NA HASTE DO HOJE

                                                Textos 1

                                                    Laerte Antonio

 

             Da Safra Dele

 

Meu coração

o tempo todo bebe vinho,

mas nem por isso trança as pernas,

nem se afoga —

senão me parte a vida,

e nem fico sabendo

que ele me fora bom,

bom demais para mim.

Deixem-me logo agradecer

por ter um coração

que o tempo todo bate

( mas na porta dos fundos

porque sabe que o céu

só tem porta da frente )

e que não deve amolar aquele Senhor

que o tempo todo tem que estar

dentro e fora

de todos os corações —

sobretudo naqueles que não têm pressa

porque de bem com a vida

que é fora e dentro da criatura.

 

Saboreia, coração,

agradecido, o vinho

que homem não faz.

Que homem não faz... e quando rouba,

rouba terrivelmente da Vida.

Degusta deste vinho,

deste vinho

que não tem dono —

deste vinho que vem

das mãos de Deus.

Sim, o homem vai ter que aprender

que esse vinho,

que esse sonho,

que esse bem,

que se diz vida —

é tesouro de que a criatura

é apenas depositária:

roubá-lo

é roubar de si mesmo.

LA 09/002

           

 

 

 

Ao Menos Aprendizes

 

Foi bom enquanto durou?

Não só enquanto

mas também depois-após.

 

Ter cursado uma boa escola

deixa um rastro de prazer

ao longo de toda a vida.

 

Ter vivido

com uma bela outra-parte

( e dela ter saído vivo/a ),

é levar pela mão no tempo

uma satisfação

vitalícia e quentinha,

ou ( em outra moeda ) —

uma saudade charmosa,

porque de barriga cheia.

.................................................................

Viver é estarmos

em ganhos-perdas,

em perdas-ganhos.

O que o homem precisa

é ver com mesmos olhos

seus ganhos e suas perdas —

uma vez que tais impostores

não nos pertencem:

são apenas degraus

que subimos e descemos.

Dependem menos de nós

que dos tiques e chiliques

do meio

e dos tempos —

que suportam o Edifício.

 

Sejamos irrazoáveis!

Claro, e razoáveis um outro tanto.

Sim, sejamos sensatos:

permitamo-nos algum tanto

de insensatez.

Quem sabe assim não recobramos o sentido

para os lados de nossa humanidade

e a gente até pode ver

pra onde é que está indo?

Ah, vamos lá!

Muita coragem

e muita covardia!

Sem querer ninguém acerta,

mas sem fazer... pode até ser.

( Por falta de fazer não é

que o Saci não tem inveja

do nosso passo... )

Sim: desfaçamo-nos de nossos

empanzinados  fazimentos...

Aos poucos, desfaçamos.

Somos reféns das nossas mãos

e também da sombra delas:

do seu fazer ou não fazer...

 

Desfaçamo-nos

de fingir que não vemos.

Assim teremos sido,

se não felizes,

ao menos aprendizes.

LA 09/002

 

 

 

 

            Por Algo Maior

 

“Correu de medo,

sujou no dedo.”

.............................................................

Pedi a Deus

me fizesse bem covarde —

pra ninguém levar vantagem

sobre minha ( se tivera ) valentia.

 

Por mais vida, — sim, senhor.

Por esterco, — não, doutor.

 

Vi gajos sangrando até a morte

por xiranhas puladeiras.

Por centímetros de terra,

por “ofensas” de guetos

e até por goles de cachaça.

“Desonrados” lavando

com suas vidas

podres minhocas culturais.

E era isso o que eles eram.

Sim, sem o saberem eram isto:

podres minhocas culturais.

Maldades ao molho pardo

de recíproco desamor.

 

“Correu de medo,

sujou no dedo.”

........................................................................

 

Fétidas honras,

fiéis sujeiras,

pútridas vaidades

de podres ideologias.

Carniças do coração.

Desenganos da alma.

Sono enfermo do espírito.

 

“Correu de medo,

sujou no dedo.”

........................................................

Podridas glórias.

 

Sim: a carne e o sangue

não herdarão a cidade

cuja lâmpada é o Cordeiro.

A vida é muito mais

que tudo-isso-esterco

que nos rodeia e, se deixarmos,

nos entra corpo e alma.

 

Há coisas que me servem,

outras que me deserviriam.

Vão por aí?

Vou por aqui —

nem herói,

nem bandido,

mas alguém que anda aprendendo

a se prezar.

LA 09/002

 

 

 

 

Com Ou Sem Aval

 

Um sonho telegenético

a fluir em prístinas veias:

Mr. 45

sonhou que o leite negro

do mundo

fluía para as mamadeiras

da sedenta maquinaria

de sua casa —

a que mais cospe na cara do planeta.

 

E Mr. Colt sonhava

e, sonhando, bradava:

“Cadê?! Cadê?!...

É nosso!! É tudo nosso!!...”

a soquejar no ar

e a trovejar em texanês:

I want him, alive or dead!

Yes: I want hiiiiiiiiimmmmmmmmmm!...

Satan-Saddam-Satan!...

SSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSS!...

..................................................................................

Sua ministra o sacode

( em seu divã saudita ),

e lhe sussurra a boanova:

Sossegue, Excelência, sosseguinhe!...

Ao primeiro “S” do seu sonho,

já mandamos despejar

mais trinta Mil toneladas

daqueles nossos “punzinhos”

sobre a cabeça do Demo

e seus asseclas...

Sossegue:

o leite negro é nosso

desde o futuro do passado —

com aval ou sem aval

bucal/anal mundial.

LA 10/002

 

 

 

 

Argila Constelada

 

Gosto das coisas bem quebráveis...

Assim jamais se cansam

de mim. Nem eu de seus encantos.

Das coisas desfolháveis

nas mãos dos ventos

que ( não demora ) se amansam —

já não semeiam espantos

nem tormentos.

 

Das coisas que se fingem

moldar

e não chegam a ser —

porque não-ser é que é

seu remoldar

na argila constelada

de um sempre vir a ser.

LA 10/002

 

 

 

 

No Além-Opostos

 

As coisas hão de ser buscadas

nos seus além-opostos —

ou não há compreendê-las,

nem achá-las orvalhadas

de sua essência.

O Bem e o Mal existem, claro.

Mas é preciso vê-los acima deles:

o quanto o bem tem de mal,

o quanto o mal tem de bem.

E assim, no além-opostos,

o ver com o ver já não se opõem:

o uno se torna pluri...

e o verso, — multiversal:

realidades sobrepostas

filtrando o sonho-nós.

LA 10/002

 

 

 

 

Como Dálias

 

Se os girassóis não florescerem,

teremos os gerânios,

escudeiros das rosas...

Das rosas espiadas

por cima de velhos muros:

espiadas pelas dálias —

tão lindas essas dálias

em sua frágil humildade,

que lembram minha avó Anita,

a me dizer:

“Deus é bom, mas tão bom

que jamais devíamos ter medo.

Sim, caro, você verá —

nem precisávamos ter medo...

Se o vento nos bate igual a dálias

de encontro ao muro,

como dálias, meu caro,

estamos plantados Nele.”

LA 10/002

 

 

 

 

Com Pena E Tudo

 

Faz tempo ( muito tempo )

o asno cacareja

e a galinhona

orneja.

 

E nesse entretempo o galo

tenta cobrir a pata,

mas vem o ganso e lhe corta

(  pela metade ) o barato —

a estalejar-lhe grasnos.

 

Te cuida, malandro velho,

mas não abaixes tanto —

que ficas demais no ponto...

 

O amor morreu de falta.

Sabias?

Sim: falta de si mesmo.

Quando viram, tinha virado

poposo charque:

que se há de saborear acebolado

com cachaça envelhecida

em odres de cordeiros...

 

Bom é comer galinha

com pena e tudo,

quando não é galinha

nem pena

o que se come.

 

Bom é engarrafar

zurros e ornejos,

e servi-los, após dez anos,

a paladares delicados

a cavalgar machinhos

no cio.

É aqui que o asno

cacareja

e a galinhona

orneja,

sem pena.

 

O amor ( cá bem pra nós ) anda uma merda.

Mas se você não o consome,

suas tripas vão ter o quê?

Coisa por coisa,

a maioria ó!, antes que o tempo

coma a comida e o prato.

 

Por isso mesmo, a Hipotenusa

( lá no Quadrado dos sonhos )

tem reiterado aos Catetos

que o amor continua sendo

a melhor das bobagens.

.......................................................................

Faça doce não, meu caro (ou cara ),

que vem a formiga e...

.............................................................................

Melhor que a goiabada

é não ser diabético.

O amor? Pai-d’égua:

danado, melhor de bom.

E além do mais é diurético.

LA 10/002

 

 

 

 

Sua Vergonha Nua...

 

Sua vergonha nua só debrua

meu sentimento em vê-la assim pidonha

de afeto e compreensão: gesto de lua

em sua seda e penas de cegonha...

 

Pígios roçados pela brisa nua,

impondo ao rosto um rubro de vergonha:

ter de vender a carne, a carne sua

por dinheiro a tinir sua peçonha...

 

O coração lhe dói desiludido —

bebe estanho, titânio em repetido

ato de se vender, fazer-se vil.

 

A alma lhe dói inteira, e um ódio frio

lhe escorre com um riso de imbecil

e cai na boca a milbeijá-la em cio.

LA 10/002

 

 

 

 

Feridas Impensadas

 

Falamos a mesma língua,

mas um mar,

um mar enorme nos separa.

Um mar de lindas diferenças —

dessas que — de tão diferentes —

são hoje indiferentes,

e tanto, que isso elimina

todas, quaisquer inferências —

tornadas em transversas diferenças

sem nenhuma referência.

E a tal ponto, amor,

que quanto mais a gente se fala,

tanto menos se entende.

E louvado,

louvado seja o desentendimento,

que já não traz nenhuma desinteligência,

nenhumíssima inteligência —

antes contrabalanceia com pensas

enquanto a gente pensa

sem nenhum pensamento.

Assim a gente despensa ( sem dispensa )

enquanto pensa

as feridas impensadas.

LA 10/002

 

 

 

 

Caminho-Caminhante

 

Caminho

um caminho entre o ser e a solidão,

o sorriso de Deus

e abismos atapetados

das flores do desejo. Um caminho

a caminhar-se ( com suas formas

em formose

no aqui-além de percorrê-lo ) —

vário-diverso a cada passo

( em inter-outros ) e, no por dentro da criatura,

abre-se em flor:

Caminho-Caminhante

no por dentro e por fora de totalmente tudo:

no Uni-e-Multiverso...

Um caminho cujo caminhar

é construí-lo em reconstruir-se:

ser e realidade a remoldarem-se Um...

num experimentar-se em tudo-outros.

Sim: um caminho a caminhar-se

( a vertebrar o ser

em conhecê-lo e conhecer-se:

consciência una —

caminho metabolizado em caminhante,

ser e tempo feitos Um ):

a própria vida a carrear o dom, a graça

sempre a bordo do Ser e a caminho de Casa,

reconstruída pelo Caminhante

LA 10/002

 

 

 

 

Logo Ali...

 

O anel quebrou?

Sim: era vidro.

O amor

...se acabou?

Sim: era pouco.

...........................................

E o que restou?

A lembrança descalça

por sobre o chão macio

de cirandar:

... meia-volta, volta-e-meia...

Ficaram lá... logo ali —

na infância, que ainda

( lembra? ) canta

as delícias de não-saber.

...................................................

Se o amor era pouco,

chore não —

não sabia fazer-se mais..

Se o anel era de vidro,

chore não—

essa era a sua natureza.

Havemos de não precisar

de anéis de vidro,

nem de amores pequenos.

LA 10/002

 

 

 

 

Mas Não Tanto...

 

Meu coração é hoje um bom menino —

já não exige o que nem ele tem.

Gosta das sombras e do sol a pino...

Ama o belo, ama o feio em seu vaivém.

 

Não tem medo de ver-se um bom cretino,

com outros a dizer um só amém.

Nem exige que o bem seja divino —

mas tão-somente seja: seja um bem.

 

Já não põe as pulsões num só disquete

à espera de clicar quem lhe complete

sua falta de ser e veleidades...

 

Meu coração é hoje mais maduro...

Mas não tanto que caia do seu muro...

ou deixe de inventar felicidades.

LA 10/002

 

 

 

 

Do Diário De André

 

Naqueles dias a gente já aprendera

a viver com muito pouca felicidade.

Ela era ( para você, que não sabe adivinhar:

estou falando de Teresa... ),

ela era a mão que eu precisava

e eu o braço a lhe encaixar a palma e os dedos.

Inventávamos momentos, horas, dias

de um convívio constelado

na argila da nossa pobre carne —

clara alegria e a força que ela tem

com esperanças enraizadas entre os vãos dos sonhos...

 

Seu corpo roseava ternuras

em gestos escondidos atrás de girassóis...

Sim ( me lembro e repito ): a gente

nem precisava de felicidade

pra ser feliz.

Tínhamos aprendido a inventá-la...

Bastava uma postura de coração e pensamento...

e bastava saber não atrapalhar o acontecer.

 

Era assim como ver e criar...

Melhor: ver e recriar.

A realidade se remolda

e se entrega à vindima.

Nossos olhos se moviam como seixos

semeados nas encostas

pisadas por brisas com sandálias de sol.

Venturas-aventuras de quem sabe a vida

dona de uma generosidade usurária

sempre a nos lançar em rosto...

Delícias infelizes,

desventuras venturosas.

 

Ela era bela como o sorriso do mistério,

e eu colhia de suas mãos e flancos

flores — muitas — semelhantes a bem-me-queres...

Uma alegria verdejada de tenro afeto

que nós dois repartíamos

pelos luares de vastas vinhas

em vindimas e vindimas...

E nosso nos amarmos tinha o cheiro

e o gosto do pão assado em casa...

 

E tudo foi demais bonito, talvez,

porque tudo durou

a eternidade de uma rosa.

.............................................................................

Lembro que lhe beijei o rosto ( emoldurado )

numa manhã fulminantemente azul

e inundada do mais puro ouro.

Tudo tão belo e calmo,

sim: terrivelmente calmo em derredor,

que me jurei, naquela hora,

que a morte não seria nem mais nem menos

que um brinquedo terrível —

um brinquedo de Deus:

o único inquebrável

durante toda a nossa vida —

duro demais para o nosso coração.

Para a Vida, por certo, um brinquedo pouco,

ou quase nada... Sim: nada demais,

nem de menos.

..........................................................................................

Minha Teresa era bela como não saber.

LA 10/002

 

 

 

 

Se Queres Irrigar...

 

Se queres irrigar, irriga.

Conheci muita pedra

que virou rosa.

Terras rachadas

igual pedaços de torta —

que se tornaram belas vinhas.

 

Se queres irrigar, irriga.

Conheci corações ressequidos

que floresceram calmas esperanças

entre bromélias sonhadeiras

e aquela fé de andar por sobre as águas...

 

Se queres irrigar, irriga.

Conheci olhares vazios,

arenosos de desamor,

que viraram chafarizes

aonde muitos se achegavam

para matar a sede,

e as crianças

para alegrar os pés...

 

Se queres irrigar, irriga.

Deixa fluir de ti para o outro

a água da vida.

LA 10/002

 

 

 

 

Do Sacro Ao Poético

 

Do sacro ao poético,

a distância é de sonho —

ou degraus virtuais:

verdade-beleza

e beleza-verdade —

um só perfume

em tons de espelho

em sombraluz.

 

A verdade

é metáfora de beleza —

aquela inseparável

do verdadeiro.

A beleza é metáfora

de verdade —

aquela imanente do belo.

Sim: algo que mais se sabe

quanto mais esquecido —

vivido de soslaio,

percebido de lado

do entender.

 

Não-saber é abertura

para o mistério —

pai de nossas provisões.

 

Do sacro ao poético,

se houver distância

será de justaposição.

 

Do verdadeiro ao belo,

do belo ao verdadeiro,

se não houver inerência —

é que fecharam para o almoço,

ou derrubaram o teatro...

 

Do sacro ao poético,

o caminho vai e vem

entre a margem-beleza

e a margem-verdade.

E muito mais Ele, o Filho,

haveria de nos dizer

se o podéssemos suportar

agora.                   

LA 10/002

 

 

 

 

Cabeça Fria, Cara!

 

Quando em escândalo,

justifique-se na pedra

que o fez tropeçar.

E observa outras vontades —

quebrando-se as pernas

e a cara

em mil tropeços.

 

Quando em ridículo,

colecione risadas,

múltiplos risos —

transforme-os em pedras

( em flores não: em pedras )

e, em seguida, atire-as

nos telhados de vidro

( que pensam ser casas-matas )

dos que riram e gargalharam

de você.

 

Quando o cônjuge o abandonar,

aproveite: troque-o por um parceiro

mais interessante e mais moço.

 

 

Quando falarem mal de você,

dê graças a Deus

por existirem

os que falam de você.

Bem ou mal são gradações,

ou modos de falar.

Sim, falar de você

que graças a Deus está vivo

e nem precisa

para viver

daquela sabedoria

de Salomão —

mas tão-somente

de suas vaidades.

LA10/002

 

 

 

 

Palavras Que Invisibilizam

 

Por aqui o caminho é mais curto —

a fé tem seus atalhos.

Em havendo águas, um monge

nos mostrará o recurso das pedras.

Em surgindo bandidos, pronunciaremos

as três palavras que nos fazem invisíveis:

desempregado, hotel-calçada, fome.

Em vindo a polícia, a gente os recebe

com sorriso entre medroso e subserviente —

tentando incutir-lhes que dispensamos azeitonas...

e cacetadas na cara e na cabeça.

E logo que venha a manhã,

tomamos banho no córrego,

botamos a roupa de procurar emprego —

nesse nosso noningentésimo dia sem trabalho,

com os dentes cansados de frutas podres

e legumes passados:

com o estômago a comer-se

entre enzimas frustrados.

LA 10/002

 

 

 

Fofocas

 

Zélia madurou tanto que só restou sementes.

Juca se preservou: pensou bem pouco,

e sempre com o humor à frente —

daí não se ter entregue nunca ao banal.

Os disciplinados morreram todos de enfarto,

ou derrames cerebrais.

Suas viúvas jamais aceitaram bandeiras

a meio-pau: eram saudáveis e moças.

Padre Herculano fugiu com Glorinha na véspera

de Natal . A congregação se calou como se dissesse:

Meu Deus, mas ninguém é de ferro!...

O coroinha é que chorou órfão —

juro que não sei por qual dos dois.

Ficou mesmo inconsolável

como casal de bigodinhos separados.

Sentido, adoeceu.

Doente, durou seis dias.

Morreu no dia de São Nunca.

Enterro cedo, festa à noite.

Muita cachaça, comida,

e raparigas em flor: doidodoidinhas!...

 

Quem chora primeiro

não vê a festa...

Quem ri primeiro

garante o riso.

LA 10/002

 

 

 

 

Cuidado!

 

Pense muito não —

desparafusa o juízo.

Não viu o padre Gregório?

Fugiu com a mulher do juiz.

    Do juiz?!

    Sim: safenada e octogenária.

 

 

Não viu o autodidata André?

Começou a teimar com o vizinho

que sua mulher era dele...

O vizinho ( calmamente ) desquitou

e ( serenamente ) casou os dois.

E ainda pagou a festa

e lhes montou a casa.

 

Pois é.

Pensar muito desparafusa

a parte alta,

como rir muito destramela

embaixo.

LA 10/002

 

 

 

 

Até Quando?

 

Essa coisa ridícula

e mais que prejudicial —

até quando não terei

forças para mandá-la

longe, longe de mim?

 

Até quando hei de querer que a rosa

seja ela mesma e seu avesso ( ? ) —

mensagem do mistério,

pêndulo da eternidade?

 

Até quando a literatura

há de me dar ternura?

Sim: até quando serei pródigo

com a sua famosa usura?

LA 10/002

 

 

 

 

Lustrosamente

 

Nossa bobeira portátil

não deve ser negligenciada,

mas polida, envernizada,

sempre lustrosa e bem à mão.

 

Nossa bobeira portátil,

se usada à sua vez e hora,

é de uma utilidade

sem limites: questão mesmo

de vida ou morte.

 

Com ela conseguimos

passar pelo tirano...

e até com risos

( com rugidos suportáveis )

dos donos e notáveis.

 

Fazer(-se) de bobo é uma arte

como outra qualquer.

Garante sobrevivência

ante o santo e o corrupto,

e em mil outras situações.

 

Mas mesmo aqui é preciso

muita humildade... Conheci

muitos e muitos bobos que ó: ...!... ,

por tornarem demais versátil

sua bobeira portátil.

LA 10/002

 

 

 

 

Prefixo Trans

 

Se a idéia é unânime,

salta do trem,

que ele vai pra parte alguma.

Só está andando

como tudo na vida.

 

O consenso “de uma só alma”,

universal compreensão,

é tempo petrificado.

Enquanto não for transgredido,

as coisas não terão outros ângulos

de serem vistas

( e recriadas ).

 

( O unânime

é pusilânime no ver:

consciência de cardume

ou de manada.

O unânime é imoral. )

 

O tempo

é essa umidez da argila

no ponto certo

de o ser se remoldar.

Aí, sim, o homem

é barro constelado

nas mãos da Vida

e de si mesmo.

LA 10/002

 

 

 

 

Farça

 

A gente sempre pensa

que agora, sim, estamos bem:

vai haver uma trégua

e a dor nos dará descanso —

poderemos, enfim, realizar

( com certa tranqüilidade )

aquele projeto entre o sonho

e a argamassa de materializá-lo.

 

Mas não, a gente vê que não pode.

E se pudesse,

o esboço e o plano

já não seriam aqueles...

Muito granizo e sol e vento

se abateram severos

sobre as nossas esperanças

e o nosso ser ( humilhado ) que as retinha.

Agora nossa alegria é tímida

e em conseqüência pouca

a nossa força.

 

A tranqüilidade foi uma farça —

jamais maior que a angústia e as aflições.

A vida é perpétuamente aguerrrida

e quer que nos organizemos e a sirvamos

no fervilhar das tribulações —

quem aí não conseguir realizar(se)

terá se enganado até os cabelos.

É debaixo de fogo

que podemos nos remoldar

a nós e as coisas —

e só assim teremos feito-e-criado:

moldado a matéria-sonho

a escorrer incandescente

lá das forjas do ser.

LA 10/002

 

 

 

 

Carneodinâmica

 

Apresentaram-lhe Josefina —

uma nave intergaláctica.

Jeito de rosa,

pígios de afrontar santos

e dinâmicas hi-tech.

Beijou-lhe as mãos, as faces...

mas — engraçado —

a mulher não o tesou.

Não lhe mexeu com aquele gene

que ( segundo ele )

incendiava os Brocolônio.

 

Ouvindo o piano do bordel,

este, sim, o tesou ( pelo mental

de posições

saboreadas de memória...

Foi pra casa, leu um pouco,

conversou com a esposa.

Escovou os dentes, masturbou-se —

e foi dormir.

LA 10/002

 

 

 

 

Tudo Certo

 

Deu tudo certo.

Fizemos como nos mandaram.

Como nos ensinaram.

Deu tudo certo,

não para nós, —

para aqueles que mandaram.

 

Os que ( ao fazer )

não se esqueceram do humor,

do riso,

da ironia

( nem de emprenhar de humano

o seu fazer ) —

conseguiram sobreviver

em sua dignidade

enquanto gente e pessoa.

 

Fizemos como nos mandaram.

Deu tudo certo.

Só não fomos felizes.

Mas quem é que desejava

que o fôssemos?

 

Tudo certo,

como os pios do elefante

e os barridos do bem-te-vi.

LA 10/002

 

 

 

 

As Duas Cidades

 

Entre a cidade de Deus

e a cidade dos homens —

há lonjuras-loucuras

de divinuras-diabruras.

Naquela, os homens

que se esqueceram de si...

Nesta, os que buscam

diversão e consumo —

pastos-repastos de egos.

 

A cidade de Deus

e a cidade dos homens

não estão longe de nada,

nem de si mesmas —

ficam aí ( bem aqui ):

entre alma-coração.

Sim: tão juntas

e tão lá dentro

de cada um —

que ninguém sabe

quem mora numa ou noutra,

ou quem pode transitar

por ambas.

LA 10/002

 

 

 

 

Clipe-Lembrança

 

Palidez de janeiro

( era sempre assim )

borrifando chuva fina —

vidraça beijada de oblíquo...

Folhas e vento nas varandas

e o tilintar hialino de harpas eólias:

a alma do fogo fazendo o vidro cantar...

Pios de desconforto nos beirais...

Ciciar de folhas pelos ladrilhos.

Chuva mais chuva: céu escuro e névoas.

Um cheiro de pão caseiro vindo lá da cozinha

de mistura com o do café sendo coado...

E atrás deles

o grito prolongado e carinhoso

de nossa mãe:

             “Vamos tomar o nosso cafezinho!”

               LA 10/002

 

 

 

 

“Nóias” E “Oses”

 

Sempre bem entre o sonho, a nostalgia,

e a realidade a nos sopapear.

Não no que é, mas naquilo que seria —

em um não-foi, doente de esperar.

 

Um bem que traz em si sua aporia —

leite entornado num ferver-piscar...

Ou vidente que só revelaria

depois que o ver tomasse o seu lugar...

 

Enquanto isso a fluida realidade

vai moldando bonecos lá em nós —

neve, vento e seu ar de tempestade...

 

E a vida dói num virtual clicar:

o sonho desenrola o seu retrós

dentro do hoje, que é um modo de adiar...

LA 10/002

 

 

 

 

O Caso Daquele Copo

 

Aquele copo de veneno

em cima do piano ( lembra? )

não era veneno não —

mas licor do melhor.

Vovô ( chefe da casa )

tomava dele

( escondido, ali pelas

madrugadas... ) —

tomava-lhe três golinhos

que lhe mantinham a vida

sonhando...

E assim era todas as noites.

E o licor não acabava

( igual o azeite da viúva

lá do profeta Elias... ( lembra? )

 

O avô dizia ser veneno

com medo de que o tomassem...

Mantinha o copo coberto

com um guardanapo branco

encimado por uma luva

( de mão direita )

de alguém especial ( dizia )

que ele havia conhecido.

 

E explicava a si mesmo

( em pensamento )

que o copo havia

de ficar sobre o piano —

assim metabolizaria

os sons, as notas-harmonia

que o líquido reteria

e transformava em sonhos

que, se bebido em três goles,

afastava o gene da morte

de toda a casa...

E dizem que, por séculos,

várias gerações ouviram

aquele piano...

 

Até que um dia

uma empregada nova

de casa o ingeriu, noite alta...

Bebeu, não os três goles,

mas todo o copo.

E, claro, morreu —

pois libertara o tal gene...

trazendo a mortalidade

pra dentro de toda a casa.

LA 10/002

 

 

 

 

Bem Antes Deste Mundo...

 

Bem antes deste mundo já sonhávamos

dentro de Deus em nós a nos contar

histórias de viver nos interpáramos

de nós mesmos, sem tempo nem lugar...

 

Em Sua argila-amor nos remoldávamos

tão fácil como ver ou respirar,

enquanto a luz da vida preparava-nos

um modo de ( após Queda ) nos salvar...

 

Sim: nos salvar de nós em auto-engano,

antes de o mundo ser a nossa queda...

e de o homem querer-se sobre-humano.

 

Nossa glória brilhava em nada sermos...

Nossa ventura era não sabermos

da tarde... como a rosa em seu sonhar de seda...

LA 10/002

 

 

 

 

Pensar, Sonhar, Intuir

 

Pensar deixa de ser banal,

quando não se confunde com intuir —

que é esse pegar as coisas pelo vôo,

pelo se deslocarem por si mesmas,

revelando, por isso mesmo,

suas muitas dimensões

e seu inter-relacionarem-se

em pluri-realidades.

 

Ser pensado e sonhado

é coisa tão comum quanto não-percebida.

Já a lógica intuitiva é para aqueles

que desenvolveram em sua aparelhagem

( biopsico-espiritual ),

um corpo intuitivo:

o que adentra a cabeça do Outro —

e escuta os pensamentos lactantes...

 

Pensar/sonhar deixa de ser banal

quando se pensa-repensando,

quando se sonha-ressonhando.

LA 10/002

 

 

 

 

Fazer Com Deus

 

Sonhar é bom como rezar-orar,

como esperar em Deuspai,

ter a fé que tem movido montanhas,

ter o amor:

a moeda universal que nos devemos.

 

Os sonhos são a matéria escura

do Universo

que — pelo querer-imaginar,

pelo ousar-calar —

vestem de matéria luminosa

o que chamamos de realizações.

 

O ser, com sua multiaparelhagem,

é o agente metabolizador,

transubstanciador

e organizador da realidade

de superfície e fundo do Universo.

As inter-realidades ( bem mais complexas )

são da alçada de outras hierarquias...

 

Projetar e mandar para o futuro

( sobre a plataforma do hoje )

nosso fazer-criar

e confiar-lhe essa tarefa lúcida —

eis o segredo de se fazer com Deus.

LA 10/002

 

 

 

 

Agora

 

Agora

aprenderemos do avesso,

depois viramos nosso aprendizado

do lado de usá-lo —

de modo que tenhamos

a via alternativa

que não obriga a isto nem àquilo,

mas segue com o ser a ser-se:

o buscador sendo o que busca —

a busca sendo a essencialização

da vida em sua ôntica jornada.

 

Agora

aprenderemos com as pedras

que o silêncio tem mais história entre os lábios

que o bater dos tambores

tagarelando com as sombras...

Aprenderemos com elas

que o mistério é sem bocas,

mas guarda todas,

todas as provisões do conhecer-viver.

E que — para adentrá-lo —

é preciso saber que a luz

vem das sombras para o norte do ser —

estação tempo-consciência: a um tempo a nave

e a impulsão de Deus nela.

 

Agora

aprenderemos a desaprender

para nos despojarmos das coisas

e de nós mesmos:

sabendo que Deus nos é,

e sabendo não-saber —

estaremos vazios

e com a intuição aberta

para os lados do reaprender

em que o uni não esconde o verso,

mas se faz via transitável —

multiversal:

um ver além das sombras e da luz.

LA 10/002

 

 

 

 

Ah-Ah-Ah-Ah-Ah-Ah...

 

Ruim com ela ( ou ele )?

Porém, sem ele ( ou ela ),

nem se teria com quem

ser infeliz.

Adeus verdades

de mentiras.

Fidelidades

de enganos.

Adeus possibilidades

de darem certo as incertezas.

Adeus sentido

do sem sentido.

Amizade requentada.

Adeus Cacilda

de Carvalho.

Delícias do amargor!

Defuntos masturbados

pelo papear dos vivos.

Desesperanças

da esperança.

Nada somado,

igual a tudo.

Angústias

de lutar por não tê-las.

Arlequim fingindo não saber andar

pela maroma...

Nexo

de não se ver nenhum.

Amor

de desamores,

comendo folhas de amora.

A quintessência

do saco cheio.

Desesperos rechonchudinhos

de esperança.

Tudo somado,

igual a nada.

Inverno

de primaveras

e primaveras

sem flor nem chuva.

Adeus bonecos de neve

comendo amendoim

em tempestades de verão.

Adeus dúvidas e cismas

em teatrinhos de ser-não-ser.

Bobagens, adeus bobagens

tão sérias.

Conversas

de masturbar o tédio.

Ciúmes tão gracinhas

de não se ter nenhuma dúvida.

Ressentimentos gordinhos

a espreguiçarem

fazendo ah-ah-ah-ah-ah-ah-h-h-h-h-h-h...

Adeus flatos e roncos.

Adeus ridículos —

a beleza do amor.

Adeus adeuses.

LA 10/002

 

 

 

 

Efeitos

 

O mundo faz caretas:

diz que os frutos

( de seu pomar )

são por demais amargos,

azedos e venenosos.

 

Todo o globo os plantou,

virou as costas,

e se esqueceu.

Quando ergueu a cabeça —

ei-los numa bandeja:

cismos-motos-tempestades-secas-tufões...

... formas-envenenamentos-tribulações...

 

O mundo faz caretas,

e pergunta cínico:

Quem fez isto?

As crianças da escola

lhe respondem:

Foi você, seu malandro.

Você vem fazendo isso

impenitente e renitente —

para pilhar e empilhar

o seu Capetalismo.

LA 10/002

 

 

 

 

Convocação Pra Não Fazer

 

O refinamento humano

depende de saber

manejar bem a máscara.

 

Nossa arrogância de vidro

deve ser recolada

a cada tombo —

magistralmente reparada.

 

Semelhante ao bem-te-vi,

a gente vive pensando

que vê.

 

Se ao menos nada fizéssemos,

no mínimo seria o mundo

uma tantada melhor.

 

Levar a sério o homem

virou a coisa mais séria —

e de tal modo, que faz rir.

 

Chegou a hora

de fazer nada.

Gostosamente nada.

LA 10/002

 

 

 

 

Normal

 

O amor vai mal,

vai muito mal?

Sossegue: é assim mesmo —

pois o contrário disso

é que seria anormal.

 

Desanime não, Ofélia:

quanto pior,

mais normal.

O amor nunca teve nada

para dar certo.

Do seu deserto

não flui senão nonada:

inocência cremosa,

pasteurizada rosa.

 

É sempre assim, não-amada:

é sempre por um triz

que não se é feliz.

Mas há os que conseguem sê-lo

dentro da infelicidade.

Explico: esses tais superaram

a realidade —

imaginam venturas

e vivem alegrias

num lugar lá em si mesmos

cuja senha só Deus sabe.

Sim: inventam e vivem

suas felicidades

de tal modo imaginadas,

que jamais se perguntam

se são mesmo felizes.

 

Sim: o amor, não-amada,

anda uma merda.

Uma merda que adoramos.

LA 10/002

 

 

 

 

Escrevo-Escavo

 

Escrevo pra raspar a superfície —

trazer à tona o que se achava embaixo,

num vôo que se resguarde da imundície,

ou, se a tocar, se lave no riacho...

 

Muitas correntes e funduras muitas,

trançadas de reais irrealidades —

pois que mudando estão, sempre fortuitas

ao não-acaso de outras variedades...

 

Palimpsestos que escavo, palimpsestos

trazendo à tona gestos manifestos

de sonhos re-sonhados e reescritos

 

de seu avesso para um recomeço

gravando no granito seus grafitos

enquanto mais me lembro do que esqueço...

LA 10/002

 

 

 

 

“Oses”

 

Nossas “oses”

vivem comendo nossas nozes

com manteiga e bananoses.

Ficamos com as cascas

mais nossas caspas

( se é que ainda as há ) —

sobre mil flashes e closes

de altos virtuoses

a desenhar seus mapas

com xampus de frutoses

de belas uvas

a que corremos: de capas

e guarda-chuvas —

isto é, quase invisíveis,

mas aumentados...

de tão sensíveis.

LA 10/002

 

 

 

 

Parede Sem Porta

 

Aprenderemos a ser sós

e não lecionaremos

como fazê-lo —

aliás, não saberíamos.

 

É tão louco ser só

como crer que loucos são os outros.

Tão enfermo ser só

quanto pensar que não se é.

Tão absurdo ser só

como roubar de si mesmo.

 

Se bem que ser só,

ser só não é difícil.

Muito mais complicado

é a gente não sê-lo —

não sê-lo nem de verdade,

nem de mentira.

Tão divino ser só

quanto o diabo gosta.

Sim, bem ao lado

de nossa arrogância de vidro

( diga-se: toda remendada... ),

aprenderemos a ser sós —

e a quebrarmos a cara

nessa parede sem porta.

LA 10/002

 

 

 

 

O Avesso De Viés

 

Se fazes e não te sentes bem,

então deixa que outro o faça.

Muito cuidado pra não seres

o que os outros esperam de ti.

 

O Manual de Bons Modos, aquele

que oito entre dez te dão pra decorar —

aceita-o, só se for impresso

num papel suave e bem macio.

Mudar para agradar aos outros

nos torna desagradáveis para nós.

Há um grande interesse

em que nosso ego se anule —

os mandatários e os gurus

vivem buscando isso.

Isso, aquilo e muito mais.

 

Oito entre dez de teus amigos

fazem de tudo

pra que te sintas um merdinha.

Já notou

como adoram lecionar virtudes?

Os que gostam “muito” de nós,

gostam porque os temos bajulado muito.

E quando notamos isso,

o sorriso desses tais

já não é tão comprido e fofo.

Nem por isso

vais dizer que amas os cães

alucinadamente...

Ama-os com calma,

senão te mordem.

 

Vou pondo um ponto nisto.

Fui expelir um daqueles...

e borrei.

.............................................................................

Licença.

Tchau.

LA 10/002

 

 

 

 

Nosso Poeta

 

Puseram o bronze

do nosso Poeta

entre a praia e a calçada.

Nosso Poeta sentado

em posição pretexto

de chamar poesia...

Gorjeando silencioso

pra acasalar-se

com a vida.

 

Bela homenagem.

Gesto-ternura,

dom-agradecimento.

Senti-me mais povoado

e ( metonimicamente )

acompanhado.

Esse bronze tem alma

porque é de um morto

que vive.

 

Na mesma noite,

merdaram na estátua

tintas horríveis.

Não foram pombos —

foram homens

que merdaram no bronze.

Homens ( que vivem

neste mundo

mortos )

merdaram no bronze.

É que essa gente

aprenderam a pensar

e a sentir

por um lado diferente.

LA 11/002

 

 

 

 

O Engraçado...

 

O engraçado é que a gente entende a vida —

lhe arranje explicações inexplicáveis.

Depois de uma subida, uma descida...

e causa e efeito... e tramas logicáveis...

 

O engraçado é que a coisa compreendida

intua conclusões quase impensáveis...

Uma chegada é filha de uma ida

a anteportos em céus pós-navegáveis...

 

O engraçado é que a força de saber

tenha por base o mar de ignorância

a marulhar seu sábio não-saber.

 

O engraçado é que a gente até invente

um ser feliz com muita exuberância

numa felicidade quase ausente.

LA 11/002

 

 

 

 

A Bordo

 

Estamos todos embarcados,

mesmo os que vão para opostos.

Essencialmente embarcados,

mesmo em nossos encontros-desencontros —

a caminho de mais ser.

 

A vida nos quer outros.

Não nos aceita assim bandoleiros —

trabalhando ao contrário

do seu fluir...

 

Sim, temos de aprender ( em nós )

seu rumo e nexo —

e caminharmos firme

para o norte do ser.

 

E olha que já partimos

bem antes de o mundo ser.

Estamos a bordo da vida

desde o primeiro sonho

de Deuspai.

Estamos indo todos para um porto

que só existe em nós

e, claro, em Deus que nos é.

LA 11/002

 

 

 

 

Lá-Porvir

 

Vivemos no país do futuro.

Nossa felicidade,

projetos e tudo

dependem desse chão de nuvens.

O diabo é que não há estrada

( nem por sonho, por terra ou ar )

para chegarmos lá.

De sorte que ficamos

nesse futuro-lá

ou lá-futuro — bruma virtual —,

bem ali, sem onde e quando.

Sim: sem lugar-tempo,

ficamos em lá-porvir.

Ali — um dia — seremos ( todos )

felizes —

te juro, minha Rosa.

LA 11/002

 

 

 

 

Chiliques Perversos

            ( Ou Nem Tanto )

 

Ter opinião

já foi perigoso.

Sim: permitir-se pensar,

sonhar —

dava cadeia.

Queriam-nos

pensados-amém,

sonhados-que-assim-seja.

O não a isso

era subversão.

O Estado,

a religião,

a cúpula —

formam os mandatários:

o poder.

Polícia.

DOPS.

Prisão.

Exílio.

( Na religião

só as “Flores de Moscou”

nos ajudaram. )

Capitalização

do nome.

Fama.

Autoritarismos.

Detratação.

Intimidação.

Perseguição.

Fichação.

A vida

por procuração.

Os mauricinhos

tinham o paraíso

do exílio...

Voltavam heróis

pra vida inteira.

Os zequinhas

ficavam ( no brejo )

sujos de coaxos

e pancadas.

Palmas pra eles:

pros maus, pros zés.

Um tempo chique...    

LA 11/002

 

 

 

 

Tem Dono Não

 

Quem é que disse mesmo...

que o sertanejo era um forte?

Será que era deveras,

ou é elogiado assim

pra dar uma de durão?

 

Mundo, mundo, jovem mundo,

de velho só tens a bunda

que de sentar se achatou.

 

Fizesses tu, ó mundo,

como faz o sertanejo —

cairias de cócoras.

E sentar nos calcanhares

jamais deixa ninguém

com os atrases quadrados.

 

Sertaneja, ó minha gata

( minha gata do mato ), se soubesses

o quanto Tião te gosta —

não farias mais doce

para o sonho do mancebo.

 

Quanto a você, Teresilda,

cuide bem da hipotenusa,

que tô chegando

com uma fome dos catetos.

 

Mundo, mundo, louco mundo,

te gosto assim furibundo

e bem bebinho...

Sabe por que, mundo louco?

Porque fiofó de doido e bêbado

tem dono não.

LA 11/002

 

 

 

 

Tráfego Mambembe

 

No país do futuro,

há coisa mais sem-graça

que o coração da gente

viver por sobre as nuvens

de suas esperações?

 

As grandes aflições

vêm sempre dos amanhãs.

 

Os profetas insaciáveis

fabricam visionários

com esperanças ópios:

funambulesco-nefelibáticas —

e entre a maroma e a maromba

se nasce-vive-morre,

sem se atingir o outro lado...

E breu, breu nos enormes sapatos:

o tráfego mambembe desses sonhos

( dos reciclados sonhos

sempre arranhando suas esperanças... )

vai desde a infância até o beleléu

de cada um dos esperandos,

ou melhor: esperançandos.

LA 11/002

 

 

 

 

Cadê?

 

Cadê a fruta do conde

daqui?

O sanhaço comeu.

Cadê o sanhaço?

Foi sanhaçar com as sanhaças.

Cadê o sanhaçamento?

Virou sem-vergonhação.

Cadê a sem- ...?

Está nos ovos.

Cadê os ovos?

O frade bebeu.

Cadê o frade?

Foi mulherar.

Cadê o mulheramento?

Virou orgasmos.

Cadê os tais?

Estão em duas camisinhas.

Cadê as ditas?

O frade deu descarga.

LA 11/002

 

 

 

 

Leve, Bem Leve, Darling...

 

Hoje o mundo prefere

uma coisa assim mais light...

Aquele “amor” pesadão

já faz correr helenas

e menelaus.

 

Eu, hem Rosa!?

Eu, hem José!?

Vamos fazer da glosa

um spray antichulé.

 

Hoje os viajantes preferem

os novos trens atômicos,

ou algo dígito-mental...

O carvão e o vapor

rimam, sim, com paixão e amor,

mas, no tirante a oxítonos,

já não têm nada a ver

com esse “ ão” ou “or” —

tal como roselau com as calças,

ou xoxeda com as rendas.

 

Os mesmos tempos

que mudaram Helena

também mudaram Menelau.

...............................................................

Maneiro! Bem maneiro.

Leve, bem leve, darling.

Yes: a love very, very light,

very soft-nice...

Nada de coisa pesadona

nem sentimento apegadão.

Sim: fora o fundamentalismo!

Apenas o fundamental.

LA 11/002

 

 

 

 

Profundamente

 

Respirarei profundamente

até que os meus pulmões me digam:

Nem só de ar precisamos,

mas de toda palavra

que sai da boca de Deus.

E não há como não transformar

a casa de nosso Pai

em algo ( em nós ) a carregá-la

aonde quer que formos —

sentir seu cheiro de pão e vinho

lá nas varandas de Deuspai

que brilham cá em nós: em vindimas

e trigais de um novo pão e vinho.

 

Respirarei profundamente —

até que o coração me diga:

Sossegue que sou feliz:

eu conheço o caminho

da casa de nosso Pai,

trazemo-lo no mais fundo do nosso ser:

veste a tua alma de bodas —

um dia iremos ter com o Senhor:

as lanternas cheias de óleo —

e o coração também ungido em óleo:

iluminados, portanto,

o por fora e o por dentro

de um libertar-se do mundo

e de nós mesmos —

deixando a casca do auto-engano

pelo caminho

e agora seguindo — asas —

para o centro do nosso Eu-Profundo.

Respirarei profundamente

até que escute em meu sentimento

que o Pneuma-Sonho se hospedou

lá numa célula em nós.

LA 11/002

 

 

 

 

Intracaminho

 

Não buscareis sentido algum naquilo

em que pensar-sentir não sejam um,

e a intuição, — o respaldo, em tom-sigilo,

que dá aos dois o lume do incomum.

 

Não buscareis tempo nenhum tranqüilo

que vos dê paz ou discernir algum

a oferecer reconfortante asilo...

mas contareis com a graça de Ego Sum.

 

Os vossos pés poreis no intracaminho —

passada por passada no cadinho

de elaborar um interior sentido

 

que se abra em flor no rumo renascido

de quem achou seu norte bem ao lado

de haver partido em seu já ter chegado.

LA 11/002

 

 

 

 

Um Solilóquio Eterno...

 

Um solilóquio eterno a desfiar-se

como um rio a correr pelas criaturas —

voz de nenúfares com o disfarce

de marulho a escavar-se em mais funduras...

 

Um dizer em silêncio a enraizar-se

lá dentre argila mole e pedras duras.

Um grito a procurar a própria face

e só achar funduras e lonjuras...

 

Lábios a bendizer em orações,

bocas a praguejar em tom imundo,

sonhos a vomitar expectações...

 

Fúrias de vento uivando no sem fundo

de pensamentos-sentimentos, fúrias

de multilóquio em rúbidas luxúrias.

LA 11/002

 

 

 

 

Praça Da Liberdade

 

Cansaços, mágoas se deitaram juntos —

copularam gemendo a noite inteira...

e ficaram murchinhos de canseira,

moles, largados como dois defuntos.

 

Cansaços, mágoas e outros mais assuntos

ouviam cantos d’águas de goteira...

e a noite toda aquela baboseira —

a carne fina e crua de presuntos...

 

Cansaços, mágoas engarfados todos

no gozo devagar de méis e lodos,

em “oses”, “nóias” de um prazer enfermo.

 

Cansaços, mágoas num doer sem termo...

Já descansados, gemem desmagoados,

pagos em iene, orgasmos repuxados...

LA 11/002

 

 

 

 

Equívoco

 

Faz de conta que a gente é até feliz

dentro da angústia e de aflições diárias.

Se não somos, não fomos por um triz —

e disfarçamos a coçar nossas mamárias...

 

Faz de conta que existe o chafariz

dando pra aquelas ruas solitárias...

e que as crianças, ainda as mais precárias,

adoram dar os pés a seus xixis...

 

Faz de conta que os nossos muitos dons

operam menos em maior sabença

que em nosso não-saber em vários tons.

 

Faz de conta que o amor é um vagabundo —

existe para aquele que não pensa...

mas que é o mais belo equívoco do mundo.

LA 11/002

 

 

 

 

Segue!

 

Segue o caminho sem caminho —

aquele que leva ao nada

do avesso

Ali serás infeliz

que — desvirado — dá feliz,

ou quase

Que mais hás de querer

pelo chão do provisório?

Sim: que mais

além de tudo?

 

Se falo sério?

Claro que sim

Sério como o riso,

a gargalhada

ou a piada —

no exato instante

de se quebrar

o sério inútil,

sério nocivo

 

Segue o caminho sem caminho —

aquele que conheces

em alma-coração

Ou segue aquele repisado

e batido pelos pés

que não trazem em si

nenhuma lâmpada

Pés dos que são pensados,

sonhados

pelos donos da invernada

 

Segue,

segue caminho.

Ou é verdade

que a gente pode não andar?

LA 11/002

 

 

 

 

Sinais

 

As noites ficarão intermináveis,

os dias longos-longos como o mar...

Os anos passarão insofismáveis:

rápidos-rápidos, num cochilar...

 

Sonhos, necessidades recicláveis

num eterno moldar-se e remoldar.

Mudanças, feitos inimagináveis

refazendo-se em nós, no meio e no ar...

 

A essencialização de toda a vida:

o ser a carrear sua consciência

e quintessenciá-la repetida,

 

e sempre outra: a vida autonarrada

no ser a ser-se em seus canais-fluência —

aberto em dons ao longo da jornada.

LA 11/002

 

 

 

 

Cirandas

 

Tempos mortos, os braços sobre o peito.

Rumo descarrilado, hostil sentido

impondo-se canalha e pervertido:

à solidariedade contrafeito.

 

Grupos, cartéis, conchavos — eis o feito

do fazer social em si retido:

toma-dá-cá a cirandas reduzido,

num pilhar-empilhar insatisfeito.

 

Tempos “tolos”, a repartir a fome

e a concentrar na cúpula a riqueza.

Panos de chão é a justiça humana.

 

Tempos sórdidos, a semear pobreza

que come o que a luxúria lhe descome...

Tempos maus no Planeta das Bananas.

LA 11/002

 

 

 

 

No Espelho Das Águas

 

Ler, ler tudo, reler, transler o mundo,

a nós mesmos num ler em releituras —

e, com o ler, escrever em reescrituras

do chulo ao santo, do facial ao fundo.

 

Ler a letra e o antes dela no segundo

anterior ao depois de transleituras,

e escrevivê-las n’alma de escrituras

incorporando dons de vagabundo...

 

Ler-escrever-se na haste do momento

em que a rosa diz sim ao desfolhar-se

e a ter como suporte o próprio vento...

 

Aprender do momento a ler-narrar-se

sabendo de soslaio o gozo-intento

de ver-se a sós consigo face a face.

LA 11/002

 

 

 

 

Água E Vinhaço

 

Colhemos as uvas.

Foi pródiga a vindima.

Fizemos vinho, sucos,

passas, geléias...

 

Estendemos nossas canecas —

encheram-nas de água.

Estendemos as mãos —

encheram-nas de vinhaço.

 

Sempre colhemos as uvas,

e são pródigas as vindimas.

Sim, todo santo ano

as vinhas se carregam

( orelhas, braços e pescoços )

de infinitos pingentes.

 

Dizem-nos sempre

pra darmos graças a Deus

por termos água e vinhaço.

LA 11/002

 

 

 

 

Tudo Isso Ou Nada Disso

 

A poesia é a palavra onto-espelhada

por fora da verdade

e por dentro da beleza.

É o pétreo florescido

de cabeça para baixo.

É a amada que não veio

porque já estava aqui.

É a amada que se foi

porque fomos com ela.

Poesia é um sem-querer

que acaba querendo tudo

aquilo que nem queríamos...

É a boca cheia d’água,

não pela mexerica,

mas pelos deliciosos

bolinhos da vizinha —

feitos com puro amor.

Poesia é o que a rosa

nos diz pela manhã,

mas pela tarde

já não sustenta...

É o que a rosa revela,

não de si,

mas de nós.

É aquela sensação

que pensa para sentir

e cai do poste

porque tem medo

de um dia subir lá.

É o beijo da mulher

que sentimos que foi dado

na boca de outro homem —

mas nem por isso

deixou de ajudar em muito

os trabalhos do andar de baixo.

Poesia é escorregar

na penumbra bem encerada

e cair no divã

onde dormia a psicóloga

que fungando articulava

o nosso nome...

Poesia é tudo isso,

ou nada disso —

pois para ser

nem precisa de nada:

está sempre

num trans-si-mesma.

LA 11/002

 

 

 

 

Grandes Momentos

 

Mambembes de incertezas,

eis os homens caminhando

pela maroma do momento.

 

 

Firmarem-se por fora,

não dá —

só têm nas mãos a maromba...

Por dentro, impossível:

só realidades virtuais,

a grande nebulosa ôntica —

sem chão nem teto ou beiras...

 

Aliás, grandes momentos

são mesmo assim:

um intervalo

de vida ou morte.

 

É preciso sonhar humanidades,

inventar possibilidades

de aventuras-venturas, —

sair-se em busca de um sentido,

de um nexo-finalidade:

o significado

de dentro para fora.

A utopia

faz o sonho ter mãos

e essas mãos

agarrarem-se na prancha.

Faz a pessoa

sair de si,

ou expandir-se em si mesma

e dizer-se convicta:

Não, não é outro lugar,

outro ser ou pessoa:

são os mesmos ( recriados )

e paridos maiores —

muito, muito maiores.

 

 

A fé

constrói atalhos.

A esperança

faz o barco ( que estamos a construir )

já ter chegado.

O amor

transforma as coisas em verdade.

E o homem

precisa recordar

que tem em si

o tesouro de ser homem, —

é só escavar-se.

LA 11/002

 

 

 

 

Fazer ( nada )

 

Temos todo o tempo do mundo.

Porém, pra quê?

Para fazermos nada.

Melhor: absolutamente nada.

Mas quem quiser fazer, faça, —

contanto que saiba

que está fazendo nada.

 

Fazendo nada,

você faz sua parte —

nada.

E fazendo nada,

você não se omitiu,

você fez —

fez nada.

 

Fazendo nada

ou não fazendo  —

você faz ou não faz

nada.

Mas sabe ( você sabe ):

seu fazer ou não fazer

é sempre nada:

um nada feito

ou um nada

não feito.

 

Sim, a vida não depende

de nós,

mas sim o ser

depende dela —

para ser em ser-se,

precisa ir se filtrando

nela e no tempo —

nela, porque é nave;

no tempo,

porque é consciência a mover-se

para poder individuar-se

e ver-se no processo

dos três espelhos.

O mais

( sem essa compreensão )

é nada —

um triste fazer

ou não fazer

nada.

LA 11/002

 

 

 

 

Maravilhoso Desafio

 

Se no ápice da admiração

por alguém,

no auge do respeito,

pudéssemos congelar

a amizade —

por certo teríamos uns dos outros

a mais bela ( embora a mais falsa ) imagem.

E este mundo seria

o mais irreal dos mundos.

É no travar do combate

do dia-a-dia

que a identidade se plasma,

a consciência se forma

e o caráter se molda e remolda.

Em meio a mudos atritos,

a silenciosos embates

é que adentramos

esta sala de outros

              que nos espelha

              mil e mil perfis

              em gestos-silhuetas interiores

a nos mostrar uma só massa

de tristes precariedades,

de onde cada um — como indivíduo —

busca escapar...

.......................................................................

Nada bonito o que somos,

melhor: o que estamos-sendo...

Quando nos é dado esse olho de ver(nos),

então vemos a nossa incapacidade

para o maravilhoso Desafio

do Evangelho...

Nesse degrau da escada

já dá pra ver que sem Perdão

( sem o Plano já realizado

entre Pai-Filho-Espírito ) —

não nos restaria nada...

 

E o que fazer?

Nada. Está tudo feito,

se crermos no regate:

em seu processo crístico.

Da estrada de Damasco

nos veio um homem terrível,

que nos transformou em papinhas

o Velho e o Novo.

Trocou ser grande

por ser pequeno...

e foi o maior dentre os seus.

LA 11/002

 

 

 

 

Vagidos

 

A criatura

dança entre o caos,

a ordem

e a ânsia de organizar-se.

 

Uma tensão constante

fá-la criativa

( ou a empurra a isso ) —

quer-la a expandir-se

de seu núcleo para fora —

microcosmo no Cosmos.

 

Entre pasmo e terrificado,

o homem olha para o infinito —

seu mistério o desafia:

é beijo e engolimento,

adoração e horror,

devoção e insegurança —

divinuras diabólicas,

diabruras divinas:

beleza horripilante.

Loucura por querer saber:

curiosidade enferma.

Terrível harmonia.

Verdade penetrável

só pelo des-saber.

 

O Universo é a nossa casa

onde Deus nos é

em transessência

de Pai-Filho-Espírito.

LA 11/002

 

 

 

 

Rosa-Rosinha

 

Muito sol não, Rosinha, que evaporas...

Não permitas que o mundo desidrate

esse rosto, essa boca de tomate,

esse orvalho dos lábios das auroras...

 

Muito sol não, menina, que descoras

esse papel de seda rosa-mate

das tuas faces... esse chocolate

entre teu rir-olhar, jeito de amoras...

 

Não aprendas bobagens com o vento,

que é desbocado igual um arlequim...

nem vás entrar, menina, pro convento...

 

Não ligues não para o que as rosas dizem...

nem deixes suas pétalas te pisem

os pés por sobre a grama do jardim...

LA 11/002

 

 

 

 

Longos-Longos

 

Nossos dias, minha Rosa,

não tenham pressa: sejam

preguiçosos e intermináveis.

A sério, só o que diz o padre

antes de beber o seu vinho

e reparti-lo com Doraci,

a mulher do padeiro —

homem sisudo

e terrivelmente forte.

Doraci é empregada

da casa paroquial,

e dizem que é solidária,

e topa,

adora um mutirão —

sim, mulher dada, e gostada

por quantos a conhecem.

 

Sejam longos nossos dias: longos-longos,

e bocejados de preguiça —

fungados de coça-aqui,

coça-acolá,

aí... assim, aí... assim.... assim.... aí!...

comer-beber-dormir

e, claro:

cheios daquilo-lá.

LA 11/002

 

 

 

 

Obóvios

 

As coisas se repetem

de modo nunca igual.

( Nem por isso menos chato.)

O estalar de um orgasmo

é infinitamente desigual

a todas as jabuticabas

que você já mordeu.

( Mas já mordeu.)

 

Um olhar sem-vergonha

( que nos afaga e sugere )

é sempre deliciosamente único.

( Mas sempre. )

 

Bordel, igreja, poste...

Cada vez que se ouve uma palavra,

ao redor do significado primitivo

associam-se idéias carrapatos...

( E como coçam! )

 

As coisas se repetem,

mas não se comprometem.

( E, no entanto, se metem. )

Por isso é que é tão bom

( e tem dado tão certo )

inventar felicidades.

LA 11/002

 

 

 

 

Caminhadas

 

Sempre que a via

ficava cheio até às tampas

de longas, demoradas intenções...

E eu não o criticava não,

nem ao padre Paulo,

com quem caminhávamos às tardes,

e que — em ocasiões de sufoco —

sempre citava o adágio do Lácio:

Forma flos, forma flatus

( A forma é uma flor, a beleza um sopro ).

Bom padre Paulo. Morreu moço.

Um molecão o fulminou ao levar-lhe o relógio.

Já o Mário, o que se babava

por ancas faraônicas,

casou com um gracioso pígio...

Fez um filho e — ao tentar erguê-lo do berço —

morreu.

Eu... continuo fazendo textos

pra boi mugir e dormir.

LA 11/002