o percurso inverso:

e não demora,

chega-se a nada.

Um nada transgênico

que está a envenenar o mundo.

( A cobra

há de morder o próprio rabo,

não para matar-se —

mas aplicar-se o antídoto

de seu próprio salvamento... )

 

A capacidade técnica

tem gerado

a incapacidade política —

e o homem dança — mambembe —

entre o possível

e o impossível —

ou melhor: entre o possível

do impossível.

...............................................................................

No entanto ( tem sido assim ),

é bom lembrar

que, no final, a desesperança

perde o des...

Aí um novo dia lagarteia.

Tem sido assim, e assim será.

LA 12/002

 

 

 

O. K.

 

Ter duas faces? Tudo bem.

Normal/normal.

O problema seria

ter três ou mais:

falo do peso físico.

Mas duas?

Coisa de nascença.

Uma de ver,

outra de preservar.

Tudo bem.

Uma de dar a bater,

outra de não estar lá.

Tudo normal.

 

Eis o equilíbrio —

prudência

e canja de galinha:

uma pra ser beijada,

outra pra ser cuspida.

..............................................................

Uma do mundo,

outra nossa.

Uma do pode,

a outra do não-pode.

........................................................................

Sim, uma de ver malandro,

outra de falar com santo

( que vive no outro mundo ).

Até aí, tudo bem.

Normal/normal.

É só clicar em OK.

...................................................................................

Ao mundo?

O meu beijo e o meu escarro.

...........................................................................

Imagine você: pensei que o mundo

tivesse voz e tamanho

para impedir

o massacre do Iraque

pela Doença do Norte.

Mas não: mais uma vez a esperança

mostrou-se menor que o medo.

LA 01/003

 

 

 

 

Arca De Ossos

 

Mais comunicações

com menos entendimento —

igual a estar parado

em meio a formigueiro.

Para os cheios de doçura,

a coisa é bem pior.

Mas não se perca a esperança —

a situação é preta,

mas de ossos branquinhos.

Ossos que ficarão por conta

das irracionalidades

da razão.

LA 01/03

 

 

 

 

Desconforto

 

O sonho do barraco

há de ser tornar-se casa

com cortinas e vidraças.

 

Claro que é um sonho incômodo,

mas os que não o sonham

haverão de compreender...

 

O sonho do barraco

faz um barulho de lata —

barulho de ensurdecer...

 

E os que ouvem em sua carne

os delírios do barraco

já estão a entender...

 

Desconforto de lá

tanto ( quanto? ) de cá —

é o sonho do barraco.

 

Um desconforto a tiracolo

que só fingem não carregar aqueles

que recusam a realidade...

 

Sim: o problema é que o homem

é um animal que sonha

acordado.

LA 01/003

 

 

         

 

Acalantos De Ver

 

Em geral vemos

o que queremos ver.

O que gostamos de ver.

Aliás, não temos pressa

de enxergar esse ver

mudado em outra coisa —

já não tão agradável

porque não conivente

com velhos ângulos de ver...

 

Sim, quase sempre, vemos

o que nos apraz ver:

um ver todo moldado

à nossa imagem-semelhança —

ver que se delicia

com o que éramos e somos.

 

Em geral nosso ver

não sabe se graduar —

isto é: mudar a realidade

num ver-em-revisões:

assim,

assim-assim...

e... ah!... já não é —

senão a sombra de uma tarde

que virou noite

e ei-la já manhã —

a imprimir depressa

suas pegadas no azul:

num tempo-modo-ver

que acalenta os chiliques

e tiques do momento.

 

Uma pitada de humor,

ou riso

não raro desembaça as lentes.

LA 01/003

 

 

         

 

Um Nome

 

Se “pronunciava” Teresa,

sentia um cheiro bom de flor.

Pronunciando Rosa,

uma brisa de muitas cores

desfolhava-se lhe aos olhos...

Sim: Teresa-Rosa

era-lhe aroma desfolhado

em sonho-pétalas...

Isto é: em um bem-lhe-queria.

Sobretudo porque Teresa-Rosa

era o nome de sua mãe.

LA 01/003

 

 

 

     

O que Temos Nas Mãos

 

Tudo passa tão depressa,

que amanhã já não dá tempo.

O hoje é o ponto sazonal,

ou nuclear

de se plantar-colher.

 

Inventemos, minha Rosa,

a nossa felicidade

em meio à grande desventura

que o mundo se recicla

a cada dia.

 

Tudo passa tão depressa,

que quando vemos, não vemos!

Nós e as coisas

já não formamos ângulo...

 

Façamos, minha Amiga,

o nosso doce de goiaba

( que vale pelo cheiro! ):

retiremos os bichos de ontem

e depuremos o que serve —

o que temos nas mãos.

 

O hoje é o doce

e a boca de degustá-lo.

Se lá fora, minha Rosa,

estalam raios —

faz bom tempo no teu olhar.

LA 01/003

 

 

 

 

Raios A Partam!

 

De tempos em tempos,

a árvore social

é abatida por terríveis raios.

Mas, não demora, brota,

teimosa, brota —

e a esperança verdeja.

 

Parece que o homem não sabe mesmo caminhar

sem vez ou outra

ter de

quebrar-se

todo.

É tardo no aprender

( e burro por querer )

esse animal genial,

feito de barro constelado...

 

É que a consciência de cardume,

além de sempre imoral,

jamais pode ter um rumo,

nem muito menos

um sentido-finalidade.

Raios a partam! —

essa consciência de cardume.

LA 01/003

 

 

 

 

Amarrando Com Cipó

 

A casca, que protege,

também impede ver —

e a vida quer-nos sem luvas

colhendo-a — rosa do hoje —

entre fiéis espinhos.

 

Luz, que muito ilumina,

tanto assim queima e cega —

por isso há de ser interior

o verdadeiro ver —

chapinhando de viés

lá em alma.

 

Pegar a coisa ela-mesma

é tão-apenas tê-la.

Já pegá-la pelas penas

ou pelo vôo —

é sabê-la em gamas-luz

de sua essência.

 

Entre ir e chegar

há que haver o porto Nunca

pra que possamos

chegar sempre a parte alguma —

e a vida ser

um modo-em-nós-de-viajar.

 

Saber que se vai morrer

não seria isso bastante

para se pleitear algum troco

( antes de se pagar a dívida ) —

algum troco em felicidade?

 

Molhar os pés num chafariz,

para o adulto é coisa tola —

para a criança é ser feliz.

Jogar fora as doidices,

as bobeiras, os chiliques —

só depois que alguém nos der

algo melhor.

 

Sentemos comodamente,

e nos ponhamos a coçar a paciência —

enquanto os outros nos ensinam

como ser maravilhosos como eles.

....................................................................................

O riso é um dos maiores tesouros

que o ser humano conquistou,

depois ( é claro! ) do seu cônjuge —

que é quem, de perto, o suporta.

LA 01/003

 

 

 

 

Dialética Do Cinismo

 

Meu coração ouviu, ouviu, e disse:

Já conhecemos essas veleidades —

tinham o nome de felicidades:

abismo atapetado de meiguice...

 

Meu coração olhou, qual sempre visse:

Já te esqueceste das fidelidades

juradas e já feitas falsidades

com um fofo sorriso e gabolice?

 

E todo o dialético cinismo

que nos deram: com todo o moralismo —

valores, credos, medos, leis e o diabo?

 

Grande panela a arder, a arder sem cabo...

...............................................................................................

Meu coração olhou-me, olhou-me, e disse:

Feliz quem excretar tanta doidice!

LA 01/003

 

 

 

 

Peões

 

Duro é instalar-se no vento

e lidar com a realidade

como se ela tivesse chão —

e não chãos de inter-reais:

gamas em que viver

é penetrá-las

através de nós dentro —

num ir e vir entre o passado,

o houvera sido, e o seria

moldando em barro-labirinto

nosso mundo cárneo-psico-mental

montando a seta do devir...

 

Duro é instalar-se no vento,

esporear o invisível

e manter-se na montaria

que jamais deixou de ser nós mesmos.

 

Sim:

somos peões da realidade

e seus interplurais —

onde se aprende a levantar-se

a cada queda,

e a cada ver-se desfeito

dispara-se de imediato

a busca de um refazer-se —

urgente ou mais que urgente:

o renascer de tantas mortes.

LA 01/003

 

 

 

 

Ou.. Ou...

( Prancha )

 

E pobre, mais que pobre:

infeliz

de quem não conseguir desenterrar-se

desse tempo,  já morto, —

chamado depressão:

tempo de perdas

de que o doente

não consegue abrir mão.

 

Ou convertemos esse tempo

( lá em nosso entendimento )

em perdas-ganhos,

e finalmente em ganhos

( pelo nosso discernir ) —

e então vencemos a morte,

ou morremos sufocados

sob o peso do corpo

desse tempo morto —

tempo do teria

de ter dado certo...

Do seria

que não foi.

LA 01/003

 

 

 

 

Xite!

 

Xite, tempo! Vê se passa

como as tuas folhas mortas

já passaram.

Xite, tempo! Sê apenas

o esterco de outro tempo.

 

Como as tuas folhas mortas,

sê apenas húmus

no sorriso

de outras folhas-tempo,

de outro tempo-folhas.

 

Xite, tempo!

Se tuas flores passaram,

por que não podes passar

com os teus esqueletos,

tuas crenças e ridículos?

 

Xite, tempo! Enterraste

as nossas felicidades,

os nossos sonhos —

e agora estás sozinho:

morto e só —

e insepulto...

Ah, quem te dera ser

o coveiro de ti mesmo!

 

Xite, tempo! Não seremos

os teus fantasmas.

LA 01/003

 

 

 

 

Deixar Passar

 

Deixa rugir, deixa rosnar.

Vê de soslaio, bem de lado —

assim as coisas não te esmagam.

 

Transpassa,

e deixa transpassar —

assim, não mais que assim:

como um fantasma...

 

Jamais peitar,

ou segurar...

As mãos abertas,

bem abertas...

Deixar passar.

 

O mais? Nem há, —

pra quem aprende

a transpassar

e a se deixar

como casca de cobra:

já não estar

senão em ser-se.

LA 01/003

 

 

 

 

Três Terços

 

Enquanto o medo

for maior que a esperança,

o que se espera

não pode acontecer.

 

Esperar no homem

é viver desenganado.

 

Esperar em Deus

é viver dividido:

o tempo Dele

não é o nosso.

 

De sorte que esperar

é sempre um ato

de ousadia —

ou seja, é alcançar

num tempo

que ainda não é.

.......................................................

Por outro lado, a esperança

é um modo de o ser

manter-se sobre si mesmo:

não esboroar-se

no auto-engano.

 

A fé é o atalho,

a esperança: o ir por ele,

o amor: o encontro

com aquilo por que se vai.

Qualquer um desses três

    isolado —

será apenas um terço

do que nos falta.

Sim: o homem é trino

e trino pode ser seu modo

de chegar.

LA 01/003

 

 

 

 

Evoco A Ave...

 

Evoco a ave, a ave não, — seu vôo,

à sombra virtual de suas penas...

Lembrar-te é esse vôo, entre dezenas

de cânticos liriais nos quais ecôo...

 

Ou cânticos carnais em que me escôo

por entre o sopro de florais avenas...

Lembrar-te é o gozo alado de falenas

em torno à luz a lhes queimar o vôo...

 

Ou vôos de sensações num pensamento

embrionado de luz num céu cinzento

sonhando amoras no romper da aurora...

 

Ou auroras colhidas numa taça

que brinda no hialino da vidraça

com o vento ( de lembrar-te ) a uivar lá fora...

LA 01/003

 

 

 

 

Porque-Sim

 

Depressão é memória

desse tempo que não passa —

um tempo represado dentro em nós —

de cujas escuras águas

ou sombrios labirintos

emergem mil e mil fantasmas —

ninando nos seus braços

as nossas perdas...

As perdas do que amávamos —

querendo ter conosco

o que faz tempo já morreu —

a vagar insepulto

pelas entranhas desse tempo morto

a cheirar mal em nosso mundo dentro.

 

Mister abrir mão

desse futuro do passado:

o que seria mas não foi,

ou foi só uns capítulos...

Necessário abrir mão

do que nunca nos pertenceu —

aliás, nem a nossa vida

é nossa,

tanto menos o que seria de outros:

ou que dependeria

de seu talante.

 

Sim: quando tivermos aberto mão

do que nunca foi nosso —

então estaremos livres do auto-engano —

já não seremos reféns de nós mesmos,

e o que é bem mais ridículo:

de algo morto —

de algo que o nosso egoísmo,

batendo os pés,

queria-e-quer porque-sim

e porque-sim.

LA 01/003

 

 

 

 

Antidepressivo

 

Temos de aprender a lidar

com a falta de sentido,

isto é: inventar algum —

ou fingir

que temos alguma importância

para alguém,

para a vida,

pra alguma coisa.

 

Temos de aprender felicidade

em meio ao seu contrário —

e vivê-la como a criança:

chupando pirulito,

jogando vídeo game,

tratando a vida

como se ela fosse de confiança...

 

Uma felicidade a seco:

sem drogas químicas ou carnais —

que nos tirariam o couro

e fariam geléia

de toda a nossa medula.

 

Sim: extrair felicidade

da falta dela.

Saborear o amor

em meio à indiferença.

Ter o caminho e a luz

da fé que não cobra nada.

Viver a esperança

com a sensação

de já ter alcançado...

Degustar a alegria

sem precisar de motivo.

 

Quanto às perdas e ganhos —

tratar tais impostores

como sendo seus senhores:

jamais como seus escravos.

..........................................................

Perdas e ganhos —

a essência mesma da vida

em seu reciclar eterno.

LA 01/003

 

 

 

 

            Oil War

 

Em tempos de incerteza, Zefa, um dedo

é mais que a mão, a mão bem mais que o corpo...

São tempos de tocaia e muito medo:

tempos de fundo falso e vil escopo.

 

Sim, tempos de incerteza: um cheiro azedo,

que, enrodilhado, sobe até o topo

do nariz que o percebe: o miasma tredo

da Guerra do Óleo... ( Onde o veneno e o copo?... )

 

Um nojo-luto-náusea de se ver

que o mundo não tem voz para impedir

que Mr. Forty-five ordene o ataque...

 

Bush com seu Sabujo vão comer

brioches de leite negro... e deglutir

a carne, o óleo, a vida: os bens do Iraque.

LA 02/003

 

 

 

 

Quando A Tarde Descer...

 

Quando a tarde descer e alguém me procurar,

diga que não estou: nem cá nem acolá...

E assim sendo tratada, há então de pensar

que busco algum remédio ao que jamais terá.

 

Quando a tarde descer e o caminho esfriar,

lembrarei tua voz com gosto de maná...

Já não serei tão só: pois algo há de então cantar

lá no norte do ser que, se não é, já está...

 

Quando a tarde descer, traga em si a lisura

de fingir não notar que da infelicidade

foi que sempre extraí um pouco de ventura...

 

Quando a tarde descer, dissolva, com piedade,

minha vida e universo em suas negras fráguas...

enquanto vou pra casa andando sobre as águas...

LA 01/003

 

 

 

 

Sariebacitubaj

 

Outubro. Ei-las vestindo longo escuro,

gesto todo olhos: negros e brilhantes...

Essas senhoras sempre tão galantes,

altivas a espiar além do muro...

 

Dançantes... e num ponto assim maduro,

deixam bocas, sentidos marejantes...

Convidam a aventuras degustantes

por entre as rendas de seu longo escuro...

 

Mil olhos, mil doçuras, mil detalhes:

tais senhoras convidam a grimpar-lhes

o corpo todo favos, doces olhos...

 

Melhor é saboreá-las nos refolhos

dos braços... que ficar doido esperando...

Dai graças, vós que ainda estais grimpando.

LA 01/003

 

 

 

 

Urgente, Urgentemente Nada

 

Ah, sim!

Melhor comer capim

do que sua raiz.

O mais, tudo se ajeita:

pouco mais pra esquerda,

dois dedos pra direita...

Tudo uma merda:

sem liberdade,

tudo uma anteperda...

mas se ela existe —

a gente se sujeita...

se amarra...

e agüenta.

( Engraçado, não é mesmo?... )

A gente tenta,

e inventa —

tão fácil como venta.

A gente canta

uma canção pelo nariz,

e sabe que é infeliz —

por um triz...

Sempre por um triz

daquilo que se quis.

( Tomas um chá de anis

como se fora

uma poção filosofal —

coisa de hoje e de outrora

que não faz bem nem mal? )

.........................................................

Ah, sim!

Melhor comer capim

( até Nabuco... o fez,

e  olha que era rei... ).

Comer capim

e ser feliz,

não por um triz —

mas por beber

num chafariz

              e molhar bem as mãos, o rosto,

              molhar com gosto

os pés

daquela criança

( sempre a rir )

que disfar

ça

da

mente

ainda sabermos curtir.

LA 01/003

 

 

 

 

Balanço

( Ou Quase )

 

Agora, sim, estamos bem —

estamos livres:

livres de nós, do mundo...

ou bem mais livres.

E adoramos isto

o tempo todo,

ou seja: quase isto,

e quase sempre.

 

Olhando atrás,

vemos que conseguimos...

Sim, conseguimos muito —

só não fomos felizes,

isto é: quase fomos.

 

Fizemos tudo direitinho.

Deu tudo certo.

Quase tudo.

Sim, quase tudo certo.

Só não temos certeza

de que vão concordar conosco

em que fizemos tudo direitinho.

 

Cantamos hinos,

glórias e aleluias.

Decoramos versículos,

salmos, provérbios,

dissemos mil e mil améns.

Os de outras igrejas

diziam-nos que — para sermos salvos —

tínhamos de ir para as deles...

 

Tínhamos muita esperança,

              quer dizer: quase muita,

mas dava para não desesperar:

não tomar muita chuva...

nem sentir muito frio por dentro.

 

Estudamos bastante.

Boas escolas, bons cursos.

Lemos bons livros. Muitos.

Sempre escrevíamos bastante.

Líamos-escrevíamos —

era uma droga sempre à mão,

e a única que nos interessava.

Um apego à palavra, ao verbo.

Uma quase obsessão.

Se bem que invejávamos os urubus —

que pingavam os ii lá em cima no céu azul...

comiam o que outros bichos

não tinham moela para deglutir

e eram livres, livres sem saber...

e belos, quanto mais longe, mais longe... belos,

belos navegadores...

 

Acreditávamos em nossos pais,

quando nos profetizavam

um futuro brilhante,

afirmando que seríamos felizes —

e que havíamos de vencer...

Só precisávamos lutar.

Sim: acreditar neles

não foi a pior coisa que fizemos.

 

E muitas, muitas outras coisas

que amávamos, adorávamos fazer —

isto é: quase amávamos, quase adorávamos.

E quando não estávamos bem,

pintávamos as paredes de dentro...

lavávamos as cortinas...

rasgávamos fotografias...

E víamos que quando éramos chatos,

era porque estávamos sendo

razoáveis demais...

Víamos também que a dialética,

não raro, transforma a mentira em verdade

e a verdade em mentira...

e que as pessoas não ligam para nada,

a não ser para elas mesmas.

Mas querem ser felizes,

felizes de qualquer jeito.

Obsessão cultural

( talvez também genética )

de rastejar pelo Sucesso.

Vai ver que sim...

 

E vivíamos em paz

( quase em paz ) —

sabíamos que a vida

não tem nada mais interessante

que a própria vida,

e que tanto o grilo de Fénelon

como Gêngis Khan

são para ela criaturas.                            

LA 01/003

 

 

 

 

Sonhonarrar-Se

 

É preciso falar e refalar —

água a fluir por nós bem livremente...

Esse sonhonarrar-se corpo e mente —

catártico dizer e fabular.

 

É preciso contar-se e recontar

os contos em recontos: de repente

transnarrados por nós-em nós, bem rente

ao real de reais: mil águas de um só mar.

 

Ler-se-escrever-se em sonho-criatura

de um reescrever-se e ler-se em transleitura —

palimpsesto em escamas a narrar-se...

 

Os dias no moinho de dizer

e padejar o real lá na interface

do ser a ser-se em verbotranscender.

LA 01/003

 

 

 

 

Rosa Incutida

 

Quem pulou de botinas

em meus canteiros

e esmigalhou a rosa

que houvera de ser minha?

 

Ah, essa rosa —

a mais encarecida

de todas,

porque regada com meus sonhos,

porque orvalhada com a esperança

de erigir com suas pétalas

a ventura dos meus dias...

 

Ah, essa rosa —

quem pulou de botina

bem em cima

da rosa que era minha?

 

E como riram os amigos!

E como riu o mundo!

E como a própria vida riu

da minha dor!

Da minha dor

que só doeu

por eu pensar que minha rosa

era minha.

 

Rosa incutida,

alma ferida —

sorri a vida,

quase esquecida...

nesse fazer de conta.

 

Havemos de aprender

que tudo é brincadeira.

LA 01/003

 

 

 

 

Geniais Bocós

 

Vade retro, filósofos enfermos!

Ide fazer filosofia

( com a liberdade alheia )

lá na casa da mãe Joana.

Pro quinto, seus moleques onanistas,

pro quinto!

Por que não dais um nó no pinto

do Édipo em vós?

Geniais bocós.

 

Em geral, o homem sabe, sim, senhores,

o que fazer com sua liberdade.

Desimpedido,

não vai ficar, não, senhores,

escravo de ser livres —

se os donos lhe permitem

conquistar cidadania,

saberá o que fazer

de sua liberdade

( claro que não fará

o que desejaríeis que fizesse... )

mas, ao seu jeito e modo,

e em parceria com a vida...

será capaz de criar situações novas

e recriar-se a si mesmo:

por isso é um homem —

sabe sonhar acordado.

LA 01/003

 

 

 

 

Cinismo

 

Te ensinaram que era assim...

Um assim

feito da cultura,

do meio,

dos hábitos,

dos genes biopsíquicos —

e foste ser assim...

E investiste o bom, o belo, o precioso

de tua vida neste assim,

neste fazer-viver-assim...

 

Não demorou, teus olhos te disseram

que não era mais assim...

( ou que nunca foi assim... )

Que assim era só de fazer de conta...

Não devia ter sido levado a sério...

ou tão a sério...

Que os tempos já não sustentavam,

( ou nunca sustentaram )

o que te haviam dito.

Que nada era mais assim...

nem nunca fora sério assim...

.............................................................................

 

E aí, e agora: que já não tinhas

nem lugar nem hora?

Agora que “teus” princípios e valores

já não eram nem valiam?...

 

Agora

era aprender o riso,

ou perecer...

Comeste o pão que te amassaram

com suas crenças e costumes,

com seu pensar e ver as coisas...

O pão que te amassaram

e que o Cinismo te coseu.

 

Mas conseguiste,

a duras penas conseguiste

sobreviver ao tempo,

a ti, ao cinismo social, à morte...

Sim, numa luta de vida ou morte,

lá em degraus de seres —

conseguiste aprender o riso...

E viste ( ainda bem que a tempo!... )

que quando, no final,

nos sobra o riso como saldo —

tudo terá valido a pena.

LA 02/003

 

 

 

 

Torpe

 

Dá-me, Senhor, amar uma mulher

respeitavelmente vil

e suja

no nome e na alma,

cujo caráter adore não prestar.

E ajuda-me, Senhor, sofrê-la,

gozá-la

nesse amá-la envilecido —

entrar de parafuso nesse amor,

mergulhar de cabeça em suas carnes,

e chafurdar, fuçar, enlamear:

manchar-me todo

nesse tesão cor-de-conhaque —

porres, mil e mil porres

e vômitos, mil e mil de champanhe,

com o erotismo e a luxúria

de pratos sofisticados,

caríssimos.

Carros importados,

restaurantes

de mamíferos bajulados...

com luz de velas

fazendo tremeluzir

jóias falsas

( dadas como legítimas... )

e sombreando roupas que ressaltem

a carne e seus gemidos...

Sorrisos hi-tech —

acima de quaisquer situações...

 

Sim, dá-me amar, Senhor,

um amor glamouroso, louco,

e tão maravilhoso

que não dê certo.

Nem dure,

senão o suficiente

para ter sido mais um caso

despudoradamente belo,

fantasticamente vil

e torpe.

Sim: torpe, vil e torpe,

mas nem por isso menos belo...

Ao contrário: terrivelmente belo —

belo porque, tão-logo amado,

morto.

Para todo o sempre morto:

lindo-findo —

maravilhosamente morto.

LA 02/003

 

 

 

 

Uma Estratégia

 

Nossos pais sempre sabiam

o que era bom,

bom e melhor para nós.

Depois vimos que não —

apesar da máscara de felizes,

eles também não davam,

não davam tão certo assim

com o mundo nem em casa.

Tampouco nós.

E os avós,

e os bisa...

e os...

 

Nossos pais fabulavam

e acreditavam,

criam em suas fábulas —

e as transmitiam para nós:

cheiiiinhas

de seu fingir-verdade...

E o bom de tudo

é que morreram pensando

que eram felizes...

E se pensaram assim,

assim foram.

Uma estratégia de soslaio.

 

O bom,

o melhor

por vezes não se encaixam no pé...

sequer são do tamanho

de alma-coração.

 

O bom,

o melhor

são bom e melhor

quando estão lá —

lá: naquele lugar e hora

que se confundem

com coisas nossas.

Aí, sim: acontece

o que não depende apenas de nós.

 

Quando fazer nos foge às mãos,

pensar que-sim

( dentro do que sonhamos )

ajuda bem.                                             

LA 02/003

 

 

 

 

Ainda Bem

 

A mentira

é o que temos de melhor

sobre a poeira do momento.

Se ela não vale a pena,

faz valer-se —

e de tal sorte que

    negá-la —

é fazer-lhe a apologia.

 

Respira fundo três vezes,

depois, prende a respiração:

assim, assim... muito bem,

e, com ela assim presa,

conta até mil... então, —

conhecerás a verdade

pelo avesso da mentira.

 

Não, não é que a mentira

é o melhor que temos —

mas o que temos de melhor.

 

E ainda bem

que o que tivermos de mais nosso,

ou de mais belo

será sempre mentira...

Ou não será?

Não: será sim.

 

Assim também a rosa,

que não sabe somar,

há de pensar que a eternidade

( rosa pensa? Sim: esta pensa... )

seja apenas um dia.

LA 03/003

 

 

 

 

Não Quero Não...

 

Não quero não, Rosinha, o tédio,

mas, sim, o teu remédio.

Nem quero a seriedade

medieval,

tampouco a hilaridade

trivial-boçal.

Nem a mentira ou a verdade...

Aliás, o que faria,

isto mesmo: o que fazer

com essas duas impostoras?

.........................................................................

Antes quero a alegria

que cresce, sem saber,

entre os desvãos das horas...

Nem muito mais preciso

que do meu riso

e teu remédio

para espantar o assédio

do coisa-ruim do tédio.

 

Se a vida, minha Rosa,

nos sonega o seu sentido,

seja, pois, a falta deste

todo o sentido

mais a alegria, prenda minha,

que tu me dás e deste.

LA 03/003

 

 

 

 

Bom É...

 

Bom é passar, meu Irmão:

assim as coisas loucas

vão tendo alguma razão...

 

Assim as coisas insensatas

vão ganhando sentido

entre o ruir das colunatas...

 

Bom é passar sem temer,

sabendo que passar é o círculo

por onde transita o ser.

 

Bom é saber que o passar

são as águas lá em nós

marulhando para o Mar.

 

Assim podemos nos sentir

ligados a quanto existe —

afluentes do Grande Fluir.

 

Bom é passar solto, leve

por essa estrada em nós

eternamente breve...

 

Assim o próprio jamais

será o voltar para casa

do lado leste do cais...

LA 03/003

 

 

 

 

( Em Nós )

 

Podia... mas não foi.

Fora bom,

mas não aconteceu...

...................................................................

Sem a sujeição-liberdade

à Providência,

sem a Vontade e o Ousar,

só nos resta estar nas mãos

do Destino.

Uma vontade casada

com a Vontade de Deus

faz criar o caminho

( lá em nós )

de volta para casa

( lá em nós ).

 

Quem percebeu o Grande Equívoco,

não se debate mais:

entrega a sua vida

nas mãos do Oleiro

pra que Ele quebre e reconstrua

( com nossas mãos )

um vaso novo:

pois capaz de aparar

a água daquele rio

cujo marulho é um glória,

um hosana

que flui de nós

para a cidade de Deus

( em nós ).

LA 03/003

 

 

 

 

Vaidades

 

Não quer uma mulher, quer um harém.

Pra quê? Pra distribuir entre os amigos —

putos e putas, jovens ou antigos,

galando em cacarejos num vaivém...

 

Por que só uma só quando se tem

o regalo de ver vários umbigos

rotativos: qual vento sobre trigos

ondeando, ciciando aqui e além?

 

Só uma só é pouco, muito pouco

pra quem não quer nenhuma... No serralho,

tem-se todas e se ama sem escopo...

 

E ainda se brinca de chamar vaidades

tais excessos: figuras de baralho...

Vaidades de inventar felicidades.

LA 03/003

 

 

 

 

Dons Choravam...

 

Temperatura amena, chuva fina...

Uma vontade de comer goiaba...

Uma doce loucura, e mais: divina

em meio a um velho sonho que desaba...

 

Uma paixão, prima do amor ( que sina! ),

uma lembrança que jamais se acaba...

uma cena agarrada na retina...

e o prensar de uva ou de jabuticaba...

 

E fresca feito a brisa e tão menina:

lembrança ao sol, molhada de piscina,

e o vento pelos crótons que choravam...

 

Choravam o princípio de um outono —

uma felicidade, um bem sem dono...

Dons choravam o amor que não amaram...

LA 03/003

 

 

 

 

Já Sabendo Que A Noite...

 

Já sabendo que a noite não demora,

sorvo com os pés os derradeiros grãos

de luz : a estrada faz-se cor de amora...

e sopro da alma o pó de ásperos chãos.

 

Sim: sabendo que a noite já se arvora,

com pomos-astros entre a alma e as mãos,

necessário colher nos vãos da hora

o trigo,  as uvas, os maduros grãos...

 

e metabolizá-los em consciência —

a essencialização da própria essência

a modular-se lá em sopro-ser...

 

A vida caberá dentro de um ponto(.),

e toda a sua glória e seu reconto

há de ser não lembrar e não saber...

LA 03/003

 

 

 

 

Sem Nome...

 

Eis — em Política,

 em Geopolítica —

está criado:

AI ( antes do Iraque ),

DI ( depois do Iraque ).

 

Uma arrogância perversa:

Arrogância lesa-Normas-Leis-Direito —

lesa-Justiça,

lesa-Patrimônio-Moral-Judicial-

-Cultural-Civilizatório-Humano...

Arrogância abominável,

lesa-Antropologia,

que a História contará-recontará

por homens abomináveis

e de caráter.

Que marcará com ferrete

de cowboy

a Consciência do Planeta.

Arrogância abominável

que joga fora

as conquistas

do Contrato Social-Civilizatório-Humano —

a exigir Redefinição

do Definido tripudiado.

Lei do cacete, da porrada, do mais forte.

Lei que apregoa e impinge

o canivete —

mas usa a lâmina-laser...

Paranóia a matar junto com Deus.

Discurso para chacinar,

degolar, trucidar, queimar,

explodir, incinerar —

terminando em apóstrofe

esquizofrênica

ao Criador:

“God Bless Our Nation!”

 

Dialética do cinismo:

A mentira-verdade,

a verdade-mentira.

 

Está criado — de fato —

o DEMOCRATISMO

a dominar

e vergastar

democracias.

LA ( Sem Data... )

 

 

 

 

Missiva Telepática

 

Meu amigo, que bom: tu já não vês,

nem já tens coração pra te bater...

Já não gozas da vida os seus chiquês

nem te coças de tédio ou desprazer....

 

Meu amigo, que bom: já não descrês

do que te fora ópio, ao menos, crer...

Já não tens de engolir os teus purês

das batatas sociais do combater...

 

Meu amigo, que bom: tu já te foste.

A vida continua o mesmo poste

mijado de cachorros... Tudo igual —

 

mendigos-pobres-ricos, pela esquerda;

pela direita: inverte-se o punhal...

Tudo igual, muito chato, a mesma merda.

LA 03/003

 

 

 

 

Ouro Do Tempo

 

    O ouro do tempo...

              sabes onde se encontra?

    Não, eu não sei,

mas, se soubesse,

não te diria...

De nada te valeria —

uma vez que o ouro do tempo

é o quanto conseguiste

atualizar o tempo morto

em tempo vivo —

mecanismo que ativa

com teu eu atual

todos os teus outros “eus”, que agora

serão personalizados

pelo que fazes-crês —

sim, serão personados

pela tua persona atual:

a que é — agora — em ti:

a que, agora-aqui, é o que é.

....................................................................

Não sei se percebeste:

Se reencarnação existe

( ou existisse, fique calmo! ),

tudo está bem aí —

no teu eu-hodierno:

na consciência que és,

todo o teu passado é forro —

no teu amor,

na tua fé e esperança.

Sim, escolhe:

é carma ou Cristo.

LA 03/003

 

 

 

 

Biombos

 

Se te escondes atrás do teu fazer,

empilharás teus dias sobre feitos

passados e futuros: pois refeitos

entre biombos de quem não quer se ver...

 

Se te escondes atrás de ópios-ter,

acumular vai se tornando pleitos

de “honra” e “conquista”: mais e mais sujeitos

aos biombos de quem teme se perder...

 

Se te escondes atrás do teu saber,

como é que vais deixar acontecer

o sonho que hoje é espera em mãos da fé?

 

Se te escondes atrás do teu poder,

que mão é que ousará se oferecer

a alguém que ruge ser o que não é?

LA 03/003

 

 

 

 

Homo Superfluus

 

O momento te fez coisa supér-

flua, aliás, fez-te coisa descartável

(  descartável, e até não-reciclável... ).

Tratam-te assim como se fosses mer-

 

da-passa: aquela que ninguém sequer

já tem nariz para fazer notável...

Homem supérfluo! Bicho desprezável!

Quem sabe serves para Bush-Blair

 

tomar o Iraque com seu Negro Ouro,

e até aproveitem o teu jovem couro

em odres a  brindar em Camp David...

 

Quem sabe serves de troféus perpétuos

entre a massa do reconstruir... O rei (vi de

longe) abençoar seus boys, homens supérfluos!

LA 03/003

 

 

 

 

Cavalo E Sapato

 

Dizem que do Príncipe —

só restara o cavalo.

Da Cinderela —

só o sapato esquerdo.

( O esquerdo? Sim, o esquerdo,

não sei por quê... )

Depois,

ambos olharam bem

e não viram

nem cavalo,

nem sapato.

 

Um pouco mais depois,

olharam-se de frente —

olho no olho,

e viram que cada qual

tinha se visto

com os olhos do outro:

aprenderam que a vida

é autoconstrução.

Sim: cada um faz o que é,

e se não faz,

é o que não faz.

LA 03/003

 

 

 

 

Ah, Esses Três!

 

Muitas vezes

o caminho de volta é muito longo,

e o atalho,

o atalho não sabemos

ou não há.

Já então não se volta —

segue-se em frente,

um em frente cuja dianteira

não se sabe bem pra que lado é...

Sim, a inteligência não sabe,

mas a intuição desconfia

e o coração já esteve lá...

Só não sabe voltar pelo mesmo caminho...

mas, em compensação, tem uma amiga

que é mestra em atalhos: chama-se fé.

E outra amiga que dá a sensação

de já se ter chegado ou conseguido:

chama-se esperança.

E outro amigo que torna o impossível

em possível: chama-se amor.

Porque existem esses três

é que caminhar se faz possível:

o ser vai se tornando

uma estrada em mudanças —

por chãos do sonho de Deus.

LA 04/003

 

 

 

 

Dificuldade

 

A vida é difícil,

muito difícil.

Fácil é morrer,

ou entregar-se a ele.

A vida exige um sentido,

um nexo, um fio escarlate...

Uma finalidade entre as relações:

exige honestidade —

o viver na verdade

e no amor.

É pouco?

Não: é tudo.

Quase ninguém vive assim.

Quase ninguém se preocupa

em construir(-se) assim.

 

Sim: a vida é difícil.

Mas, no momento em que a sabemos difícil,

ela já não o é —

pois acabamos de vencer as barreiras

para vê-la como ela é

e para aceitá-la difícil.

E quando aceitamos uma coisa

ela se nos faz normal —

ela é o que é,

e é bem normal

uma coisa ser o que é.

 

Aceitar uma coisa é colocá-la

em mãos competentes:

é entregá-la

a uma sabedoria, a um poder

que sabemos governa

a ordem e o caos.

LA 04/003

 

 

 

 

Inteligência Enrodilhada

 

Não raro ele vinha

acender o seu charuto

na minha dor.

 

Nesses dias eu bebia o vinho

do sofrimento

entre os coaxos da solidão...

Sentia a vida com o seu buril

escalpelar-me o orgulho,

raspar-me a ganga do ser...

Minha consciência faiscava dolorida...

Eram dias da minha provação.

 

Acostumara-se a ver-me humilhado,

fragilizado em corpo e alma —

em depressão limosa...

              Uma falta de força...

              Uma angústia... Em geral,

              ele gostava de ver-me assim —

quase sempre sorria no meu rosto...

assobiava...

Engraçado aquele gajo

que fora ( havia muito ) meu aluno...

Em geral petulante, arrogante...

Uma inteligência enrodilhada...

fria como baioneta,

vermelha entre a nevasca...

Deixava resíduos viscosos

no pós-conversa —

um mal-estar de fala impertinente,

ociosa... e, em geral, perversa.

...............................................................................

Um dia, me disseram, despenhou na serra...

O carro incendiou-se:

um saldo de carvão.

.............................................................................................

Não sei por que não pude

rezar por ele até hoje:

ao menos desejar-lhe alguma paz ou luz.

Um dia

se tiver tempo

faço isso.

LA 04/003

 

 

 

 

 

Mas, Vá Lá!

 

Sonhar talvez não seja tão ruim

quando a gente não tem alternativa.

Bem melhor ter na mão a coisa viva

que seu fantasma a roer amendoim...

 

Mas, vá lá! O sapato do arlequim

nos faz rir porque muda a perspectiva

da nossa dor com aquela que deriva

do riso que transforma o tu em mim...

 

Sim, vá lá! Pois nem tudo é assim tão caro...

Faltando cão, usa-se o próprio faro,

e aprende-se a narrar para si mesmo.

 

Sonhar é bom como não ter tenesmo...

A outra margem só era mais charmosa

quando por lá morava a minha Rosa.

LA 04/003

 

 

 

 

Leveza Que Se Despe...

 

Queres leveza? Despe-te de ti,

e pega uma carona com o vento —

aquele que te corta o pensamento

e já te empresta o vôo do siriri...

 

Vôo amarelo e pios que esqueci,

mas sei: vivem por trás do esquecimento —

lá naquele cantinho nevoento,

onde lembrar constrói o seu lambri...

 

Leveza que se despe de levezas,

mas não dispensa as suas gentilezas

de se fazerem leves, bem mais leves...

 

até que o imponderável da criatura,

pairando brando, neve sobre neves,

seja somente a alma da ternura.

LA 04/003

 

 

 

 

No País Do Futuro

 

Serás feliz, é claro, mas não hoje.

Sim: irás muito bem, mas amanhã.

Deixa que lá em ti se adentre e aloje

a alma do anis, o brilho da romã...

 

Serás feliz, não no hoje, que refoge

em fantasmas usando tobogã...

mas feliz num sonhar que se despoje

dos anseios de fruta temporã...

 

Serás feliz, é claro, num futuro

que não seja nem verde ou tão maduro,

nem de maturidade algo mal-sã...

 

No país do futuro e da esperança,

atleta que te segue e não se cansa, —

claro, serás feliz: mas amanhã.

LA 04/003

 

 

 

 

Nem Deve Haver...

 

O futuro do amor? Sempre nublado:

um sol que não se abriu, astros não vindos

aos olhos que os esperam pelo lado

esquerdo dos abismos jamais findos...

 

O futuro do amor? Sempre fraudado:

ruflos e vôos que seriam lindos

se o pássaro não fora desasado

em seus dons de bem-vindo, porque infindos...

 

O futuro do amor? Não raro ocorre

pouco depois que a espera já lhe morre

para se transformar num bem-me-quer...

 

O futuro do amor? Nem deve haver...

Sendo esse mesmo amor dom no presente,

já terá sido um bem eternamente.

LA 04/003

 

 

 

 

Bru-r-r-r-r-r-r-r-r-r!...

 

Tarde. O outono boceja amarelento.

O Espraiado, magrelo, nem gorjeia...

( Faz pouco esteve de barriga cheia... )

Entre sonhos hiemais, cochila o vento.

 

A vida sonha em ritmo mais lento —

seiva morosa, — calma — , lagarteia...

Um tédio morno pasce sobre a areia...

O vento unha o barranco branquicento...

 

Um sono-sonho em tudo... um filme mudo...

O tempo se arrastando nadegudo

por entre moras horas de granito...

 

Pior que esta tarde molambenta e plácida

só um ronco no ouvido: fanho grito

durante liça com xiranha ácida...

LA 04/003

 

 

 

 

O Espraiado

 

Um bisbilho: um soneto no ar se esfuma —

o Espraiado, assoprando a sua flauta

de pedra,  pelas pedras canta e salta

em gorgolejos entre o frio e a bruma...

 

E desliza cantando pela pauta

de pedra, solfejando uma a uma

as notas de harmonia que resuma

o canto numa voz risonha e cauta...

 

O Espraiado é um soneto a recitar,

com as águas de nudez lá da Piscina,

o seu canto orvalhado de libido...

 

E lá vai ele, menestrel a cavalgar

seu cavalo de pedra em calha cristalina...

O Espraiado é um soneto a ler-se renascido...

LA 04/003

 

 

 

 

Que Não Isto...

 

Nosso momento

pode e deve transformar-se

em outra coisa.

 

Em outra coisa qualquer

que não isto que temos

nas mãos sujas deste instante.

Sim, pode transformar-se

em outra coisa,

mas não pelo caminho da inteligência —

que padroniza tudo,

muda tudo no que estava —

trocando apenas de lugar,

tamanho e modo de dizer.

 

Antes, pelo caminho sem caminho

da intuição: que pega a coisa pelas penas

e pelo vôo...

Pelo caminho sem caminho

do coração,

cujas esperanças se banham na certeza

de que o objeto buscado já se encontra

em meio às nossas mãos.

 

O instante pode, sim, se transmudar em outra coisa,

que não isto a que ( por fora ) nos obrigam:

sim, pode e deve

ser outra coisa

que não isto que sofremos,

isto que não é vida:

não vive na verdade

do sonho-mais.

LA 04/003

 

 

 

 

Verboterapia

 

São momentos de um tempo atormentado,

de uma vivência em meio a tempestades,

perpassadas de hostis felicidades —

sim: momentos de um tempo enviesado.

 

Frágil carne de um tempo conturbado,

trespassada de espinhos e ansiedades:

ânsias, pulsões, agudas soledades

de um solilóquio hostil, de atravessado...

 

Pra quem extravasar os uivos sós

de uma dor que é maior que o não dizê-la,

já que dizê-la eliminara o algoz?

 

Sim, é só no dizê-la para o outro

( o outro-nós e o outro-Outro ) é que ela

se esfuma: já entendida e feita tropo...

LA 04/003

 

 

 

 

Reféns

 

Não tenhamos medo, meu velho,

de termos sempre sucesso

em todos os nossos fracassos —

sim: sermos bem sucedidos

em tudo em que fracassarmos.

E esses dois impostores                                          

já não serão nossos senhores:

pois estaremos livres

de nós —

os últimos de quem teremos sido

reféns.

 

Fracesso

e sucrasso —

dois charlatães culturais

pelos quais o homem enfraquece

a sua humanidade

fortalecendo os elos

de uma liberdade que o escraviza.

LA 04/003

 

 

 

 

Ou Tanto Quanto?

 

Se o inexistente

é o suporte

do que existe,

vida e morte

apenas brincam

de  pegar-se

com mesmas mãos.

Inexistir

é apenas esperar

a sua vez.

No que ainda não somos

o material dos sonhos

( que nega a realidade )

existe menos

ou tanto quanto

o inexistente?

LA 04/003

 

 

 

 

Outros

 

O que escutamos de nós mesmos

nem sempre nos agrada —

mas esse não gostar estabelece a via

de caminharmos juntos com o outro.

O que escutamos de nós mesmos

nos vem do outro em nós

ou do Outro em outros?

LA 04/003

 

 

 

 

Nem A Trança

 

O amor antigo prometia o céu,

e a gente, ainda que de lado, cria,

cria ouvir lá em alma essa alegria:

guizos de prata e aromas de alvo véu...

 

O amor antigo prometia o mel

daquela Canaã que reluzia

no sonho de Jacó: a escada que subia

e descia na mística Betel...

 

O amor antigo fiava entre as amoras,

colhia favos nos desvãos das horas —

um bômbix a tecer sua esperança...

 

Desse amor só restou: o cavalo e o flato

do Príncipe, da Cinderela, nem a trança,

mas só o bico, o bico do sapato...

LA 04/003

 

 

 

 

Era Um...

 

Pois era.

Era, sim, mas nem foi...

Acabou não sendo nada —

nada de mais,

nada de menos,

nada de nada.

 

Era um sonho bonito,

como um ovo grandão

que, incubado,

gorou em nada.

 

Fizessem, pelo menos, uma omelete

com bastante cebolinha,

ou queijo, ou lingüiça calabresa...

Mas não: nem o desejo nem a coisa.

O sonho não bicou a casca...

não teve força...

Alguém sonhou, mas não ousou —

por isso Deus não quis.

LA 04/003

 

 

 

 

Diz Como, Rosa, ...

 

Diz como, Rosa, desatar meu canto

da beleza outonal que te sobeja?

Sim: como disfarçar o meu encanto

desse teu tom de amora e de cereja?

 

Diz como, Rosa, desprezar o espanto

desse maduro em ti — posto em bandeja —

que pássaros com bicos de acalanto

sorvem em meio à sombra que voeja...

 

Diz como, Rosa, desfolhar-te inteira

sem que nenhuma pétala se perca

nem te fiques de mal com a roseira!

 

Diz como, Rosa, respeitar a cerca

que se põe entre ti e o falso pejo

de vindimar-te inteira em meu desejo!

LA 04/003

 

 

 

 

Na Outra Esquina

 

    É aqui, menina,

no teu sorriso,

que fica o paraíso?

 

    Não, meu senhor,

o paraíso fica ali na esquina...

 

    Sempre na outra esquina,

linda menina?

 

    Eu não sei não, senhor.

O senhor fala sério

( como diz minha mãe ),

e eu de brincadeira:

sim, falo como brinca-ensina

nosso brinquedo.

Mas não sei não.

Só brinco de saber

que ele fica ali na esquina...

Como é que eu poderia

viver nele —

se soubesse

o que o senhor pensa saber

e ser?

 

    Pensa?!

    Sim, os adultos pensam

( como diz minha mãe ) —

pensam que pensar é ser...

e saber.

    Então o paraíso

é aí na infância?

    Não sei não, meu senhor,

quem vive nele

jamais sabe onde ele fica.

LA 04/003

 

 

 

 

Inaparência

 

Parece que o homem

nunca esteve disposto

a aprender com as experiências...

É a vida quem o pega de pau —

ensina-o pela dor,

ou — se ele preferir — pelo horror.

 

Cada qual professora

o seu modo de ser,

o que pensa, o que vê:

publica-se antes de saber

o que é que se escreveu.

Uma pressa em ser “famoso”.

Uma pressa em fazer

antes da gramática,

antes da leitura —

antes de vivenciar:

antes de saber o quê.

 

Não querem pensar,

querem dizer.

Não querem compreender,

querem falar

sobre o que menos entenderam.

Estudar, pesquisar, dedicar-se...

o que é que é isso mesmo?...

 

Um bando de maitacas,

chalrando coisas verdes,

palrando entre a mimese

de folhas altas... mas que eis já voam

deixando um rastro verde no ar...

 

Parece que o homem

nem se parece

com suas aparências:

por isso mesmo é que a vida,

a sua vida é tão inchada e inane.

LA 04/003

 

 

 

 

Competência Hilária

 

Felizes os que riem de si mesmos, —

para sempre terão divertimento.

Suas risadas, tiques e tenesmos

abrandam-lhes o tédio e o sofrimento.

 

Felizes os que, andando por seus esmos,

colhem flores e entregam para o vento

o dom de semeá-las em seus sesmos

onde rir, gargalhar floresce o intento,

 

o intento de sonhar-se, em reino antigo,

um “bobo” que, a não ter nenhum amigo,

ria de si enquanto o rei se ria...

 

Felizes os que riem gostosamente

de si, do mundo e todo “ismo” e “ia”...

Este riso, por certo, é competente.

LA 05/003

 

 

 

 

Bem Fundo

 

Respiremos bem fundo.

Assim... assim, vamos lá!

A atmosfera de nossos dias

há de trazer-nos

uma irracionalidade saborosa —

assim como a do macaco

ou do grilo —

algo que seja bom

como a gente não saber —

sim: deliciosa,

gostosamente irracional.

LA 05/003

 

 

 

 

Charme Rabicó

 

Ah! Fora bom, amiga,

fora bom viver contigo

um caso bem rococó —

curto ( que ninguém é de ferro! ),

mas forte, uma bobagem

fortemente rococó.

Sim, uma dessas que antes quer

estar mal-acompanhada

do que só.

Eu te depenaria

toda-todinha, meu xodó.

Só te deixara,

preciosa e rara,

alguma coisa avara

( porém sem dó ):

algo que te lembrara,

minha cara,

com um charme rabicó —

de uma, de uma pena só.

LA 05/003

 

 

 

 

Era Uma Tarde...

 

Era uma tarde toda feita em lavas,

ardendo: uma fogueira no horizonte

a atravessar uma sombria ponte

cheia de formas vãs... escandinavas...

 

Era uma tarde em que já não lembravas

de te esquecer dos contos que te conte

nosso segredo a murmurar na fonte

em que quase sem roupa te banhavas...

 

Era uma tarde longe que vestia

levezas negras, negras transparências —

despojos de uma luz que já se ia...

 

Uma tarde em permuta de opulências:

o sol se pondo... a noite já piscando...

e teus passos na areia frufrulhando...

LA 05/003

 

 

 

 

Tiro A Coleira...

 

Tiro a coleira do sauim, Teresa,

e enrodilho de branco teu pescoço.

Será um modo de saber-te presa

ao meu te amar com gosto de tremoço...

 

Tais grãos, eu sei, têm um sabor insosso...

Mas os sais de sonhar-te, com destreza,

põem tempero na carne e até no osso:

o sonho muda a própria natureza.

 

Troco-a depois por fina jóia: ponho

na tua alma faiscante correntinha

e te passeio com as mãos de sonho...

 

Sim, te passeio pela tarde em flor

lá por jardins suspensos, bem à horinha

do almoço de Nabucodonosor...

LA 05/003

 

 

 

 

Espinho

 

Amamos a Beleza

pela consciência da morte —

e é nesse espinho

que a vida se faz preciosa:

é preciso dar sentido,

sentido e fim à realidade.

 

Amamos a Beleza

porque sabemos: sem ela

a verdade desertaria...

 

Amamos a Beleza

para nos mantermos vivos

dentro do hoje:

a mão que tira

aquele espinho da carne.

LA 05/003

 

 

 

 

Olhos Feridos

 

Ficamos mais sozinhos

e bem mais pobres.

 

Não só a poesia

sangra nos olhos.

Também a habilidade

no jeito bom de conviver:

a solidariedade,

o companheirismo,

a força, o incentivo —

o dizer, por meio de atos,

que devemos nos ajudar.

Que devemos ter paciência,

persistência,

deixar “passar”, e prosseguir...

Sonhar-criar,

fazer e refazer

sem perguntar o “credo”,

o “partido”, a “diferença”,

o “estado do bolso”...

Sim: não só a poesia

sangra nos olhos,

mas a alma, o sentimento

dos que tiveram a graça

de conhecê-lo

um pouco mais de perto:

seu ser-pessoa,

o seu naturalíssimo

gente-com-gente.

 

Ficamos mais sozinhos

e bem mais pobres.

 

Não só a poesia

está com os olhos feridos,

mas igualmente os ouvidos

habituados

à tua voz, teu canto

de integração.

...................................................................

Quem sabe daqui a duzentos anos

a vida não dará

( aos que então tiverem olhos

e ouvidos )

um Outro parecido a ti:

capaz de lidar

com o sonho e a realidade

que nos lembre o teu “jeito”.

.................................................................

O Senhor te acolha, bom homem!

Estende as tuas mãos

para os lados da Misericórdia,

e hás de ver ( bem dentro em ti )

aquele estradão de luz

que leva às varandas de Aba-Pai —

e aí então colheres

a bem-aventurança

do amor,

da paz,

da esperança,

que soubeste semear

quando vestias esta realidade.

E tudo, caro Poeta,

e tudo,  caríssimo Percival,

tudo cento por um —

sim: tudo centuplicado

pelo fermento da graça

como aqueles cinco pães e dois peixes...

...........................................................

Não só a poesia

está com os olhos feridos,

mas igualmente os ouvidos

habituados

à tua voz, teu canto

de integração.

LA 05/003

 

 

 

 

Lembro-Te Assim...

 

Lembro-te assim: de lado de lembrar...

Não que de frente ( não! ) me machucasse, —

é mais amplo o lembrar de uma só face:

algo assim como o céu ou como o mar...

 

Lembro-te assim: por trás de te lembrar...

Não que de frente teu olhar cegasse,

é que ir pela sombra evita impasse...

nem é preciso usar filtro-solar.

 

Lembro-te assim: em curva em forma de “S”

pra esquerda, que à direita nos propele

e traz à mente abismo, gente, boi...

...................................................................................

 

O teu cachorro ainda me conhece...

Ontem, quando vocês passaram, ele,

simpático, rabo-acenou-me um “oi!”.

LA 06/003

 

 

 

 

Compensação

 

Ela, às vezes, pegava só no tranco...

Mas, depois de esquentar: nenhum problema —

parecia a leitura de um poema

pela fila a zumbir dentro de um banco...

 

Ela, às vezes, batia de tamanco

no meu amá-la como um teorema

( que eu relembrava ) enquanto — eis o dilema! —

a tinha como hipotemusa em sonho franco...

 

Ela, às vezes, cuspia indiferença

sobre o ser-ou-não-ser disto ou daquilo —

deixando a idéia-coisa sempre pensa...

 

Ela, às vezes, cantava como um grilo,

já outras, esmagava caracóis...

Mas sabia incendiar alvos lençóis.

LA 06/003

 

 

 

 

Sobradão

 

Manacá todo olhos, tristes dálias

espiam a ruína do sobrado:

sustido por pilastras “de sandálias” —

o calcanhar já muito solapado...

 

As paredes banguelas, com migalhas

de pão na boca... Os óculos quebrados:

caixilhos exibindo cavernalhas —

falta de vidro em seu olhar ocado...

 

Um hotel de cupins em conjunções

carnais com a madeira... Pelo teto,

morcegos em seu sono de vilões...

 

Nos porões, um odor, um cheiro infecto

das botinas do tempo e seu chulé —

algo que teima em ser, mas já não é.

LA 06/003

 

 

 

 

Mais Cinco Artigos

            Para O Estatuto Universal

Das Direitopatias Humanas

 

Todo homem

tem direito de ser torto,

até prova em contrário —

em que fique demonstrado

que uma reta

pode ser o caminho mais curto,

mas nem sempre o melhor,

ou possível.

 

Todo homem

tem direito de ser chato,

até prova em contrário —

em que não se concorde

que a chatice

é preferível à agradabilidade

bajuladora

e perfumadamente cínica.

 

Todo homem

tem direito de ser bobo,

até prova em contrário —

em que não se constate

que o seu saber das coisas

( sobretudo à sua volta )

pode levá-lo à  frustração,

e quem sabe ao suicídio.

 

Todo homem

tem direito de rir de ter direitos,

até prova em contrário —

em que lhe é dado ver

que a sua única posse

de tudo a que tem direito

não é apenas

sua esperança.

 

Todo homem tem direito

de ser abominavelmente sincero

( como o espelho de cada um),

até prova em contrário —

em que lhe seja comprovado

que primar pela honestidade

deixou de ser abominável:

ou cínico-secreto riso.                          

LA 07/003

 

 

 

 

Vozes Que Vêm...

 

Donde é que vêm tais vozes policromas

reverberando os versos de um poema —

vozes vindas dos lábios de palomas

em pulsões de romântico transema?...

 

De certo vêm de mim ou quem não tema

vê-las fugidas de álgidas redomas,

somadas ao platônico problema

de vê-las se agarrando às próprias comas...

 

Vozes vindas de tempos já despidos

de forças que lhe tragam ao presente

o plasma de futuros preteridos...

 

Vozes vindas, mas para além de havê-las...

Vozes vindas pelos desvãos da mente

que as ama quanto mais possa esquecê-las.

LA 07/003

 

 

 

 

Bom Seria...

( Carta A Um Depressivo )

 

Temos períodos de chãos ensaboados...

Fraquezas e problemas que só nós sabemos.

É a hora de sabermos ouvir

( ouvir com paciência )

a nós mesmos,

e sobretudo olharmos

( olharmos com benignidade )

para nós mesmos.

Sim: bom seria se fôssemos

( para nós mesmos )

como uma boa mãe

para seu pequeno filho:

amorosa, paciente,

alegre sempre e vigilante —

provendo-o do que precisa,

guardando-o do mal que ele não vê...

e dando-lhe coragem

para sentir que “pode”

e — naturalmente — encontre,

vá encontrando

a sua autonomia.

 

Tratemo-nos ( a nós mesmos )

com paciência.

Nenhum de nós é tão forte

que não precise

de um sentimento de amizade —

ainda quando este

só nos venha de nós mesmos...

 

Para quem pensa que perdeu:

ponha seu ver naquele ângulo

em que perder nos lembra ganho...

 

Se o sofrimento é grande,

tenhamos a certeza:

como tudo,

ele não dura.

 

Procuremos aquela mão

( sabendo que ela existe ) —

aquela mão

que não tem medo de estender-se

por entre o espinho e a solidão...

( Procuremos por ela até achar. )

 

Algo muito importante

para nos firmarmos em nós

é sentirmos que Deus nos é.

Sentirmos que Deus nos é.

Mas isso não exclui

aquela mão igual à nossa...

 

Essa mão nos ajudará

a recobrar a confiança —

em nós e também nos outros.

Então teremos senso e proporção

para vivermos

entre a esperança, a realidade e o sonho.

Teremos reaprendido

a lidar com a vida:

feito de uma doença

realização e transcendência.

LA 07/003