Livro Sem Nome
Laerte Antonio
Fim De Tarde
O mar ao lado bota raivas molhadas no que seria silêncio. Sobre a areia nadegueiam “ois”, peiteiam “sins” — as passantes apacheadas andorinhando levezas na tarde a derreter ao sol toda bordada de pernas. Minúsculos biquínis, tão minúsculos, que a gente nem os vê, sim: nanoquínis — a femineza quântica. Muitas mulheres: mais mulheres do que olhos para vê-las. Olhares graúdos saltitam de prazer e de vontade de aboquinhar pedaciquinhos dos morangos e amoras dessas ondulações cor de cobre. Bichos ululam sob a pele da tarde a murmurar canções bem ao lado do mar. Bichos antigos que arrastam pelos cabelos com uma ternura orvalhada de “sins”. LA 12/005
A La Recherche
Saudades se acotovelam lá em lembrar você naquela tarde bocejada de outono e folhas, folhas e folhas sazonadas de amarelo e grená. Aeróbias sensações como barcos a bochechar longes azuis... Saudades, vinho bebido do avesso, canções do fim para o começo, paixão sem endereço, brilho sem preço de um dia que acabou, mas de algo que restou — saudades. Saudades de saudades saboreadas lá em lembrar você — degustadas com colherinha niquelada de sobremesa. Saudades, o refazer no agora de um tempo já desfeito. Saudades, procura proustiana de nós mesmos pelo lembrar revivescente. LA 12/005
Trípede Entediado
O homem? Um vaginícola carente. Trípede mal-amado e mau amante, bicho pensado-pensante, sonhado-sonhador, sempre entediado. Um ser multiverbal. Sim, a Grécia o fez tomar o leite montês das palavras e sofrer as ágoras do discurso. Ésquilo? Adorei não ter lido. Shakespeare leu-o e traduziu por nós e o aprendemos do Xamã inglês. Bebemos do vinho íngreme das escarpas pisadas pelos pés pensantes de Sócrates sempre sujos de arrebol. O azul forte do mar com o branco do casario dão à terra de Platão o ar alegre ( hoje saudade ) daquelas lindas normalistas... as de Nélson Gonçalves.
O homem? Um frustrado, curtido de Homero e narrado entre o poscênio e a ribalta a personar identidades lá por dentro das máscaras. Uma tradição tragicômica faz da Grécia a praça ideal da aprendizagem, isto é: do ensino-aprendizagem. Sua filosofia estribada na lógica — torna o racional intuitivo e o virtual racional — por força mesma do sonho, a lógica se faz intuitiva — igual a 2+2 poderá ser quanto for melhor e ideal ser...
O homem? Um vaginícola. Trípede implume, xiranhófilo por vocação, filosofado-filosofante, sempre entediado por não ter os coitos suficientes ( coitos físicos e metafísicos ) para manter-lhe a cintura estética e a cabeça de cima em paz com a de baixo, esta sempre molhando as penas de seu pensar pinxotante. LA 12/005
O Eu E Os Outros
Se tivessem me contado outras histórias de fantasmas... se tivesse tido outros pesadelos ou tivessem me infligido outras dores, desprezos, mentiras e medos — lá na infância, eu teria, Deuspai, sido bem diferente... mas não seria este em tudo e de todos tão diferente e a quem admiro e de quem gosto por amar tantas diferenças e querer sabê-las depositárias do que vai nos guiar ao que viemos buscar, isto é, ao que nos falta e há de imprimir um sentido ao em que hoje não podemos ver sentido — porém nos faz viver e nos empurra com sábia mão para uma confluência em nós: um em muitos na dependência do atual ( eu ) salvar-se para também serem salvos da cadeia si-mesmos presos aos outros por ações-reações coletivas: engano e auto-engano de que o eu-atual só se libertará ( a si e aos outros que tem sido ) quando pelo entendimento e graça se redimir. LA 12/005
Não, Jamais Nunca
Morrer? Não, jamais nunca sem que soubesses que não morro se me guardares em alma entre bromélias e abelhas por caminhos que se vestem do vulto desta amizade bem mais que amiga: antes amor em varandas incendiadas de desejos que não ousam pra não perder o equilíbrio e caírem do penhasco de só haver braços virtuais...
Não, morrer não, sem que soubesses que não morro mas que apenas me refugio no recordar de recordares e assim me devolveres em micronegativos ao coração da luz — a mesma que trazemos nas retinas de um encontro que o tempo finge não ter havido.
Não. Sem que soubesses, não! Aliás, o silêncio te contaria tudo, te contaria tudo. Um silêncio de pedra e de neve branquinha. E saberias que a missa teria havido — mas aquela do vento entre os ramos sem folhas... Aquela do Espraiado uivando após grossas chuvas nas noites mais escuras e as tardes ensolaradas andorinhando em rasantes de alegria e de calma com as penas franzidas de arco-íris. LA 12/005
Por Rosa
Quem ganha a rosa também leva os espinhos — seus bravos samurais. E haja dedos para colher a rosa, e coração para abraçar-se com Rosa!
A rosa é a rosa — o resto é flor. A Rosa é a Rosa — o mais é mulher.
Rosa, rosa, Rosa, rosa — flor-mulher, mulher-flor.
Não serve uma flor qualquer, tem que ser um bem-me-quer e ( claro! ) dado por Rosa. LA 12/005
Não olh...
Não olhes para trás, que a vida te transforma nas pedras do passado... e já não podes ir pela avenida que os sonhos te abrem para a frente e ao lado.
O que se foi, se foi, já não convida a entrar: tem seu vestíbulo fechado... O que tens pela frente é a embevecida vontade de partir, mas já chegado...
O bumerangue que jogaste volta, não adianta montares uma escolta — ação-reação à mão que o arremessou.
Ontem-hoje-amanhã, eis o caminho por onde o nosso ser se projetou... e ao projetar-se cria a rosa e o espinho. LA 12/005
Um Cara De Sorte
O André? Era até engraçado ver como a vida lhe puxava a brasa pra sardinha. Sim, era um desses caras que nasceram com a bunda virada para aquela estrela de bom-humor e mão aberta...
Só nasceu depois de inventada a penicilina, de sorte que suas pneumonias ( duplas ) aos sete, aos nove e suas terríveis “ites” aos quinze não tiveram o gostinho de levá-lo a estudar a composição do solo de sua terra natal.
Noivou vinte e seis anos com Melice, rainha das gabirobas e araçás, que tinha uma bela-suavíssima vassoura ruiva 3.0 que o levava até às nuvens e ao doce mundo da lua. Noivou até que André deu um porre de rum num primo dela e o convenceu de que ela arrastava vagões por ele... Então se casaram, mas com um último pedido da noiva: Ela sentada na ponta da mesa ( da copa de André ) — com cada perna sobre uma cadeira ao lado...
Colava tanto na escola que os mestres sempre o olhavam com um riso onisciente e não raro profetizavam ( antegozando o cumprimento de suas sábias palavras ): “Com tanta cola, André, vais pregar as orelhas bem na frente dos olhos... e irás envernizar cabos de pás e enxadas...” ...................................................................... Cabos? Cabo, sim, — mas de governadores eleitos em primeiro turno — isto não vislumbravam aquelas sumidades.
Numa crise financeira, bateu fogo contra o ouvido, mas o tiro saiu pros fundos ( ou pros lados, sabe Deus! ) e ceifou o vizinho rico — o mesmo que lhe aplicara nove sovas caprichadas pra defender o que era seu ( seu dele e não ainda de André). Desculpem, adiantei-lhes sem querer a história.
Sim, o cara metia inveja até nos mais invejados que, aliás, fizeram uma festa quando seu avião caiu: entrou de bico e sem penas no mais profundo do Atlântico. Só no outro dia souberam que André não estava no vôo — uma gaúcha, Miss Pampas, seqüestrou seus serviços ( sob a mira de um revólver ) durante alguns minutos no banheiro do aeroporto...
De uma outra vez... Bem, já basta, não me iriam acreditar.... Sim, desta vez não iriam, se lhes contasse que o dia em que morreu ( um acidente horrível... ) ele não estava lá!... Sua esposa que viera de Miami especialmente para enterrá-lo ( e o fez! ) nunca soube que ele tinha um irmão gêmeo — mas tão gêmeo que, como o outro, dava duas de manhã e mais duas bem à tarde — sim: quatro cabeçadas no portal da cozinha, que, aliás, não era assim tão baixo. Mas quando dava as cabeçadas vinha a empregada ( baiana crocante, com uma tanga de folhas de alface ) e lhe fazia os curativos num sofá velho, numa espécie de quarto de despejo... E com muita perícia fazia o baita do galo baixar. LA 12/005
Lindo, Um Lindo Nome
Cora Coralina, alma de lírio e pintassilgo, fazia doce e poesia. E não sei qual dos dois lhe saía das mãos mais depurado e saboroso. Você, Cora Coralina, é a poesia a começar pelo seu nome. É a poetisa que minha mãe não foi, por isso a chamo mãe, mãe doceira e poetisa. E assim, mãe Coralina que é senhora e menina e a Carolina que ao fogo Cora de fazer doce e versos. Goiás é belo, minha cara, porque quando penso nele sinto a chuva de ouro dos seus versos cantar singela na vidraça da minha infância. O seu Vintém de Cobre vale um maço de contos de réis... Sim, contos que se levam para os bancos da eternidade. Seu jeito de dizer, minha senhora, lembra Jesus conversando com os pequeninos. Cora Coralina: linda a começar do nome. LA 12/005
Entre o Inverno E As Andorninhas
Felizes os corações que não desanimam nunca. Os que entre os uivos do inverno esperam imperturbáveis a volta das andorinhas. Esses já aprenderam que seus sonhos são verdade — que repousar na esperança é fruir o que se espera.
Felizes os corações cujo espaldar da sua espera é a fé que move os montes e a simplicidade que saltita nos olhos das crianças.
Felizes os corações que entre a diástole e a sístole trocaram para sempre a morte pela coragem de viver entre o inverno e a certeza da volta das andorinhas. LA 12/005
Pega Aqui Esta Flor...
Não construo moinhos para dar neles com a cabeça. Não, senhor. Construo moinhos para moer minhas angústias, minha solidão, meus fantasmas e padejar um certo pão que não enrosque na garganta e seja leve e crocante como sonhar com aquela Dulcinéia que nem sabia que era divina minha loucura — como a sua também loucura, apenas diferente da minha — mas genuína, legítima como aquela de quem pensa não a ter. Construo moinhos para moer a luz e com ela fazer o pão que penetre nos poros e alimente meus corpos, minha alma e espírito. Construo moinhos para moer minhas vertigens e penhascos, meus picos e vales e fazer sobre eles a ponte para atravessar-me do outro lado da minha consciência e ali encontrar meus sonhos a perguntar-me por que os queria realizados, se todos eles têm tantos direitos quantos avessos? Construo sentidos em meio à falta deles... Meus caminhos andando sobre as minhas águas, meus rumos terraplenando descaminhos... Construo minha alegria cujo não tê-la é viver em pecado e sem a sua força de mim para comigo. Construo principalmente um modo em mim de ser interessante: merecer o teu carinho, Esmeralda, por toda, toda a vida. Pega aqui, Esmeralda, pega aqui nessa corola e me ajuda: Bem me quer... bem te quer... bem me quer... bem te quer... Eta, nega! Esse brinquedo é bem pra lá de bom! LA 12/005
Você Também, Você É Você
Os espinhos da rosa é o tato que suas pétalas jamais nos ensinaram. São os despojos da beleza que não amamos no conjunto. O vôo da ave também se considera mais belo do que ela. O gracioso e a ternura da mulher também são considerados sempre incompráveis. Sim, muitas vezes vendemos o que não sabemos que não é nosso... Entre as nossas necessidades e o nosso não ceder a elas forjamos nosso caráter. Os olhos dizem às mãos que as pétalas são eternas pela sua beleza e metáfora... As mãos, é claro, não concordam, dizem que precisamos urgente aprender a dialogar com os espinhos... Dizem mais: que os tais espinhos têm em si o segredo de serem doídos enquanto os vemos assim... São apenas rosas do avesso. E os brutos não as atacam com medo do seu avesso. E, claro: a rosa é a rosa, o resto é flor. Assim também é você, minha nega, você é você. LA 12/005
Velha História
Um tempo que promete e... quando dá, dá pouco e, mesmo assim, de mão fechada. Por isso alguém sensato, minha amada, não guarda pra amanhã o seu maná...
Já sabe ( está escrito ) que dá bicho. É preciso fruir agora e já, senão, meu anjo, a coisa vira lixo e adeus, ó sonho, ó pé de manacá!...
A vida? Um contozinho. Dura nada. Hoje rosa, amanhã despetalada — risos e cores pelo chão varrido...
Não entreguemos o ouro ao bandido. Antes que venha o tempo, o tempo e o vento — façamos florescer cada momento. LA 12/005 |