LÁ POR DEGRAUS EM NÓS

Laerte Antonio

 

 

           A Vida Tem A Chave

 

Saber o tamanho do universo

fora saber o tamanho do ser.

O universo é o ser

enquanto metabolizador

de gamas de consciência.

O ser é o universo

enquanto caminhos recorrentes

( interiores e exteriores ).

 

Tanto o universo como o homem

não servem como são —

porque não são

a não ser o que sonham.

A realidade é só um esboço

que a vida vive a alterar.

A consciência é um vinho

cujo odre é ela mesma.

Aquilo a que o homem anseia

é feito à medida de Deus.

E aquela água que corre para a eternidade

passa ( sem que muitos suspeitem )

por dentro da criatura.

Somos o lá-aqui,

o ontem-sempre

de um sonho que sonhamos

e que nos sonha.

A vida tem a chave.

O mistério

tem todas as provisões.

 

Em Geral, Temos Tanto...

 

Em geral, temos tanto medo do novo,

que, não raro, tentamos

dar vida nova à velha.

O momento é de uma metamorfose

assustadora —

a ponto de a grande maioria não saber

o que fazer com suas asas...

( muitas voarão para as chamas,

outras para o melaço do tradicional

e, não poucas, para o visgo do medo).

Os pensamentos como que presos

às suas fôrmas...

Enforcados nas próprias raízes...

Os que aprenderem a usar tais asas

estarão na nova estrada que, sem dúvida,

a Providência já tem aberta

dentro desse fantástico milênio —

aberto em sonho e vôos interiores:

              riquíssimo em humano-recriar-se.

 

 

            Fazer-Se

 

Uma pessoa se faz

de muitas outras pessoas

semeadas pelo tempo.

Uma pessoa se faz 

de tudo o que já foi feito

mais a sua capacidade

de refazer o mundo.

Uma pessoa se faz

de muitos sonhos somados

aos sonhos que ela sazona

e torna coisas-em-si.

Uma pessoa se faz

com o personar das máscaras

ecoando de rosto aberto

no ouvido de todo o teatro.

 

 

              Flores Molhadas

 

Estendo a mão ao lado de lembrar-te

e colho flores ainda molhadas

daquelas chuvas tão adolescentes

que acariciavam os dezembros

e adorávamos tomar.

Flores ainda molhadas... espelhando

o brilho corajoso e quente

de tenros sonhos, risos-esperanças...

Colho-as

pela ventura de colhê-las,

pela alegria

de vê-las umidamente intactas...

 

Uns guardam euros, dólares,

mansões, navios, impérios...

Eu guardo o teu sorriso —

imperturbavelmente jovem,

destemidamente lindo —

entre as flores que colho

em eu lembrar-te.

 

 

             Lá Fora O Vento Insiste

 

Ouves?...

Lá dos lados da infância

os violinos de ventos

vibram entre o trigal maduro

canções cheias de um brilho assombrado...

 

Os sonhos interrompidos

dos suicidas

uivam sem corpos

palavras prateadas de frio amor.

Suas vozes sem bordas

abrem-se em abismos

onde despenham estrelas e amadas

no apocalipse de seus corpos nus

cheirando a ervas coniventes

que hissopam seu dourado despudor.

 

Lá dos lados da infância

os ventos tocam violinos

para as crianças dormir

e os adultos poderem

desfolhar seus desejos

sobre o lençol da noite.

 

O escuro do silêncio

ressona como um cachorro velho,

e os amantes aproveitam

para não dormir.

Lá fora o vento insiste —

esfrega o inquieto corpo

na tumidez da noite.

Ouves?...

 

 

            Reconstrução

 

Abre janelas em teu quarto —

entre a luz e a brisa fresca.

Entre a vida a cantar

por todas as tuas células.

A água potável da música

( tu sabes que a luz canta... )

regue amorosamente

as tuas emoções.

E derruba, sim: derruba

( lá em teu coração )

as paredes do teu quarto —

haja pontes entre as pessoas

e trocas, todo tipo de trocas

de todas as vitais necessidades.

E não te esqueças de tomar

( a qualquer hora do dia

ou da noite )

chuvas e chuvas de alegria

( que vêm dos lados da infância ),

nem de sentir o aroma

de luz e azul

que vem da graça de viver.

 

 

                   Remoalhos

 

O ver tem seus encontros com o rever,

seus remoalhos de realidades —

o reciclar constante de verdades

desfiando e refiando em seu tecer.

 

O mundo se recria pelo ver —

sim: faz-se outros em tais diversidades

que se vão transformando em unidades

desdobradas também pelo rever.

 

O ver é a consciência autovidente,

puxando para fora o inconsciente,

criando os seus degraus e patamares...

 

Degraus e patamares sempre novos

por onde o ver é pássaro nos ares

e o vário canto verde nos renovos.

 

 

            Sossegue: É A Sua Vez

 

Sossegue: nada foi dito.

Temos apenas balbucios

da Realidade.

E a vida quer que a leiamos,

contemos e recontemos —

primeiro para nós mesmos

e depois para os outros.

O ofício de viver:

dele depende

contar(-se) e recontar(-se),

ver e rever(-se).

 

Sossegue: o que foi contado

já não serve.

Cada geração reinventa o conto

em que ela se acredita ''alguma coisa''

e desse acreditar lhe vem a força

para cumprir sua tarefa:

trabalhar a sua essência,

organizar-se e transcender-se

como quem sobe degraus lá por si mesmo.

 

Sossegue. Não se deixe perder

por entre o pouco que foi dito.

Não acredite

que aqueles que nos antecederam

já disseram a vida por nós.

Não lhes demos procuração alguma

para sonharem por nós.

Cada homem ( quando faz )

faz seus míseros ensaios —

que em seguida viram húmus

para gestar novos ensaios.

A verdade

é o quanto podemos suportar.

 

Quem lê, relê, translê —

tem que contar

a fim de organizar-se e preparar-se

para novas leituras,

outros recontos.

Sossegue: todos temos

de aprender a contar —

a nosso tempo e vez.

 

Sossegue: aquilo a que chegamos

é só um riso do amanhã.

O tempo é sempre novo —

barro virgem, docemente moldável

segundo imagem-semelhança

do humano sonho.

Não deixe nunca de fazer-criar

( contar a vida para si )

e imprimir na estrada dos homens

a ousadia das suas pegadas.

Sossegue, que o dizer

é como respirar e ver.

 

 

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