NA HASTE DO HOJE
Textos 2
Laerte Antonio
Humanosas
As pétalas nos têm contado aquelas mesmas histórias que contamos a elas.
Sim, entre rosas e pessoas a grande diferença é não havê-la.
( O vento nos conhece bem, a nós e a elas. Bisbilha assíduo — chorando pétalas, soprando o pó...)
Realidades desfolháveis, flatuosas caracterizam os dois lados — seres humanos e rosas.
Conosco aprenderam a falar. Com elas inventamos delicadezas-sonhos.
Claro que sim: as rosas contam o que ouviram de nós. Se nem sempre o que dizem é verdade, é porque se parecem demais com a gente. LA 11/002
Árvore Da Vida
Demais complexa, a vida humana comporta multidimensões. Por maior que seja o cientista, há dimensões da realidade que o especular racional jamais pode alcançar. O intelecto sucumbe e se pueriza quando entra no campo paralógico e multiversal da religião. Aí se é guiado pela mão do Verbo, ou não se é. Aí se tem o Espírito, ou a palavra é morta. Aí se tem o mistério como fonte de provisões — ou se tem nada. Aí se vive de fé em fé, de esperança em esperança, de transcender em transcender — ou não se vive. Aí trocamos “sermos” por Deus nos ser — ou não se é. Enxertamos nossa vontade na Dele — ou estaremos de costas — permanecemos zambujeiros. Até que rebente em nós aquele ramo de Jessé — então, sim, aberta em flor, a vida será trigo e vinho naquela ceia em alma-coração — lá em varandas de Deuspai. LA 11/002 Falta
Não é bem o coração que dói, mas o lugar onde ele não está — um buraco onde ele falta, pois, não estando, dói. E muito. Talvez seu duplo etéreo é que doa... Dói porque ainda é em outro estado-ser.
Lá no extremo do meu riso tento pôr tudo no lugar — ao menos ajeitar ser-não-ser no seu nenhum lugar ( ou todo ), isto é: na ubiqüidade de todos os cás-e-lás-estarmos sobre horizontes que imaginamos com barridos de elefantes pelo verde ou penhascos com rosas ( aquelas das amadas... ) a se dobrarem, desfolharem com o vento na madrugada com estrelas sonsas indo dormir, e acenando para moças bateando elétricas com as mãos nos quadris, e bêbadas ou drogadas, a reluzir seus piercings na língua, queixo, clitóris e nos lábios da boca e xota uivando excessos... A carne toda uivando, vomitando excessos.
Algo nos falta dolorosamente. LA 11/002
China
Nem Marx, nem Mao. Chega de pau no lombo. Agora é pau no corpo todo. Na alma toda. É pau global: vão dançar a Ciranda. Até o panda. Sim: debaixo de pau. LA 11/002
Nem Sei...
Nem sei se fora bom pensar em ticom essa chuva fina em tarde escura... Já cantou a doutora saracura, e piou sabichão o bem-te-vi...
Nem sei se fora bom comer pequi com esse arroz soltinho de mistura... Há que morder a fruta com ternura ou estrepa até a boca do Saci.
Não sei se posso misturar goiaba a um tempo com caqui, jabuticaba... Manga com leite, mãe, já não faz mal...
Não sei se posso reunir Teresa com Joana e Joaquina à minha mesa — sem que nada aconteça de (a)normal... LA 11/002
Companheiros
Salvar o riso, o velho companheiro, guardar a fé, atalhos de chegar... e resguardar o amor, mantê-lo inteiro junto ao humor, que vai nos ensinar
a ver a frustração como um guerreiro que sabe não ter tempo pra chorar... mas defender-se, e já ser mais certeiro — sem pensar em perder nem em ganhar...
Sim: lidar com os limites e as derrotas é preciso aprender... Andar de botas pela maroma bamba que balança...
A fé, o amor, o riso: um bando amigo, que deve andar com um dom bem mais antigo — devem seguir ao lado da esperança. LA 11/002
Um Pouco Mais
A ventura começaquando o filme termina. E vamos para casa esperando ( breve ) assistir a outro, sempre a mais outro — pra que, talvez, com seus finais, possamos construir uma felicidade que dure um pouco mais — e não derreta no palito... LA 11/002
Sacis
Pensar, ou ser pensado. Sonhar, ou ser sonhado. Enquanto o mundo nos pensar-sonhar — seremos como o Saci, um Saci interior: viveremos aos pulos... sem podermos caminhar. “Nossos” pensamentos não serão nossos. “Nossos” sonhos não serão nossos. Nem nossos nem de Deus — mas dos homens que tangem a boiada. .......................................................... Não raro somos reféns de nós mesmos. LA 11/002
Sete Tercetos
O que não soube fazerde seu saber uma festa — de que lhe adiantou saber?
Quem não soube fazer de seu fazer alegria — de que lhe valeu fazer?
Quem desprezou de Eros o que ele pode ofertar — onde encontrou melhor?
Quem não pôde inventar a sua felicidade — a encontraria na inveja?
Quem trocou sua loucura pelo medo dos “normais”— o que ganhou além de nada?
A quem nega a si mesmo o direito de acovardar-se — bastam-lhe as palmas dos astutos?
Quem teve medo de sonhar e esforçar-se por vivê-lo — o que é que lhe restou? LA 11/002
Sociais Quiasmas
Pela caatinga a fora. Quebradiçosgravetos estalejam sob os pés. A paisagem, cactácea, feito ouriços, enche os olhos de um ver que é de viés...
Rachados, como torta, chãos cediços se estendem como fossem rodapés... Nenhum verde, nenhuma folha ou viço descansa o olhar. Fornalha em aridez.
Fantasmas e fantasmas nos caminhos, levando água ou montando alguns burrinhos — fantasmas de carne e osso, mas fantasmas...
Uma gente vivendo seus heroísmos de miséria: desvida em escravismos bem planejados em sociais quiasmas... LA 11/002
Sim: Ele Sabe O Caminho
Sim, Senhor: o saber é uma fruta com bastante sabor. Não dá mesmo pra não comê-la — e sempre que a comemos ficamos com ciência de tê-la comido e a metabolizado em consciência: nem mais nem menos que o essencializar da vida em novas gamas de ser em ser-se — de transcendência em transcendência dentro da humana transessência.
Sim: Senhor: caídos, construímos a volta em Tu nos seres. E o nosso coração sabe o caminho — pelo cheiro do Teu pão e o buquê Teu vinho. LA 11/002
O Suporte Do Ser
O presente é um suporte( um lugar impossível ) — oficina-experimentação: um tempo a fecundar o focar da jornada. Nele, aproveitam-se as bases do passado — a idéia do para frente e do como. No amanhã-esperança mora o futuro e sua argila, que é sonho-inseminação.
O hoje é o tempo que o Senhor fez. O ontem e o amanhã são metabolizações do ser em ser-se.
O hoje são mãos entre a fé e a ousadia — a vida essencializada em direção ao sonho-mais. LA 11/002
Do Lado De Ninguém
Vamos por aqui, minha Rosa, pela “paidéia” — pelo geral e pela liberdade de a gente se soltar de todos os cipós. O neutro ( aqui-agora ) é visto com o rabo do olho. Querem-nos colados, amarrados a isto ou àquilo. Coisa triste, Rosinha, querem-nos pau ou pedra ou espuma... Querem-nos de um lado ou de outro. Pela margem espiral, — não! Quem não vai por aqui ou por ali — é fraco, é frouxo, é leviano — sem caráter. Não confiável. E geladeira nele! Senão, fogueira! Ou cassação de cidadania: louco. ( Quando querem anular o outro, chamam ao homem de louco, à mulher chamam de puta. E isso ainda funciona!... Desde à época de Cristo: “Ai de quem chamar raca a seu irmão!” )
Nós vamos por aqui, minha Rosa, numa soltura pai-d’égua — pelo geral e pela liberdade de nem pensarmos em liberdade — quanto menos em amarras ou em bandos imorais... Sim: pensamentos impingidos em grupo, grei ou bando são coisas bem enfermas.
A sociedade anda invivível. Fiquemos longe, minha Rosa. Longe, do lado de ninguém e de margem nenhuma — mas no centro do mundo e girando em espiral...
Sigamos covardes e vagabundos e como grilos que se prezam: cantando ou não — mas na moita. LA 11/002
Refratários
Nascemos refratários? Somos feitos assim ou que diabos-frustrações é que nos levam a sê-lo? Sei não, seu moço, se nem Deus se preocupa com isso por que haveríamos nós?...
Meu Deus, que coisa boa, que delícia sorrateira me fora não sentir este tédio — para o qual não tens remédio, senão mo terias dado, ou não, meu Pai?
Tenho um lugar cativo — bem em cima do muro, quando não: bem no meio do rio a rodopiar — assim não tenho margem.
( Bobo da corte, tenho a honra de distrair a princesa quando o marido lhe vai pra guerra. )
Invento minha alegria a cada dia, de noite a desinvento — pra tê-la sempre fresquinha.
Sim: para tê-la sempre fresquinha enquanto a minha Penélope ( não a que fora de Ulisses ) — minha Penélope não vem pra fazermos chover nossa amizade. LA 11/002
Por Um Social Vivível
Ensinaremos os sentidos a pensare a sentir os pensamentos que hão de, juntos, pensar-sentir e — sentidos-pensados — transformarem-se em coisas de razão-sentimento, ou seja: de humanidade, jamais de coisas-números...
Sejamos irrazoáveis, e até irrefletidos — para lograrmos o sabor da razão que se descobre e se frui pelo avesso de haver um uni e um pluri nesse verso universo de gamas multiversais: o aqui-urgência de venturas gozadas sobre a plataforma do sonho — sempre à beira-esperança do amor e seus fiéis enganos — lá no real dos chafarizes que dessedentam e molham de alegria os pés da infância.
Os sentidos aprendam a viver lendo e dizendo. A extrair da desolação temas e motivos de viver — enquanto nos reeducamos para o social vivível, que hoje é apenas esperança. LA 10/002
Você Vê, Não Vê...
Você vê:nos esforçamos, fizemos tudo direitinho, deu tudo certo. Só não fomos felizes. Mas por que é que o deveríamos, se só quasíssimamente alguém o é?
Você vê: mesmo tentando ver a gente sempre vê pouco — caolho e por espelho. Mas se víssemos mais, mais um pouco que o visto, esse ver não fora louco, louco e maluco?
Você não vê — e quem sabe o não visto ( com seus olhos azuis-fidalgos ) mostre sempre bom tempo. E lá bem entre o sim-ventura( a negar-se ) e a loucura ( lúcida de doer ) — saberemos ser felizes sem o termos de ser. LA 11/002
Escrevivendo
Ler e viver: ler e escrever —e de tal modo uma só coisa, que o sujeito ( insujeitável ) seja o indivíduo ( indiviso ) em seu dom de suplantar-se pela verboterapia: superado por ser em ser-se — como pela para/translógica de quem se sabe escrevivendo: em seu dizer multiversal — que se chama poesia.
O importante é viver a verdadeira vida — vivê-la lendo e escrevivendo em diuturno ler-escrever: escrevilendo, levidizendo — até que a solidão floresça as bromélias que saibam sonhar coisas que a vida nem sabe que tem. Morrevivendo em constante nascemorrer — e que isso não seja triste, mas apenas transformador — remoalhos de um sonhar a metabolizar-se na leveza de ser num transpessoa personada pelo próprio verbalizar-se. LA 11/002
Sociotédio
Sociedade, bolha de enfado. E Deus está? Claro que sim: virou Tédio — pois fez do povo a sua voz.
E o coração? O coração sabe o caminho de voltar para casa ( um caminho de soslaio ) — ou seja: pela intuição e a vontade de seguir com Aquele que nos é.
A sociedade? Faz tempo está invivível. Se o homem não se esgueirar por dentro de si mesmo, não achará as varandas — onde a Vida nos espera bem antes que o mundo fosse.
A sociedade? Faz muito tempo é só tédio. Mas Deus, não pode Ele ser-lhe o remédio? Claro que sim: sobretudo para aqueles que crêem que isso é bem possível — e se deixem que Ele os seja. LA 11/002
Uvulite
Falava tanto, que lhe inchava a úvula. Seu médico ( e vizinho ) tomava ( com alívio ) uma medida “perioral”: três voltas de esparadrapo por boca e nuca. Só tirava o expediente para fazer as refeições e tomar sua mamadeira ( que, segundo a esposa, ainda saboreava uma inteirinha por semana... ) Por vezes ( ainda segundo ela ) tentava outra, mas o bico escapava da boca... e ele — classicamente — virava para o canto e pegava no sono.
Findo o inchaço ( da úvula, lembra? ) e retirado o tapa-boca, sua úvula ( peça anatômica sinônima de “campainha” ) recomeçava a tapar seus ouvidos ante o bimbalhar e o tilintar da voz de Tácito ( sim: chamava-se Tácito ) — a implodir a sua casa e um terço do quarteirão. LA 11/002
Débora
Débora era linda, galáctica de vidrar vísceras e glândulas. Mas com os pertos do seu gênio — nem se tivesse a venúsia e toda a sua pérgula em refolhos celestes e plumas de diamantes... Nem! Nem se tivesse as colinasmais que divinas... aliás... Nem...
Débora mudava em feriado as segundas-feiras por onde andasse... Mas tinha uns saltos tão temperamentais, que por pouco, quase nada, punham-se a fazer rendas... Uns joelhos tão rápidos que os “uis” e os “ais” se lhes antecediam...
Débora transformava em flores as pedras que pisasse... Mas fazia virar pedras as flores de que não gostasse...
Débora sabia fazer chover mais facilmente que os dezembros... Mas quando resolvia secar levantava mais pó, mais folhas-poeira que agosto... Fazia estalar intenções, pururucar desejos... Mas, contrariada, emprestava asas a tudo o que lhe viesse às mãos... E gostava da frase ( que escandia com a ponta do pé a subir-descer ): Na-da-nin-guém-é-per-fei-to...
André sabia ser feliz com Débora ( a frase é dele ). E dizia ( baixinho, lá em seus pensamentos ) que ela era tão real como devia ser... Isto é: tal qual a realidade, Débora não existia naquilo em que a sonhamos... Sim, era como a vida: o que é e o que não é. E explicava: Quase sendo, no que não é; quase não sendo, no que é. ........................................................................ André tornara-se exímio api... ( como não tinha emprego, nem se morria para tê-lo, dizia-se apicultor... ), sim: tornara-se exímio em cuidar da colméia que tinha em casa. Mandara às favas os melindres... as línguas más, as calúnias... e à hora e minuto e segundo certos ( de um certo intuitivo, aliás, quase metafísico... ), com precisão e calma de astronauta, e aquela paciência zen de quem voeja pelo Nirvana... é que então extraía favos dentre os ferrões: um mel de tal qualidade, que dava inveja aos mestres que chegam a tirar com os olhos as sombras da nudez... e, com a ponta dos dedos, vão descascando a luz e esticando festões das cores do arco-íris... Ah! Dava tanta inveja, e a tal ponto, que a vidente da esquina dizia — sempre em transe — que da aura do seu cavanhaque ( de André, pois sim? ) e do etéreo de suas mãos lhe marejavam méis de deixar seu anjo da guarda com vontade de ser gente: doido pra ser apicultor... e ( claro! ) jeitoso, jeitoso como André. LA 11/002
Pelo Caminho Do Avesso
No centro da infelicidade, entre as ruas da necrópole ( na capital solidão ) de toda multidão — a gente inventa, Rosa, José, Joaquim, a gente inventa a ventura, a vida, a suficiência de uma mão com a outra falarem-se de apoio-força — do não faltarem-se. Da arte de viver no encalço da poesia — no gozo da beleza sobre o suporte do disforme. Da verdade da mentira, da mentira que gera o vero que Vera sempre desprezou, mas com que Beatriz aprendeu a ser feliz.
Ilhas? Se precisar, invente. Serenidade? Imagine, e terá. Plante flores e dias tranqüilos nesse inferno social. Leia-escreva: viva a bem-aventurança, mesmo sem esperança. Viva escrevivendo ou sei lá que fazendo sem fazer. Sem realização, sinta a satisfação, o ser mais, o bastar-se — o transonho gerado na triste pequenez. Na vontade, aliado com a Providência — o caminho entendido como nexo-sentido-finalidade. Assim trabalharemos a solidariedade sobre o dizer factual de todos os totalitarismos que decretaram que a vida é supérflua. ................................................................................. Iremos pelo caminho do avesso, e pelos buracos de verme — assim jamais nos encontraremos com os asseclas do Caído. ......................................................................................................... Ah, não se esqueçam das máscaras, sim: vamos precisar das máscaras... LA 11/002
Antes Assim
Entre a ordem e o caos, ficamos — bobalhões — dando aulas de entendidos.
Sim, porque o caos pode ser ordem e a ordem caos... Uma ordem caótica, um ordenado caos. ( E isso independente de Confúcio ter visto que casar era um luxo...) Pois é.
Somos todos muito chatos — professorais: queremos que cada coisa seja cada coisa, e queremos porque-sim, e não queremos porque-não. Mas as coisas não podem ter suas “outras” — como nós os nossos “outros”? Certamente que sei lá... Aliás, se soubesse, não estaria me dizendo essas coisas, mas suas “outras” ( delas ) — senão mais intrigantes, bem mais extravagantes. ...................................................................... E vamos lá, que a vida não continua. Isto é assim porque não é assado, tampouco cru. Fosse assado, comê-lo-íamos. Fosse cru, deixá-lo-íamos para o bico do urubu. Já — sendo assim — misturamos com gergelim e fazemos uma poçoca de amendoim. O mais é riso clarinho ( de crianças, é claro ) — provocado pelos flatos do arlequim. Antes assim. LA 11/002
Pedido
Quando botarem fogo em Tróia, me chame, minha mãe. No mais, me deixe. Deixe dormir dormir dormir dormir dormir sonhando que sou um deus fazendo um outro deus dentrinho da deusa Vênus... Mas quando Tróia arder, me chame, minha mãe, me acorde bem depressa. Quero ir ao encontro de Helena, uma das filhas de Zêuxis — para amá-la entre as chamas: amá-la amá-la amá-la amá-la amá-la... até sentir o cheiro das uvas das telas de seu pai.
Amar Helena, minha mãe. Amá-la amá-la amá-la amá-la amá-la amá-la... vindima após vindima — amar-lhe as uvas todas, as rosas todas, o trigo e o vinho, a beleza e a verdade do seu corpo. LA 11/002
Papo Com Minha Rosa
O destino é um senhor bifronte, que só conheces de ouvir falar. Se te pões nos seus braços, te danas. Antes ires pelos teus passos ( guiada pelo Espírito de Deus ), pelos teus olhos — que te entregares à abulia, minha Rosa, te desfolhares a dizer que o vento cumpriu o seu destino... Se o destino existe, existem igualmente a Providência e a Vontade. Procura adequar sempre essas duas à tua vida, e o mais — não te preocupes — já estará feito. .............................................................................. Se inspirada pelo Espírito, hás de aprender a lidar com a Providência e a vontade, com a fé e a esperança — e caminharás mais rápido do que todo o Oriente... Não há ninguém mais fácil nem mais profundo que Jesus, o Cristo.
O Verbo Santo de Deus não é um caso à parte — mas as Partes e o Todo. LA 11/002
O Que Temos
A palavra é o que temos. Se a negociamos... vamos ficar sem nada — embora com as mãos e os olhos cheios de coisas.
Sem a palavra ( que trabalha o ser ), o humano vira bicho-vegetal — coisa malsida: ser que não é.
Sem a palavra, como é que Deus podia nos ser?
Como é que essa coisa inútil chamada poesia poderia ser deveras a busca do que nos falta?
Sem a palavra, ser em ser-se se solveria em barro desconstelado. E aí o homem ( pobre homem! ) não mais seria. LA 11/002
“Des”...
Não sou cidadão sequerde minha pequena urbe — quanto mais cidadão do mundo.
Sou do tamanho ( isto, sim, ) de minha capacidade — melhor: do meu ser moral.
Minhas leituras do mundo, meu contá-lo e recontá-lo para mim e o sulfite em meu ler-escrever diuturno — meu viver interpretando: isto, sim, me dá o tamanho do que sou e do que posso — e que só eu e meu nariz sabemos.
Sou mais descidadão ( a gozar os privilégios de sua descidadania ) que outra coisa qualquer — que me permitem ser...
Vítima eu? Não. Sou como você — vítima-vitimante de um sistema drogado, e em perene auto-engano.
Cidadão? Cidadania? Não, senhor, somos “des”... E desde sempre. LA 11/002
O Não Saber Da Rosa...
Entre o trigo espalhou-se muito joio, pela vinha trançou a uva-brava. Calou-se a voz que há pouco descantava... Caminha o povo e o gado ao mesmo aboio...
A esperança escorreu em meio à lava de ambições que passavam em comboio... A paz, um cão sardento que ladrava, não encontrou nos povos seu apoio.
O amor faltou com a palavra e o gesto: deixou falado, escrito e manifesto que era só um produto de mercado.
Era um tempo infeliz e truculento... Era a tarde de um sonho desfolhado — o não saber da rosa em meio ao vento... LA 11/002
Respirar: Oxigenar
Pensar, imaginar: costurar sonhos-coisas, vazios-cheios, retecer fabulações-realidades, coser-a-descoser-se analisando o analisar em cotidiano fiar-desfiar de fazer-des/refazer-criar — isto, sim, faz respirar a inteligência. ........................................................ Ler-escrever: escreviver. Chafarizar água-oxigênio — não só nas bocas com sede, como nos pés das crianças — a água da vida. LA 11/002
Branco Mugir
Teu feno em remoalhos eu mastigocom visões, linda vaca, de profeta: espero redobrar em cada teta o teu branco mugir em balde antigo...
O teu branco espumar também consigo bem bonachão, e sem fazer careta... Teu ordenhar, com Coca, — a vaca-preta, será industrializado em gesto amigo.
Não só fenos, amiga, mas os montes e a graça relinchante de horizontes — também deglutiremos com o olhar...
Teu leite jorrará como se fosse já transformado no mais puro doce... e o teu mugido há de fazer sonhar. LA 11/002
Sonho-Ser-Se
A vida mesma é um truque de mãos hábeis, feita dos sais do sonho de Alguém nela construindo passagens-passarela de ser para mais ser: em folhas lábeis
de uma árvore ( em nós ) de ramos gráceis frutificando em espirais na tela de a vermos com os olhos de aquarela em sombras-luz de enlaces-desenlaces...
A vida se alimenta interminável das provisões assíduas do mistério que a quer em trama cósmico-sociável...
A vida é o mestre e exerce o magistério em seu próprio narrar-se intraduzível — que é sonho-ser-se à beira do indizível. LA 11/002
Bom É Lembrar Dezembros...
Bom é lembrar dezembros: chuva e vento... Tardes chorosas... Bem lá longe os sinos... A adolescência ardendo em sonhamento, olhos buscando piscos alcalinos...
Sempre presente o bem-te-vi: seus trinos bravos e fortes na haste do momento... Cheiro de pão assando, e outros divinos comes beliscam ainda o pensamento...
E os grilos com seu canto niquelado?!... A voz de bom moleque do Espraiado... A “árvore” sendo armada e muita pinha...
A moçada sentada pela escada... Jogos, flertes, risada mais risada... O olhar sempre bonito de Rosinha. LA 11/002
Linda Inês
Normal, normais. Que mais? Mais todo o resto. Linda Inês, não aquela, mas a minha talentosa e magnífica vizinha, — amiga quer no papo, quer no gesto.
Toca piano tão bem, que até detesto... Declama tão divina, que espezinha... Olha tão dentro d’alma, que me espinha... Tudo o que é nela bem merece arresto...
Só não me caso com a linda Inês por não ser das arábias... ( e sarado! ). Por isso nos gostamos de viés...
Normal, normais. Não mais. Que mais preciso além de ti e da flauta do Espraiado? Não mais que isto, Inês: menos juízo. LA 11/002
Cantemos!
A carne moça canta, minha Rosa. A velha tem gemidos. E coisas há que hão de ser feitas com maestria e competência — com olhos e mãos de sonho: assim como faz a rosa que nem sabe da tarde.
O Hoje é o grande dia: a melhor hora, o melhor momento. Nele podemos. Saber e ousar — eis a moeda que ele nos exige. Sim: o Hoje é onde Deus sonha. Não nos assuste a tarde.
Vivamos, minha Rosa! Vivamos e cantemos! ........................................................Depois, lembremos! LA 11/002
Novembro/27/002
Saudades das carochinhas, das histórias amarelas, das almas a arrastar chinelos pela casa e varandas dos meus avós.
Saudades da tia “Fina” — imaginosa e aloprada: nuinha debaixo de lençóis, fingindo-se assombração pelo quintal e “jardim” — ululando sons do outro mundo...
Saudades das macarronadas de domingo — os tios bebendo vinho e fumando charutos, contando casos-aventuras da cidade de São Paulo ( ! ) — contos alucinados rolando sobre nós-formiginhas...
Saudades da minha avó ( Anita ), do meu tio “Coque” , Cesário, ( que morreu hoje, me contaram por telefone ) — desses dois que me foram as pessoas mais humanas de toda a minha família.
Saudades daquela gente curiosa: junto-isolada... daquelas felicidades tão infelizes, mas mesmo assim felicidades. ............................................................... Meu Deus, tudo acabou. LA 11/002
Na Farmácia
Em seus refolhos róseo-negros, a morena ficou chacoalhada, mas não deixou cair nenhuma jabuticaba... Apenas duas ou três folhas. Sim, pra degustar essa fruta só subindo no pé. E o pé tem dono, e fica num pomar, e ...
O farmacêutico mais uma vez sentiu que as coisas são bem complexas... e que o desejo precisa de escolaridade. LA 11/002
Tudo Sob Controle?
Chega de parlórios-compromissos. Precisamos ser omissos. Para o nosso próprio bem — omissos. Quem sabe então não nos desprogramamos e começamos a incorporar os primeiros gestos humanos na nossa desumanidade?
Compromissos-ouriços. Chouriços-compromissos. Compromissos sem viços. Não, senhor, não isso. Mas, sim, a liberdade de nada disso pelo omisso.
Tudo sob controle? Claro que sim: tudo no chão.
Deixar de fazer pode ser fazer melhor. Deixar de ser pode até ser bem mais. Sim, num gesto a serviço de algo maior: ante a programacão córnea e profética — a gente deve ser omisso! LA 11/002
Lá Do Arco Da Velha
Os dezembros com os ventos borrifavamlá do teto e beirais de telha-vã. Carunchos da madeira salpicavam lá do alto entre fantasmas-picumã...
As goteiras ( sem fim ) cantarolavam... Pardais caçoavam logo de manhã... Minha mãe, minhas tias costuravam... ( Minha prima trocando o sutiã... )
Dálias batendo palmas às janelas... Muitas: vermelhas, brancas, amarelas... No canteiro insistia o bem-me-quer...
Os moleques brincavam nos seus cantos, as meninas cantavam acalantos... Todos querendo ouvir conversas de mulher... LA 11/002
Cafonice
— Em nossa casa não — te juro: nós não tínhamos pingüim nenhum sobre a geladeira. — Vocês não tinham geladeira? — Tínhamos, mas ficava num nicho tão apertado, que em cima dela não cabia nem o sonho de um belo pingüim sobre a dita não cujada. — Belo?! Belo pingüim?! — Sim, se a geladeira é o que importa, um pingüim sobre ela seria uma bela cafonice.
Sabe como é, meu caro: O tamanho do cacete não garante a vitória, nem as fungadas mais felizes. LA 11/002
Fio Escarlate
Sigo, e não sigo só. Levo em mim o que levam o homem de hoje e o de outros tempos — sim: o tempo é o fio escarlate que nos cose num sonho só — e vai fazendo a bainha na branca toalha de linho da manhã daquela esperança em que havemos de nos ver um só em muitos, um só em diferentes — já que nos somos Nele: no Sonho-Quem que nos gerou bem antes de haver o mundo.
Sigo, e não sigo só. Já caminhei bastante pra saber que o que me falta ( afora gamas e nuanças ) nos falta a todos nós — por isso é que podemos ser um em diferentes, e — diferentes — nos ajudarmos a achar o norte do ser — o timbre da nossa nota... para a grande Sinfonia em que Deus nos ouve e nos é.
Impossível seguir só depois que vemos que amor, fé, esperança são os nossos companheiros por um só caminho humano — onde a alegria é um chafariz, que nos dessedenta, vem do Senhor e é força: a água da vida flui, salta, esguicha de nós para os outros, dos outros para nós.
Quem diz estar sozinho, só diz que se perdeu no bosque ( talvez para organizar-se... ultrapassar-se, transcender-se e — do silêncio — ouvir a canção que fala que o homem é um marinheiro que só volta para casa nas canções que se misturam com as de todos os países — e que é ouvida pelos seus. ) Sim, diz que se perdeu no bosque — que se perdeu do outro, mas sabe que o outro está logo aí: é só achá-lo — bem lá dentro de si. LA 11/002
Fabulações
Mentimos tantopara nós e para os outros — que aquilo que sabíamos verdade já pouco nos importa... E quando importa — agora nem sabemos onde está, nem já para que serve. De sorte que, aos poucos, nem mais vamos precisando da verdade — vivemos uma coisa já nem falsa nem verdadeira — apenas um estado-coisa que, agora, é aquilo que usamos, aquilo com que lidamos — já incorporado ao viver, que não se sabe mais que viver — um viver a que chamamos de simples e normal: fabulado e mudado como o vento que não sabe de onde vem nem para onde vai: vento correndo atrás de vento num remoinho de auto-engano... E eis-nos feitos reféns de nosso próprio fabular. LA 12/002
Aleluiemos!
Tem uma hora que o papo entorta. Nem Deus, nem o Diabo já o indireita.
Quando se chega a isso, minha Rosa, qualquer conversa é requentada. E mais: faz desfolhar...
Mas aleluia, minha cara! Antes não-aturado, e vivo, que amado, e morto.
Despetalemos e aleluiemos nossos ardores, minha não-rosa: ex-bem-me-quer... Sim, desfolhemos nossos amores sobre nós — vivos! Melhor: tesoviventes. LA 12/002
Abluição
Bom que as mágoas se morram afogadasdentre a águas de vária clepsidra, já livres dos tentáculos da Hidra que só as pega quando recordamos...
Recordações sem o travor da cidra — em lembranças lavadas-relavadas pelos ganges em sujas enxurradas, buscando sempre a vida renascida...
Sim: pelo recordar nos abluímos de nosso fazer sujo, mentar limos a fluir entre o que fomos e seremos...
Sim: pelo recordar purificamos toda a água que sujamos e esquecemos... e somente — ao bebê-la — nos lembramos... LA 12/002
O Tempo É A Nave
Temos de nos trabalhar no tempo. Irmo-nos superando nos vários “eus” que pontilham a nossa trajetória em busca sempre de uma possível síntese — uma organização em nós desses “vários” temporais — entes-alpondras que nos trouxeram até hoje: redimidos ou não por aquele que atua no aqui-agora da existência em nós — um feixe de “eus” em si-nós: sim, por nós redimidos, ou por nós condenados... no mesmo processo crístico do Verbo de Deus no homem. .............................................................................. Sim: o tempo é a dinâmica — o desempedrescer da criatura conferindo-lhe movimento-direção — a cinética-copião de seu ser em ser-se no caminho de volta pelas varandas dos fundos da casa de Deuspai ( em nós ). O tempo é a nave que desempedra as águas de chegarmos. LA 12/002
Cem Anos De Os Sertões
Um estilo paranóico... Um livro-dólmen, Os Sertões. Ostenta um verbo que tromba com a realidade, se retorce, é endireitado a martelo — e vira um jeito três-em-um de dizer. Dizer de pedra, de couro, de aço ( pontudo ).
O livro tem um encanto pesado, cor de chumbo. Um corpo suado de esforço... Um tom grandioso: de apocalipse.
( É escrito por um homem doido de ciúme de si mesmo... que sabe que não sabe amar — nem é amado. Mais: sabia, ou melhor, pré-sabia que tudo isso era trágico...)
Cada capítulo deixa um pós-sabor amarrado entre o patético e o mágico: alma de pedra em flor... Jeito de espinho entre espinhos. Ríctus seco-quebradiço: punhado de seixos a rolar lá pelo humano sem alma...
É um livro tão sério, tão nevoso, que foi enfermando o autor ( em seu buscar os fatos ) — a ponto de escondê-lo ( a ele, o autor ) bem detrás da doença para se privar de ter de assistir ao massacre final e descrevê-lo...
O que energiza o livro frase por frase e o faz admirável é o seu clangor perene entre o cerne verbal e o grandioso turvado de fantasmático.
Os Sertões é uma verdadedo avesso esquerdo... e uma ousadia do seu lado direito. Imposssível esquecero gigantismo narcísico do seu verbo. Lê-lo é marcar-se para sempre. LA 12/002
Refiat Mundus!
A partir desse nadaque nos resta, fora mister criar alguma coisa — urgentemente antes que nem esse nada reste. Criar um mundo com menos fome e sede de justiça. Um mundo que tenha o sentido e a justiça que todos saibam quais são. Um mundo cujo senso de valor seja não precisar tê-lo. Um mundo, não que renasça das próprias cinzas — mas do nada desta hora, do nada deste ex-mundo — suportado apenas por vazios de realidades: globalidade de injustiça. Sim: um mundo que exista e, em decorrência, também exista o homem — seu recriador e esperança. LA 12/002
Tentações
À hora e tempo, tenta-te. Se não te tentas, como é que podes ousar? Se não ousas, não tens a mão de modelar a argila do teu sonho.
À hora e tempo, tenta-te. Sê o objeto do objeto do teu intento — que há de romper a casca do teu querer.
Sim: tenta-te, e ousa, até ouvires bem dentre as tuas mãos teu propósito vagir molhadinho do plasma do teu desejo. Se um pardal ou águia, não te quebrantes nem exaltes: é o que pudeste.
Dá um tempo. Relaxa. E te prepara ( sem alarde nem demonstrá-lo ) para outras autotentações. Quem sabe um dia não te tentas a fazer nada — e nesse nada descubras tudo aquilo que te faltava? LA 12/002
Texto-Resposta(Menos Um Amigo)
O seu livro? Ah, sim, claro. Li os primeiros 12 textos e os três últimos, mas gostei mesmo do restante ( cerca de 4 dezenas ) — que não li. A julgar pelos primeiros: 12+3, adorei as tais 4 dezenas — são o melhor do seu livro. Sem, dúvida: o melhor. Não só por não tê-los ( textos ) lido, mas por ouvir do silêncio coisas que eles nem sonhariam em me dizer... ......................................................................... Um livro deve percutir não apenas algumas notas do humano em nós, como principalmente nos fazer dançar ao som daquela música ( que há de fazer brotar ) lá do fundo de nós mesmos. Sim: fazer dançar a carne, a alma, o espírito. Aliás, um livro deve fazer levitar o pétreo da nossa alma. Implodir o rochoso do nosso ser. Ser companheiro de caminhada pelas ruas do mundo. Ser aquele rio que dá a volta por todas as aldeias e costura com água todas as pessoas umas às outras... Ser viagens e viagens numa cadeira. Ser o humor vômico. O riso profilático, e curativo. A gargalhada ( inclusive a silenciosa ) que protesta mostrando ao tirano que a gente está vendo está vendo está vendo... Há de saber falar da vida, da rosa, da rocha, do sonho e da morte. Deve saber ser criança, ser jovem, ser maduro e ter as mãos pintadas...
O livro que não orvalha a rosa que tem o nome e a cor do nosso sonho ( só conhecida pelo intuí-la de soslaio e amá-la com o melhor sorriso lá em alma-coração ) — é outra coisa diversa, não um livro, coisas que se escreveram com a enfermidade da alma — um calhamaço que não aprendeu a comungar com o quase incomungável dos nossos brejos ecoados de estrelas e nossos píncaros desenganados de alturas e solidões...
Sim: um livro tem, no mínimo, de ser humano, com passadas para o sobre-humano — fazendo ouvir os murmúrios daquele rio ( em nós ) que banha a cidade de Deus ( também em nós ). Um livro tem que ser doida, loucamente um livro. LA 12/002
Nem Por Isso!
Eram tempos atocaiados. Os bonés é que mandavam — mas debaixo do colete...
Naquele tempo soletrávamos felicidade — sem nem pensar na palavra. Sem pensar no bem, no mal. No pobre, no rico. Nem no Saci.
Mas nem por isso! A gente trabalhava duro, estudava, não faltava ao trabalho. O mais era uma vida nossa: as atividades sociais eram fazer com a mão direita o que não vê a esquerda... A gente se ralava, e trabalhava, e estudava, e construía a nossa casa.
Mas nem por isso! Viver era tão bom ( e fácil ) como coçar o nariz... Você se lembra, Rosa? E a gente tão feliz ( sem pensar nisso ) igual aquele grilo de Fénelon: nenhuma coita, sempre na moita, e numa vida corajosa: aliás, feliz atrás do riso e aroma da melissa e do anis... Você se lembra, Rosa, como a gente se desfolhava? LA 12/002
Uma Noite
Uma noite, não mais, mal-estrelada... Uma noite usurária até no vento... Uma noite negando sonhamento, moeda a rodopiar, jamais achada...
Uma noite, não mais, de mão fechada, pouca em si mesma, como pensamento truncado por astuto fingimento, coisa pensada e logo deplumada...
Uma noite, uma só: nenhum escopo senão não tê-los. Noite despenteada a beber no gargalo, nenhum copo...
Uma noite, uma única, e mais nada, foi que ela lhe estendeu o belo corpo — e ele sorveu os méis da madrugada. LA 12/002
Ou Quaisquer Outras Vaidades...
Saudades de quando a caravana passava — os cães ladravam, a gente se sentia consolado e pensava que era alguma coisa a mais que aqueles cães... Deus nos perdoe a mocidade!
Sem dúvida, pensávamos que éramos alguma coisa a mais. Mas não: aqueles tempos passaram, e atrás deles outros e outros e outros... tempos. As caravanas, são elas que já não passam. Os cães? Andam entediados. Entediados como aquele rei que mandou matar os seus “bobos”... e ficou rodeado de ninguéns... até que sua mãe o envenenou ( lembras? ). Se não lembras, não te preocupes: é bem provável que esse rei nem existiu...
O homem é movido a vaidades, ou a bobagens. Faz tempo, eu sei. Até Salomão brincou de saber disso: falou sedutoramente sobre a vaidade, gemendo dores existenciais... fingindo que não estava se deliciando... E isto, isto é que é o certo — diz meu vizinho, o Teodoro. Quem foge à regra, é visto como quê? É chamado de quê? De louco, Cacilda! De louco e seus sinônimos e cognatos. Mesmo porque: “Mais vale um cachorro vivo que um leão morto”, diz aquele mesmo sábio, com dores de infinito. Se um gajão desses disse isso, que não diria um dentre aqueles bilhões com sua fome e falta de tudo? Sim: o que é que lhe responderia um desses “cães” famintos que o mundo é mestre em fabricar? .......................................................................... É aí que padre Inácio intervém: “Calma, André: Deus nos tem dado o melhor desta terra... Pensar que não o merecemos, arrazoemos: é, no mínimo, blasfêmia, homem!...” Claro, padre: comamos o que é nosso.
Saudades daqueles que já não somos, nem sabíamos que éramos... Saudades? Sim, saudades ou quaisquer outras vaidades sentimentais. LA 12/002 “Natal Sem Fome”
Olha, Senhor, como a gente dá um jeito: Natal taí — “Natal sem fome”.
Durante o ano, Senhor, a fome pode até matar, mas — no Teu dia —, não! A gente não deixa não. No Teu dia, todos comem!
Durante o ano a gente desce o pau: ganha-barganha-pilha-empilha-pi... até às telhas. Esquece amigos, mãe e pai, vizinhos... Esquece irmãos: de fé, de carne, de brisa... Sabes como é — a gente nem tem tempo... Mas quando vai chegando o Teu dia, Senhor, — a gente até que amolece, deixa pra lá... Põe uma pedra em cima... Telefona, e até vai lá... Sabes como é: coração onde Tu moras — fecha, mas volta a abrir.
Notas, Senhor, o cheiro, o gosto de tuia no ar, nos corações? Natal taí — “Natal sem fome”. Em outros dias, Senhor, essa ( em Teu dia ) excomungada ( a fome, meu Pai, a fome ) pode, pode até existir... ( ou tem, tem de existir... ) Sabes como é: o mundo... com ele ninguém pode. Mas no Teu dia, ah, nesse dia não! A gente dá um jeito. No Teu dia, todos comem! ( E é bom pra gente, Pai: além da caridade, come-se em paz — com a consciência lavada: sabendo que — no Teu dia — estômago nenhum faz barulho.) LA 12/002 Gaiolas Sociais
— Você não sabe o que está perdendo.... — Perdendo nada, moço. Quem nunca teve a oportunidade, não pode estar perdendo ou ter perdido nada.
Pertenço àqueles, moço, àquelas pobres criaturas ( xite o autodó! ) que sabem quanto custa ousar romper gaiolas sociais — e ir buscar ( um pouco ) do que lhes falta...
A infância e a mocidade são a força maior da vida — porque unem ingenuidade, arroubo, vigor e não-saber... Graças a tais companheiros — nosso querer se galvaniza e podemos ousar ( com a libido atrás, à frente, aos flancos, abaixo e acima...
Jamais devemos recriminar nenhum desses eus-fase de nossa vida: todos eles nos trouxeram até aqui — às suas costas e custas. Só nós sabemos o que foi preciso romper, e a crueza da nossa luta — só nós sabemos nosso tamanho: a nossa força-coração. Sim: porque nosso saber de lado ( nossa lógica intuitiva ) nos tem deveras ensinado que só pelo não-saber o homem tem espaço em sua alma-coração para a verdade que lhe falta: e sua marca d’água — o seu beijo de fogo com seu gosto de infinito.
Somos daqueles a quem negaram sol e justiça — e a vida toda tentaram nos enterrar vivos.
Sim: disfarçamos uma fome e sede por toda a nossa vida: jamais tivemos como aplacá-las.
Vontades da vida vista lá de cima... Da carne crua, cosida e mal-passada... De tudo o que um homem teria direito — fazendo-se de conta que os Direitos existissem: vontades do que racionalizávamos. Foda-se o mundo e seus donos! É tudo muita covardia. LA 12/002
A Glosa Que Não Fiz...
Longos bloqueios, lanhos, cicatrizes... Como cuidá-los, mas de tal maneira que espirrem do outro lado da peneira feito água de bidê de meretrizes?
Como esquecê-los sem a sonhadeira bromélia de alvas flores tão nutrizes... e as chuvas femininas: chafarizes regando nosso sonho a vida inteira?
A glosa que não fiz daquela rosa que plantei no mental de haver o encanto de desfolhá-la em graça venturosa —
faço, agora, pra ti, minha comparsa, que prensas minhas uvas no acalanto do teu batear felicidade esparsa... LA 12/002 “Os Murais”
Quando os cachorros são muitos, em cima do muro é o melhor lugar. Depois a gente pula pra este ou para o outro lado. O mais que importa é estar-se vivo — vivo e bastante bem. ( Mas caluda! Ninguém saiba. Isso durma em silêncio entre os milhares de milhares que adotaram o sistema mural. ) A maioria dos homens, seja quem for, detesta, abomina “os murais”. Desejam que os “amigos” abracem suas loucuras e safadezas. LA 12/002
Para Frente
Melhor hojeque ontem. Melhor, por certo, amanhã — filho do hoje.
Sim: viver será melhor quando através de viveres de um viver sempre maior — maior-melhor.
Para frente é o norte do ser, da vida. Sim: lá no para frente de um chegar-em-nós.
Ontem já foi amanhã, que já foi hoje — aliás, a rosa só a colhemos sobre a haste do hoje.
Entre melhor e pior, não hesites — o norte é para frente. LA 12/002 Uma Bela InvençãoBela como mini-saiana perna exata, eis a manhã: orvalho e ouro — abrindo em flor nas mãos da vida.
Os restos de ontem, seus porres, finais de festa — reciclados em novo show: oceanos de luz e azul...
O sono, trégua da vida, nos remoçou a esperança: a seiva a equilibrar-se na haste de um novo dia.
O que os homens farão dele é coisa de cada um — pesando no coletivo de suas ações reflexas: com o tom e o sentido toando ou destoado sobre o sentido da falta de sentido — coisas jogadas no lixo. Nexo e finalidade só intuídos e vividos por uma parcela minimíssima. Nossa hora tem nas mãos um mapa redesenhado por mãos de pistoleiros.
Mr. 45 prepara a destruição do Iraque para os dias amenos ( meteorologicamente ) entre janeiro-fevereiro. Nos quatro cantos do mundo soa o aboiado — tangendo para o abatedouro central.
Sem dúvida, a mini-saia foi uma bela invenção. LA 12/002
Vida Exige Assim
Nos anos de insensatez temos força para fazer o que hoje não faríamos. E a vida conta com isso.
O desejo mais a cultura, os arroubos mais a libido, os sonhos mais a realidade: as sempre latejantes pulsões — nos dão forças para fazer o que, depois, não faríamos. E a vida quer que seja assim.
Não faríamos, não pela sensatez, mas por já não ser tempo de fazer. E a vida nos agradece por temo-lo feito antes — já que agora não teríamos vida-tempo pra fazê-lo.
Sim: há um tempo para e um tempo para-não: sendo que os dois são igualmente importantes. Aliás, ao tempo é a extensão da mão do ser.
Há uma intenção, uma consciência em todo o Cosmo. Qualquer não reconhecimento disso é mero adiamento LA 12/02. No Gargalo
O encanto de ver rosas entreabertase faces orvalhadas de prazer... Todo o inverno privado de cobertas, e o amor sem flama: um frio de doer.
O relógio a marcar horas incertas ( decerto lá em nosso pouco ser... ). Difícil é encontrar portas abertas em tempos maus de álgido descrer.
O vento nem diz nada nesta hora. Se dissesse ninguém ia escutá-lo... A rosa se maquia com a aurora...
Bom seria fugirmos a cavalo... Colhermos no horizonte toda a amora e bebermos seu vinho no gargalo... LA 12/002 Norte Do Ser
Tivéssemos ao menos um cavalo, a gente fugiria para o norte... Não que lá houvesse algo que conforte, mas porque o norte acolhe o imaginá-lo...
Os bárbaros vêm vindo, mas o norte do ser eles não sabem nem pensá-lo... É para lá que vão, em firme embalo, os que aprenderam a escapar da morte...
Tivéssemos ao menos um cavalo ( lá por nós dentro ), a gente chegaria ao norte, àquele norte de sonhá-lo...
Os bárbaros vêm vindo: o ruído é forte... Os bárbaros vêm vindo, mas o norte do ser eles não sabem nem pensá-lo... LA 12/002 Linda Inês
Linda Inês, não a pobre da vizinhaque me sorri cansada desta vida — um sorriso de dália dolorida amada por um vento que a espezinha...
Linda Inês, mas que nunca foi rainha, nem da jabuticaba, nem da cidra... e não menos, no entanto, apetecida que uma bandeja farta na mesinha...
Linda Inês, não aquela coroada depois de morta, mas minha empregada que — pelos dons — já passa a ser patroa...
Minha Inês, minha prancha e vã canoa por esse mar de negras tempestades... Minha nega a inventar felicidades. LA 12/002
Alma De Bicho Existe
Um beijo cacofônico na boca de Gilda lhe sorveu todo o batom, e a velha mesa, em mármore, na copa, rangeu inteira em quebradiço som...
“O que é que é isso aí?!” ( passando roupa no corredor ) — a mãe pergunta, em tom onisciente, aos noivos que, com pouca voz, respondem: O gato! O nosso Tom...
— É ele, mãe! Pulou da cristaleira pra mesa... Sim: é o nosso siamês — o bicho fez tremer a mesa inteira...
— Que bom, Gilda, me sinto menos triste: isso prova que alma de bicho existe — o nosso Tom morreu há mais de um mês. LA 12/002 Sim: Uma Noite Lúcida
Acontece que esta noitenão pode ser só mais uma — há de ser outra noite: em tudo tão diferente que por tanta diferença tanto assim seja igual àquele sonho que sonha o coração: ser um menino tão bom que agradeça a Papai-Noel os brinquedos que jamais lhe trouxe. Sim, nunca, mas nem por isso sorria e brincava menos que qualquer outro moleque. Um menino tão bom, que nem precise da bondade para ser bom. Tão amável, que nem se arraste por ser amado, mas ame — principalmente sem nenhum motivo.
Sim: uma noite lúcida, que gere todas as noites e tais noites gerem os dias. Uma noite que constele a carne e o sonho, lembrando ao homem que tem um compromisso com a vida — fazer desse pó de estrelas que somos a alegria de uma solidariedade que nos ajude a transcender a pequenez e os tempos maus — e lucidamente nos seja a verdade e o caminho e a vida. LA 12/002
Modo-Processo
Pega a prancheta, a caneta ou a tela ou a pauta — e dentre a moita do instante, fica esperando, atento olhando com todos os sentidos: logo uma estrela cai... ou um relâmpago corta o teu céu lá em ti, acompanhado ou não de um estalo e alguns riscos de coriscos ariscos... Ou pio ou voz ou som, imagem, cena, incidente — qualquer coisa que percuta ( lá em ti ) a primeira nota e mais uma e outra e outra... e as costures num colar, ou punhados de pérolas-notas cujo brilho reverbere num sentido musical — que se abra em flor num concerto geometrizado por teu sentir-sonhá-lo a dar-lhe forma e cor e nexo em que o percebas constelar a tua argila-aparelhagem moldando e remoldando teu conceber-recriar bocados de realidade — agora já cativos de um tempo-espaço-massa, isto é: tornado teu fazer-criar — no sulfite ou tela ou pauta... do que foste buscar ( lá em ti, dentre a moita do instante, sempre em lúcida espera, com teu dom à milanesa com pó de estrelas...) e em tua forja o transformaste ( no ateliê de ti mesmo ) em algo à tua imagem-semelhança — ou seja: em arte. LA 12/002
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