Isto, Isso E Aquiles
Laerte Antonio
Se Bem Que O Estrado...
Cavuca fundo, meu amor, cavuca, vamos comer amoras no Japão. A beleza do amor anda caduca, mas nada que alguns sais não refarão...
Cutuca forte, meu amor, cutuca pra derrubar o tédio e a solidão. Cutuca a árvore, a árvore maluca que dá frutos quaisquer e até limão...
Chilica forte, meu amor, chilica todo tique e chilique, e grita à Zica que nos faça um café bem forte e quente.
Assim que pare a chuva, me vou indo, que amor sem chuva é orquestra sem regente... Se bem que o estrado também rege, rindo... LA 12/003
Uma Questão De Uso
Dizem que a vida é curta, mas não: não é só curta — é curta e mais tudo o que ela é. Os segundos, os minutos, as horas, ensaboados em nossas mãos, são preciosos para o indivíduo. E a soma deles — em anos, décadas, séculos — é preciosíssima para a humanidade. Curta é a alegria de mini-saia que se esqueceu de que lá nos seus entres está em pêlos... mas em compensação há de ter longos, longos aplausos...
Quem faz no hoje faz para sempre — tem o ontem de barriga cheia e o futuro sem passar vontades.
Dorothy sempre me telefonava: “Tá certo que a vida é curta, mas pode fazer-se elástica... tal como se prolonga um orgasmo. Tudo depende de não se depender de coisa alguma. Aliás, a dependência está lá no bar da esquina tomando uma com limão.”
Feliz a Dorothy, que se casou seis vezes e nem se lembrava do nome do primeiro marido. LA 12/003
Há Quanto Tempo...
Há quanto tempo que não dorme o vento nesse fluir que agora é ventania, daqui a pouco é calmo afloramento de brisas-folhas, sopros-harmonia...
Há quanto tempo nesse sonhamento na esteira desse alento de poesia que é luz e passa dentro do momento trazendo o sonho da alma: essa estesia
que é o motivo de o humano reconstruir-se dentro da estrada que é seu próprio fluir-se pelos poros de um sonho que se-sonha
já transcendido de outro transcender-se até que sua força recomponha seu lado ser lá em momentos ser-se. LA 12/003 Alegação Insustentável
Era enjoado: só fazia amor com chuva. ( Achava a transa uma peça muso-lírico-épica: o vento, a chuva, a folhagem, trovões, estalos, clarões — eram a batuta regente... )
A esposa pediu divórcio, alegando ao juiz “secura” — estiagem demais da conta.
O juiz negou o pedido “por pouco sustentável”... Alegou ( escandalizado e quase irado ) que, se água falta em casa, tem-se quem a forneça de sobejo e com prontidão. ..................................................................
O advogado da postulante segredava pelos corredores que o tal juiz era um dos agadeiros da consorte daquele gajo fenomenológico. LA 12/003
Ainda Bem
A gente, Eulália, podia até casar — temos de tudo pra não dar certo. Por isso mesmo, podemos ter esperança — que nunca frustra porque a gente vai empurrando-a, empurrando-a pro futuro e aí, sim, temos o depósito dos nossos quases que quase deram certo. ................................................................... Trabalhamos, estudamos, planejamos e sonhamos — fizemos tudo direitinho, só não fomos felizes. Ainda bem, Eulália, que ninguém se importou.
Se um dia você quiser, minha amiga, a gente casa. Temos de tudo pra não dar certo. LA 12/003
Ponte, Não Muro
Passante, não paisagem. Ponte, não muro. Transeunte, não escravo do mundo.
A vida é curta pra quem não sabe passar pelo seu interior, nem transitar pela luz que traz no próprio ser.
Os homens somos tardos no aprender o que importa — em geral abrem uma porta para o nada de sua não-estrada: não há luz em seus pés. Não sabem que devem construir com Deus a si e sua ventura por dentro de Sua Palavra até parir-se renascidos e borbulhados de piedade.
A vida é curta pra quem não sabe prossegui-la por dentro de seu fingir finar. LA 12/003
Um Bicho Amigo
Se agora a vida te passa a bola por entre as pernas — aprende a rir: ela é a dona.
Já fizeste bonito — foste à luta, à rede: golaços e golaços! Agora, é aprender a envelhecer. Isto é: de modo que envelhecer não seja bicho feio, mas bicho amigo. E olha: não é tão ruim assim trocar sapatos apertados por tênis, sandálias ou chinelos. Calças por bermudões. O relógio a quartzopelo sol e as estrelas. O compromisso inadiável pelo prazer da vadiagem ou de regar o jardim, ou engraxar os sapatos. O interpretar por escrito pelo ler para si — ler-escrever o que se quer. Enfim, meu caro, nascer, crescer, viver, envelhecer, morrer — isso é filme que sempre vimos... Só que agora o papel é nosso. E façamos de tudo para desempenhá-lo coçando os mimos e respirando calma e riso. Sim, riso: o saldo positivo de qualquer empreitada. LA 12/003
Pilhagem
Se você tem um cônjuge bonito, hão de querer prestar-lhe favores... Um relógio valioso, hão de esperar a hora de roubá-lo. Se você tem valor, hão de querer empaná-lo. Se tem asas, hão de querer chumbá-las para terem companhia... Se você... ................................................................. A beleza, o brilho, o valor, o dom são, em geral, coisas que nos faltam...
Claro! Você já sabia disso. O que talvez não saiba é que sempre é preferível passar por esses riscos ( e até perdas ) a ser um daqueles muitos que estão a deserviço do ser humano. LA 12/003 Cerca Viva
Sim, bebe, amor: o que não mata cura — quando não é doença coisa ruim... Bebe, que esta poção é uma loucura — grasnos de corvo em pios verdes de tuim...
Não diria que é uma gostosura tal como uma mordida no quindim... Não, não chega a tamanha divinura, mas: um beijo de língua com cauim...
Sim, bebe pelo avesso: é mais suave... Assim: que nem o vôo em vez da ave... Assim: que nem o gesto em vez da coisa...
Bebe, desbebe e, novamente, bebe e o que sobrar joga no pé da sebe — já que pulá-la é dom que não repousa... LA 01/004
Diferenças
Sim, o homem sensível choraquando a mulher vai embora. O delicado se apavora caso a esposa se demora. Mas há cônjuge que adora se a mulher vai embora: troca o colchão, troca de carro, perde alguns quilos ( na academia ), muda o visual — e logo tem sobre o lençol uma nova corola — sempre da cor do arrebol. LA 01/004
Fosses Uma Formiga...
Fosses uma formiga cortadeira, de que adiantava endereçar-te rosas? Nem urgiria abrir minha carteira ou inventar tristezas venturosas...
Lá na ponta da verde passadeira, há doze moedas de ouro valiosas... A mão que a erguer, gulosa e interesseira, vai colhê-las pesadas e lustrosas...
Mas de que vale ser uma formiga sem rosas pra cortar nem tenros ramos neste inverno branquinho, ó minha amiga?
E de que valem doze moedas de ouro, se nem elas nem mais outro tesouro pode comprar o bem que precisamos? LA 01/004
Carniça
Mais que hora de abrir mãodessas nadeiras — sentimentos-cipós, pensamentos-ímãs — coiseiras e canseiras que nos amarram ao pé de um nada. Ao pé de um nada que é tudo o que escraviza: elegância-charme-luxo com outros piripaques.
Mais que hora de abrir mão da carniça — deixá-la para quem ( de vocação ) a cobiça.
Sim, hora de dizer: Fiquem com tudo.
Aos anões e duendes que me invejaram, me cobiçaram os berloques e ( no escuro ) se apropriaram do que estava ao meu lado, digo: Sujaram-se à toa, mancharam-se de bobos — eu nunca tive nada, mas o que eu não tinha era meu. LA 01/004
Nesses Dias...
Nesses dias, amiúde, desabavamtempestades depois de tempestades... Tempos maus, gente má se revezavam a ver quem amontoava mais maldades.
Nesses dias motores crocitavam sobre a cabeça de homens e cidades... Cheias de medo, as flores exalavam angústias, aflições, perplexidades...
Sim: nesses dias as adversidades, como folhas de outono, revoavam pelas ruas e chãos das sociedades...
Nesses dias os cães eram felizes. As pessoas (aflitas) se entreolhavam... e tinham como bens os seus narizes. LA 01/004 Coisas Do Amor
Não leias: não vais gostar... mas se gostar, eu rasgo — rasgo e queimo com o fogo que incinera o ex-brilho da primavera...
Não venhas, que irias me alegrar... mas se vieres, prometo não demonstrar nem te dizer que me faz bem tua presença.
Não, não te vás, que o tempo está de chuva — vem vindo um temporal daqueles... e a chuva que tomares: com o vento pelas costas, poderá me resfriar, me resfriar e me fazer até espirrar, se um outro dia me coçares o nariz. LA 01/004
Entre A Ribalta E O Poscênio
Coisa engraçada, minha mãe: nem percebi que estava velho... Me trespassei de sonhos, me caminhei lá por mim... Fui por aí, por ali... por lá longe... por fora e dentro da realidade... Viagens físicas e psíquicas. Fui, voltei, espiralei: sim, pela margem espiral...
Refui: re-sendo sempre o que gostara que refosse... e, então, quando me distraí, sem saber que era eu, foi que vi — sim, minha mãe, foi que vi: estava velho — como uma árvore, cuja metade já não sonha...
Como um navio trespassado de ir-chegar... Como uma andorinha que, sabendo ( lá no seu instinto-Deus-nela ) que ia perder as penas, deu dois ou três rasantes fazendo o lago arrepiar com as pérolas do seu chilreio... E a partir daí nunca mais ninguém a viu. Dizem que foi metabolizada pelo destino nas entranhas de um peixe feito de sol e azul e da lágrima do oceano de onde um dia todos nós, minha mãe, todos nós viemos, para depois sermos sorvidos pelo sol: sem a máscara com a qual personamos entre a ribalta e o poscênio. LA 01/004 De Perfil
Quando queria estar sem ser visto — fazia-o de perfil, não porque fosse magro, é que, de frente, era gente normal e de lado, imaterial. Diziam os vizinhos que aprendera essa técnica com um padre de “sorriso lindo” da região e que dava cursos às noivas e às casadas, e as que os freqüentavam nem saíam de casa: assobiavam e cantavam o tempo todo: um sossego para os cônjuges, famílias e toda a sociedade nesses dias drapejados pela bandeira de Eros.
E quantas vezes ele não se ria invisível por encontrar o seu amigo Otaner ( o doutorzinho sem pernas: tão pequeno, que não as tinha ) fazendo cateterização em sua bela esposa. Com seus dedos-eletrodos e um cateter gosso-curto-torto — o homenzinho gania como cão que nunca vira comida: sim, gemia, se contorcia e babava epiléptico... nessa única briga em que a sapa engole a cobra. Depois saía esquiando (não tinha pernas), ondeando a bundinha... o rosto encantado, os olhos cheios de visões, cantando o “Glória” betoveeniano pelo nariz. Era patético vê-lo. LA 01/004
Claro Que-Sim!
Deram-nos o que fazer. O que estudar. A que aspirar. Em que esperar. Em que confiar. Com que sonhar.
Disseram-nos que era assim-assim. Fomos fazendo assim-assim.
E estudamos o que mandaram. Aspiramos ao que ditaram. Esperamos em suas esperanças. Confiamos em suas confianças. Sonhamos os seus sonhos e fizemos o que faziam. Sim: fizemos tudo direitinho. ....................................................................... Só não fomos ( é claro! ) felizes. Mas nos disseram que era assim mesmo: uns eram, outros não, uns vencem, outros não, uns conseguem, outros... Enfim, os seres mais que as coisas são complexos... e além disso, Deus, a vida, o destino, a vontade... Era assim mesmo, por causa disso, daquilo e, sobretudo, do calcanhar de Aquiles. ....................................................................... Então dissemos a eles: Claro que-sim, claro que-sim!... E fomos desaprender tudo pra ver se a gente conseguia entender alguma coisa — inclusive o cinismo que tão bem nos omitiram, risonhamente disfarçaram... ......................................................................... Mas é assim, é assim mesmo. O Sistema está a salvo. LA 01/004 Suplantação
Deus me deu certa doença para que eu a transformasse em realização e auto-realização.
Esse algo que me dói, que me dói muito há de livrar-me, libertar-me de mim, do mundo, do amor, do ódio, do bom, do mau, da luz, das trevas... enfim, da tirania dos opostos.
Sim, Deus me deixou nascer com esse espinho a tiracolo na alma... para quem sabe entender lá em meu ser o caminho entre a rosa e a cruz... e optasse pela vida que é dentro, bem lá no fundo do meu viver.
E não me rebelei contra o que a vida me deu. Nem achei bom... Apenas aceitei crescer por fora e por dentro em meu ser — já que percebo que a graça é por mim. A dor, aceita, vira alegria e bênção: suplantação. LA 01/004
Lá Fora O Vento...
Lá fora o vento é um velho violinogaratujando notas entre os ramos do outono que, com o corpo bem franzino, lírico, tange os sonhos que encordoamos...
Agora o vento é um crocitar corvino: profere ameaças, gritos e reclamos — não sabe aglutinar o som hialino aos eólios que ao longe acompanhamos...
Franzino violino, hialino desatino cantam pelo nariz como um menino que tem aulas de violão com o vento...
Lá fora arbustos mugem solidários vibrando finos sons estradivários... e a noite ampla escuta em sonhamento... LA 01/004
Enquanto Você Ouve Ou Canta
Enquanto você ouve ou canta uma canção, você quer que as pessoas sejam alegres e boas.
Enquanto você ouve ou canta uma canção, seu coração pode entender o que a razão se esforça por saber.
Enquanto você ouve ou canta uma canção, a vida ganha sentido e o sonho mostra o rumo aos pés.
Enquanto você ouve ou canta uma canção, você levita e olha: aprende a ver com o sentimento.
Enquanto você ouve ou canta uma canção, você liberta as asas interiores e pode ver acima do seu muro...
Enquanto você ouve ou canta uma canção, seu ego se decentraliza e dá lugar para os outros...
Enquanto você ouve ou canta uma canção, o tempo se abre em outros tempos e você colhe a vida sem espinhos.
Enquanto você ouve ou canta uma canção, você se vê entre você e alguém que é você mesmo em outras gamas...
Enquanto você ouve ou canta uma canção, você está entre o que gostaria e o que não gosta de viver.
Enquanto você ouve ou canta uma canção, você tem a certeza de que há muitos a caminho.
Enquanto você ouve ou canta uma canção, você percebe que o sonho é a senha para todo acontecer.
Enquanto você ouve ou canta uma canção, você nota que os espinhos da rosa têm as outras estrofes do poema...
Enquanto você ouve ou canta uma canção, você sente que tem a vida em forma de asa.
Enquanto você ouve ou canta uma canção, sabe que atrás de todo sonho está achar a mão para a mão que vai só.
Enquanto você ouve ou canta uma canção, um pássaro de sombras aprende lúcidas vertigens.
Enquanto você ouve ou canta uma canção, o longe, o ontem e o amanhã viram aqui-agora.
Enquanto você ouve ou canta uma canção, seu sonho é inseminado pelas virtudes do possível. LA 01/004 Em Tempo E Hora
Tua lembrança em mim é um fim de tardeem que não cabe o riso nem o pranto — mimo que, recebido sem alarde, assume o gesto imóvel do amaranto...
Algo indeciso, uma intenção covarde a olhar o telefone ali no canto... Fim de tarde nublada: já não arde nem canta um só encanto ou acalanto.
Flor jogada, secou e ninguém viu... Eco de gorgolejo em cachoeira a que se alguém estava não ouviu...
Luz que acordou ( em tempo certo e hora ) em mão que a recebeu bem prazenteira — e foi amada num gorjear de aurora. LA 01/004
Certo/Errado
— Estamos certos, meu pai?É por aqui mesmo? — Sim, incluindo a possibilidade de estarmos errados, estamos certos, meu filho, — o caminho é este mesmo. Só pode estar certo o que ao mesmo tempo está certo e errado. ................................................................................ — É por aqui, meu pai? — Não, meu filho, — é por ali, por ali é que está o errado a se acertar. LA 01/004
Nem Isso Nem Aquilo
É assim que vês a vida? Pois é assim mesmo que ela é — exatamente como a vês, da maneira como a sentes. Não é tragédia, não é comédia. Não é pétalas nem espinhos. Não é rósea, não é cinza. A vida é sempre a vida: pacientemente à espera de — pelo Ser — abrir-se em alegria e bondade — quando a vivemos em singeleza: quando a vivemos vendo-a assim, crendo-a assim. Sim, a vida é do lado dos que a vivem com alegria, dos que a vivem com bondade.
E já que é dom — para vivê-la e sair-se bem é preciso humildade. Sim: necessário humildade para lhe ter a graça — graça que vem através dela para aqueles que a vivem com alegria e bondade. LA 01/004
Desatitude
Escuto direitinho tudo quanto me falam, tudo quanto me silenciam — e não digo uma palavra.
Ouço com atenção as justificativas com que as pessoas mimam as suas omissões — e não digo uma palavra.
Dou ouvido ( paciente ) às críticas e iras com que os inteligentes interpretam o mundo — e não digo uma palavra.
Igualmente sou atento ao que os poucos preparados me dizem precisar o mundo pra ser mais justo e melhor — e não digo uma palavra.
Observo os pregadores remetendo uns pro Diabo e outros para Deus — e não digo uma palavra.
Sou todo orelha às mulheres queixando-se dos seus maridos, bem como aos seus consortes, insatisfeitos com elas — e não digo uma palavra.
Assisto aos que me pilham os proventos e me explicam honestamente por que é que me estão pilhando — e não digo uma palavra.
Vejo santos roubando bobos e ladrões roubando a todos — e não digo uma palavra.
Deparo com a mentira dizendo suas verdades, e com a verdade contando belas mentiras — e não digo uma palavra.
E nesse ir e não vir, natural um ou outro se esbalde: “E aí, André, tudo bem?...” Saúdo com a mão e um riso de chuchu fatiado... E não digo uma palavra. LA 01/004
Chiques Chiliques
Tão belas suas mentiras, tão belas e jeitosas, que, se verdades, perderiam todo o charme.
Tão convincente o seu mentir, tão gracioso e cheirando a finos cremes, que não poucos sentiam coçar as tripas ao lhe ouvir as histórias coloridas...
Fabulava-as tão crente delas, que as passava para os outros tal e qual muitos fazem com seus fantasmas e chiliques: em seu delírio os transfiguram em anjos a seu serviço...
Tão belas suas mentiras, tão belas e irresistíveis, que ouvi-las tinha tiques dos sonhos epiléticos — aqueles que em seu avesso são orgasmos de gaivotas lá na ponta do mastaréu... navegando saudades como Ulisses voltando para casa — louco-louquinho pra degustar uvas e amoras e fazer doce de goiaba. LA 01/004
Livros-Pontes
Meu é o tempo em que vivo e (me) faço sonhar: construo-me com minha mão na mão de Deus. Escrevo livros ao lado do Espraiado e estabeleço pontes entre mim e os de lá do centro — entro casas e empresas, templos e instituições e a mansão dos donos e notáveis, onde converso com eles: gente com gente — faço-os vestir a carapuça do que lhes falo ( porque lhes serve como uma luva de tamanho certo... ) — e ficam de bem comigo porque me entendem só pela metade e também porque lhes falo com jeito e arte — convidando-os a delírios, a aventuras e espantos que tanto invento quanto desinvento, mas nem por isso menos ou mais reais. ......................................................................... E não é fácil fazer poesia ( em geral morrem afogados aqueles que nadam bem... ). Sim, não é fácil fazer poesia — ter a simplicidade das crianças e dizê-la de um modo que enrubesça os adultos. LA 01/004 Por Uma Fresta
Tão difícilcomo não ter saudade do que foi bom — é te esquecer, já que sonhar contigo é hoje esta poesia que dá o salto e cai, não no vazio, mas numa outra margem — a que não sobe, a que não desce — mas a que prossegue-sendo: sonho que se levanta e faz do mal realização ( e auto-realização ) — sonho que se levanta e segue-sendo rumo-ser, melhor: desígnio-ser-se. Sim: a vida segue suficiente e nos leva com ela — nós a somos para sempre. Deixemos que ela nos seja o atalho para o caminho que nos leva para Casa. LA 01/004
Povo Madrugador
Os paulistanos são um povo que madruga. Deus os ajuda, não pelo fato de madrugar, — isto são histórias de seus patrões... Mas que os trabalhadores paulistanos madrugam, madrugam. E ( embora seus patrões não saibam ) — Deus ajuda até os madrugadores. LA 25/01/004
“Marterrissagem”
Ali, amada, o céu é rosae o pôr-do-sol, azul. Os orgasmos, cor de abóbora e muito mais fricoteiros.
Vamos pra lá, amorzão? Que importa ali o frio fabrique iglus do avesso e o vento espete gemidos nos altíssimos picos que ( para serem vistos ) tornam nosso nariz antípoda de si mesmo? E que há vulcões, lindos vulcões, sendo um deles do tamanho de um país não tão pequeno?...
Vamos pra lá, amorzão! A gente pousa na cratera de Gusev ( onde já houve um lago ) — chão macio e propício... A gente embarca e se manda ( de condução própria, amor: chato ter condições, né?... ). Sim, mais rápido que a luz, a gente vai, zunindo feito piorra, vai dar uma olhadinha: uma bem rapidinha no planeta vermelho — entre o chão rosa e o pôr-do-sol azul, num colchão recheado de furacão: aí a gente aproveita, amor, pra não dormir: a gente cava o poço, puxa uma água — pra cientista ver que ali tem vida das boas... ........................................................... Afinal, o que são, o que são pro pensamento 80 milhões de quilômetros? LA 01/004
Hoje
A cada dia —sua agonia. Seu desafio e calafrio.
Seja o hoje o suporte de toda possibilidade — e seu aporte.
O sonho ecoe lá no vale das pedras — e o que era preso voe.
Sobre o teu crer faze o que podes: sabes fazer.
Jamais seja covarde a tua mão entre a manhã e a tarde.
Se os dons não são, nem o sol arde — saiba arder o coração.
A cada dia — sua alegria: a nossa força. LA 01/004 Ninguém Nem Nada
Se você leva a sério algo que é só de brincadeira — acaba sempre por se construir uma armadilha.
O diabo é que — para livrar-se dela — você nem sempre se encontra aparelhado. Entrar ou sair é fácil — difícil é sair ou levantar-se e prosseguir.
Descer ao próprio fosso — se faz pela fraqueza, pela abulia ou doença...
Subir de lá por si mesmo — demanda força de vontade, querer disciplinado ou focado...
As coisas mais ridículas são as que se fingem de mais honestas. Já os gestos e atos honestos admitem o humor, o riso e a gostosa gargalhada... ............................................................................... Sem a intermitência do humor e do riso — melhor não se levar a sério ninguém nem nada. LA 02/004 Falta De Graça
Difícil ( mas não impossível,diria um filósofo zen ) é enfiar o dedo na boca e assobiar a valsa vienense, ou ( claro! ) um samba de breque, pra você que se ufana.
Agora, se o mesmo dedo se desviar para um dos outros oito orifícios, aí acaba toda dificuldade — inclusive a graça, não é?
Nem seria preciso dizer que muitas das dificuldades que incentivam a nossa luta por vencê-las — na verdade não valem nem um só assobio — pois que vencê-las ( algo demais antigo e tolo ) já não tem graça... Chato, né? Claro: chato, mas não desanimador, pra você que continua heróico. LA 02/004
Rabo-Tice
Chato não é um lugar qualquer, mas um estado lá em nós. Quem vive da beleza e da verdade deixou a chatice para os outros... Se por vezes sente que algo lhe é chato, sabe que não é só chato, mas belamente chato e, se belo, tem a sua verdade. Se veramente ou belamente chato já não é chato, mas belo e verdadeiro: e tudo em volta canta afugentando a cha... que deixou seu rabo-tice — igual uma lagartixa... LA 02/004
Casca E Seiva
Há um tempo morto que caminha ( fantasma por nós dentro ) durante a nossa vida, e um tempo que nos vertebra o ser, porque é barro constelado com o qual nos moldamos e nos impulsionamos. Um tempo casca e um tempo seiva, criando gamas de realidades de modo que passemos por entre a humanidade e nós mesmos — a caminho de nosso transcender-nos: veredas em tempo-ser. LA 02/004
Ainda Bem!
Claro que acharamo graal da poesia. Só não ficamos sabendo porque estava envenenado. E o tal veneno também vazou por nossas águas... Mas nem por isso a nossa vida ficou tão mais sem-graça nem pouco mais antipoética. ................................................................ O graal da poesia ( ainda bem! ) estava envenenado. LA 02/004
Fallando Cério
Se um cientista ordenhaalvos mugidos da Via-Láctea — nem por isso há de querer fabricar produtos de laticínio com a Máquina do Mundo.
Sempre inferior ao mistério ( dizia Zezé-Fofuras ) é a pretensão de querer adivinhá-lo...
Haja visto o Jacó do bar da esquina, que serve pingados transcendentes com mugidos branquinhos e um cafezinho bem forte — mas só cobra o cafezinho... ( É que o danado só usa leite de mimosas meio a meio pretas e brancas...)
Seu bar ( é claro ) ferve de místicos, esotéricos de todos os “ismos” e “ias”, mentalistas, metafísicos, intuitivos, clarividentes, sensitivos e mil e mil paramédiuns — todos eles ajeitando seus pregos e parafusos...
E o resultado disso é um gostoso transreal ( num burburinho celestial...) com sua cachaça macia, suas canções de cornitude, seus soluços ritmados, seus vômitos cosmogônicos — e tudo de parceria com flatos ululantes. LA 02/004
Consciente
Sem a consciência de si mesmo, como subir degraus em ser e dizer aos horizontes que vê-los é ter chegado um pouco antes?
Como empreender o rumo sem a consciência de si mesmo? Sem saber que o hoje é a graça que tem as provisões de todas as necessidades?
Lá na consciência de si mesmo, mister empreender o vôo pelo lado do avesso — e desvirá-lo ave olhando-a de perto e de frente: aí nós vemos que o universo nos é, e nós o somos. Com essa identidade descobrimos que a vida é um rio que flui inter-outros e cujas águas são a alegria e a força que — passando por nós dentro — é o canto verde nos renovos. LA 02/004
Entre A Mão E O Sonho
O que faz uma coisa dar certo é não pensarmos que ela vai dar errado.
O que realiza um projeto é nem de leve duvidarmos que ele já está sendo feito: uma questão de ousá-lo num tempo nosso.
O sonho é a primeira nota. O fazer, as notas seguintes. E você não precisa ser maestro, basta apenas não atrapalhar a orquestra. LA 02/004
Dêiticos Pilosos
— Você só pensa naquilo, André? — Sim, mas com certo critério: Naquilo quando longe. Nisso quando perto. Nisto quando dentro. ................................................................. Ou seja: aquilo — quando bilhete sonhado. isso — quando bilhete que se compra. Isto — quando bilhete que dá. LA 02/004
Manda Brasa, Amor!
As delícias da carne estão chegando, da carne de primeira e sem igual — ei-la mulata-branca-negra: tremulando, arrepiando a avenida : é Carnaval.
As escolas de samba vão narrando com as tintas da libido e do sensual seus enredos, — e tudo transpirando os delírios de um coito nacional...
Seios e nádegas sacolejando a um tempo em que quadris vão desenhando o mexe-mexe em cópulas lentíssimas...
Baterias ritmando essas coisíssimas!... Ah! Manda brasa, amor: não recrimines... O pouco e o mais fiquem pra fora dos biquínis. LA 02/004
Passos Fofos Sobre Seixos...
Quando um pensamento lhe aperta o coração — você deve sentir-se alegre: não lho puderam extirpar para jogá-lo na lama...
Quando um sentimento lhe aperta a razão — veja-se um privilegiado: você ainda dialoga com esses dois.
Quando a razão lhe fala alto com o coração — dê graças a Deus, meu caro, sim, dê graças — ela está com ciúme dele.
Reconstruamo-nos, meu velho. E a propósito, se vir um homem de lata, um espantalho e um leão andarilhando juntos por aí — diga-lhes que Dorothy manda lembranças... e que ela faz questão de lhes lembrar que o caminho já não é o das pedras amarelas... Tudo muda, meu caro — muda o caminho e o caminhante: passos fofos sobre seixos lá por veredas de nós mesmos...
Mas... tenha medo não, meu velho. Muito menos das Bruxas. Apenas saiba que elas existem. Sim: graças a Deus, elas existem. LA 02/004
Para Depois Da Morte
Há os que se sentem agredidos por terem nascido gente — não deram nunca certo como seres humanos: nada quiseram nem querem com essas “coisas sem-graça” que a vida lhes mostra tentando seduzi-los...
São homens, mulheres e crianças — são pessoas em trânsito — que se perderam lá em si, ante os arames de farpas ou eletrificados do mundo por mantê-las lá no brejo das margens: perdidas lá em si mesmas feito almas vagantes que não sabem que morreram...
Seu único lenitivo é estarem sempre apaixonadas pela morte — pelo que ela lhes oferece de pré-alívio: de apocalíptico, de fins dos tempos — doce escatologia, viagens por dentro do não saberem...
Jamais se sentiram em casa, nem amados ou entrosados nas engrenagens do mundo — para eles, mais um moinho a moê-los o tempo todo para nada... ( um nada capcioso: adubo de alheias felicidades... ) Sentem no rosto o escarro do desamor e o cinismo da piedade. Num destino profetizado, nada querem a não ser nada, isto é: o que o mundo sempre lhes incutiu — a beleza e a glória de nada terem, de nada serem: e a recompensa de viverem assim — para depois da morte. LA 02/004
Ah, O Pires!...
Era amigo de meus irmãos. Quando eles se dispersaram, passou de longe em longe a visitar-me. Morava logo aí... à beira da Anhangüera. Baixo ( ou quase ), mais para sombrio... Pessoa até agradável. Teria seus 40.
Pires, chamavam-no assim. Dizia-se espiritualista: ledor de esoterismos. De minha parte lhe dizia que não era um sufixo que nos iria atrapalhar — se pudéssemos discordar, discordar bastante um do outro, tudo estaria bem. Como bom neurótico, tinha uma tecla que percutia sempre: Queria “achar uma mulher”, uma mulher que o compreendesse... Mas por que, homem, — eu lhe indagavaem tom de quem parece estar brincando — por que uma que o compreenda? Não serve uma que converse, trabalhe, ame, faça o que outras fazem e esteja disposta a atravessar com você a floresta? Você ainda exige, homem, uma tal que o compreenda?! Que luxo, cara! Que chiquê!........................................................................................... Aí ele ia ficando menos exigente... naquela voz frágil, úmida ( como que engordurada de bolo de aniversário... ). Parecia então que ia “entendendo” ( era assim em todas as visitas ) que a nossa insuficiência, a nossa falta de ser, todo esse azul abismo — nenhuma pobre criatura poderá terraplenar: é construção-plenagem nossa, trabalho para toda a vida.
Olhava-me manso e num meio sorriso como dizendo lá em alma: “Mas é muito blá, muita filosofice... e além do mais, eu creio no amor, em almas-gêmeas... em...” Aí eu lhe dizia: “Mas precisa ser gêmea?” Então ele ficava mais humano e ria um riso embaralhado e manso...
Terminava o café ( que eu sempre lhe oferecia ) e se ia por mais uns bons tempos. ..............................................................................
Soube, depois de muito tempo, que ganhara na Loto uma boa soma. Não o vi nunca mais. LA 02/004
Oi!... Oi!...
Dias quentes. Tardes escuras e chuva grossa — o Espraiado mugindo. Um vento fino e frio sopra franzido e faz os ramos respingar. ........................................................ Mas logo estia: o tempo se abre — com o céu já todo olhos... ............................................................ Um sapo solitário diz “oi!” para si mesmo — um “oi!” que ecoa num valezinho em frente:
Oi!... Oi!... Oi!... Oi!... Oi!... Oi!... E o teimoso bichinho ecoa seus sonhos-ois ( para si mesmo ) e, com certeza, com a sensação alegre de não estar sozinho. LA 03/004
Dedéis
Quando os dedos se forem, outras mãos usarão seus anéis, enquanto outras e outras os cobiçarão. Não fossem tão frágeis os dedos, as mãos abarcariam bem mais que o mundo. Os anéis sempre sobrevivem a seus fantasmas — que vão fazer amor gostosamente dentro da memória de outros fantasmas em orgasmos de sol e lua. LA 03/004
Entre Os Dois Zés
Zé do Burro já não existe. É a vez do Zé Pequeno — para desassossego e insônia do dia “nosso” de cada amanhecer. ( Primeiro Mundo adorou — falaram até em Oscar... Sim, pespegaram terríveis elogios. Mas os anéis eram pra outros dedos... Sempre que daqui se mostra algo bem deprimente — ficam felizes: tão felizes, que falam em dar Oscar... Depois deixam a gente com a cara de oscá... lambendo o dedo sujo de sonhos sonsos. ...xa pra lá! )
E o mais é um qua-qua-quá com o bla-bla-blá estético, pior: cosmético-dialético da fome, da exclusão, da miséria, etc.-coisa-e-tal, isto é: coisas letais — repartição da pobreza, concentração da riqueza. .................................................................... Nosso momento? Transição do Zé do Burro para o Zé Pequeno — da paciência-ingenuidade para a criminalidade.
Pois é. E querem insinuar ( vender barato ) que entre os dois Zés é difícil “ser alguém”... Difícil, ou um charme gozoso? LA 03/004 Nada Mais
Sou o filho de minha mãe. Sim, faz tempo, sou o filho de minha mãe. Para você, isso não quer dizer nada. Para mim, é uma pérola, um chip que minha mãe me incrustou em alma-coração — “Sou contigo e te gosto tal como és — e tens o meu amor sem que precises ter nada além que seres meu filho”. LA 03/004
Tristesão
Era uma tristeza gostosa, naqueles tempos, uma tristeza muito mais bela que a de hoje — uma tristeza com cheiro de lavanda e com sabor de menta, uma tristeza já quase inexistente: envergonhada de ser o que é. Tristeza banida, como a morte posta atrás da porta ou empurrada para debaixo de não lembrá-la...
Dizer-se triste era algo charmoso, chique, místico-metafísico em que a alma saboreava a solidariedade de uma atmosfera em que alguém podia chuviscar-se e ter quem o escutasse com enternecida empatia — isto é: sabendo o que ela queria dizer... Por isso, uma tristeza pessoal — dual ou trina, entre pessoas. Uma tristeza tola, mas bela — porque era belo solidarizar-se com a dor de alguém — sim: existia essa beleza, hoje varrida para debaixo de esquecê-la.
E como cheirava a lavanda, e como sabia a menta essa tristeza que era um tesão porque cutucava o seu outro lado: cutucava a barriga da alegria e ria-se por dentro com olhos interiores pensativos... que faziam da tristeza uma estratégia a morrer de alegria na outra face, onde um chique charmoso fingia-se de triste para não enfurecer os sermões das velhas missas de domingo: com braços, pernas e seios cobertos de pano grosso. LA 03/004
Pastora Da Existência
E disse Deus à Água: Tu me pastorearás a vida por entre as estações e o silêncio do mistério. Carrearás a existência e a seiva e os sais do sonho: serás a gôndola que leva a força-essência, o sentido-alegria no suprimento do instante para a completude e graça do momento. Manterás a beleza e a força da existência — terás em ti a possibilidade... e viverás no céu, e viverás na terra: subirás-descerás-subirás — suor frio de Abraão... lágrima ardente de Maria. Jorrarás viva do flanco do Filho e da Rocha percutida... A luz será teu movimento, o teu veículo e — pelas duas — ( num só corpo ) vem ao mundo o quanto existe. .............................................................. Pipi de Isaque, gorgolejos do Jaboque... Água limpa, água pura ( água suja de humano ), água santa, bendita, sacramental: forma de renascer dentro da luz — água sagrada! Sem ti, todo sonho se fará quebradiço: poeira de nada. Água eterna. Sim: nada de ti se perderá — gota, orvalho ou oceano, nuvem ou enxurrada, neblina ou gelo, — transfigurada sempre —, tua essência lustral jamais se perderá: eternamente renascida pelo ósculo da luz bem entre a terra e o céu. Pastorearás a vida pelas veredas do amor a perseguir um desígnio, um rumo, um nexo-finalidade. Água da vida levando em si o Sonho. LA 03/004 Sim: Mais, Sempre Mais
Por vezes você se surpreendechapinhando n’água rasa, as mãos cheias de areia e lodo: catando mariscos — esquecido do marulhar profundo de suas próprias águas — o oceano que fervilha no âmago do seu ser — ou de seu ontonavegar impulsionado pelo brilho de grandiosas estrelas e pela paixão maravilhada de infinito que arrepia de luz todo o seu ser. Sim, você não nasceu para o mesquinho e o pouco — você e Deus são sempre mais: a cada enfoque do seu ver há um ver-realidade sempre mais. Sim, você e o Universo hão de ser sempre mais, subindo dentre fibrilas de luz pela Árvore da Vida. LA 03/004 Em Forma De Ferradura
Morar numa baíaem forma de ferradura, mas não para dar sorte — para metabolizar em alma a calma, a paciência, o ver só para a frente de uns dez ou quinze asnos.
Sim, morar numa baía, amor, sem papagaio nem cão, e ter-te só na lembrança ( assim mesmo somente e apenas naquelas tardes de chuva... ). Sim, amor, em vez de ter-te — comer amoras.
Morar numa baía em forma de ferradura, ouvindo as águas, os ventos, as árvores e nossas necessidades zurrarem — zurrarem da ventura de nem serem felizes. LA 03/004
Na Colherinha Niquelada
Espelho gosta de caras, sim, gosta de mostrá-las mil e mil, menos a dele, que tem cara de nada, por isso mesmo o espelho ama obsessivamente a luz — sem ela, sabe que não é a não ser uma coisa cheia de escuro.
Quando você não vem, duplo vazio: no espelho e em mim — vazio que corro a preencher com o pudim da vizinha que dá a calda, com biquinhos e beijos, na colherinha niquelada. LA 03/004
Para...
Para a planta — chão, água e adubo.
Para ser gente com gente — solidariedade.
Para o que não teve jeito — amém.
Para as coisas impossíveis — tempo. LA 03/004
Sim, Nem Precisariam
Os mortos ficam caducando na eternidade. Conversam com os anjos, passeiam com os profetas, bebericam com Deus a luz do que sonharam.
Caducam tanto, que Deus, com dó ( num outro estágio ), — lhes ensina a esquecer de tudo, sim: inclusive Dele. ....................................................................... Aí os mortos caducam felizes — felizes de não saber que nem precisariam ter dado essa tremenda volta — fugidos pelos fundos da casa de Deuspai. Sim, nem precisariam fingir que Deus não os era. LA 03/004
Como Invejá-los?
Os mortos saboreiam ( em nosso imaginá-los ) a luz da eternidade.
Como invejá-los, se tenho a dos teus olhos e a do luar — única lingerie no teu corpo?
Como invejá-los, se já gozo a eternidade nas delícias do efêmero que sabes desfolhar tão bem sobre a loucura do instante? LA 03/004
Se Tocas...
Se tocas a beleza, ela morre. Se não a vês — ela não serve para nada. De longe, dizem que é irmã da verdade. De perto, uma doce mentira.
Se tocas a beleza, acordas o grotesco. E descobri-lo não exige altos dons: é fácil vê-lo sentado à beira do carvão, perguntando quem quer comprar diamantes...
Sim, a beleza sempre está lá... pronta a transformar-se em ridículo. ..................................................................... Ah! Lembra-te: não toques, não toques a beleza — apenas sorva o seu sumo de luz e sente-lhe o quente do corpo despetalando sonhos que a mão — inutilmente — tenta pegar. LA 03/004
Um Li...
Um livro de verdade é boa companhia: diz o que precisávamos ouvir. Vinho bebido com nosso riso recostado no sonho. Pão comido antes do amanhecer de novas asas orvalhadas do azul de um céu de maio ( ou dezembro? ): olhos dizendo sim com um sorriso despenhado no coração da gente.
Um livro de verdade é o que escrevemos e já não nos lembrávamos do nosso pseudônimo quando o compramos de mãos de outro que nos dizia tê-lo escrito numa realidade paralela... e nossa alma, prontamente, lhe diz que sim: que ele o escrevera numa realidade paralela...
Um livro de verdade é aquele que, além de companheiro, não se preocupa com a verdade, mas com a verdade da verdade — enquanto escada que construímos lá por nós dentro. LA 05/004
Olhar Para Trás
Lá vez por outra é bom, recomendável até, dar uma olhada para trás. Vendo outros infelizes, a gente se sente bem — nossa felicidade ( tão precária ) se acalma... e dizemos ao cônjuge: Tá vendo, meu amorzão, como a gente é feliz e nem sabe?... Sim: ver que os outros estão mal nos faz sentir muito bem. Pra ser feliz é só olhar o mundo pela telinha. Isso já nos ensinaram faz um tempão, né, amorzão? LA 05/004
Cheiro De Fêmea
Minhas mãos ainda tinham o seu cheiro e eu já tinha percorrido a interminável avenida... O mesmo vento frio que me empurrou para você agora me pegava nos cabelos e os derrubava sobre a fronte... e minhas mãos ainda estavam cheias do bom, do belo do seu corpo. Quanto mais me afastava de seus dedos compridos e com unhas de um crispar seco quais gumes com timbre de navalha afiando-se em minha pele — mais o seu cheiro entranhado em minhas mãos... Sim: minhas mãos por tobogãs de pele, por côcavos e recôncavos, cheias daquele cheiro cálido e que de vez em quando eu levava em forma de concha ao nariz. .............................................................................................................. Já em casa, não quis lavar as mãos. Deitei-me com elas espalmadas sobre o rosto... E sonhei que cheirava seu corpo que tinha o aroma de ervas coniventes e o calor dos verões suando prazeres que mancham os lençóis. LA 05/004
Poema-Fragmento
Só quem experimenta a vergonha de ser homem, a precisão de denunciar, a ânsia de entender seu drama em humano, a urgência de ordenar-se e transcender-se — só o que vê que a vida não é isso que vivemos é que tem a necessidade de fazer arte. Tudo mais é estar entre ser e ser-se. LA 05/004
Prisão Dual
Você e suas mãos saibam o que é o bem e o que é o mal. E como dar o salto e cair na margem espiral — livre do bem, livre do mal, livre de si: do auto-engano tramado em alma, lá nos genes psíquicos. Sim, dar o salto e cair transcendido de si. Dar o salto e cair na ousadia do salto — sem margens direita e esquerda. Sem os opostos a ditar a prisão dual onde brincamos de liberdade... e, cínicos, pregamos que a vida é assim-assim-assim... Sim, tolos, esquecemos que a vida é o mestre e o viver, o discípulo. O mais, uma questão de viajar-se por si mesmo. LA 05/004 Pobres Meninos
Só os perversos vivem no transético: vivem negando as margens e o caminho. Pretendem lá em si o salto atlético pra além de ser: o avesso de um espinho
aberto em rosa num sonhar caquético, sem pernas de suster-se: um burburinho de anjos tramando contra o Sonho... em epilético mumúrio contra a luz cheirando a pinho...
Pinho-pinheiro recontando ao vento a sua enfermidade-sentimento, seu pensar de viés com a vontade
de podermos mudar nossos destinos — sem deslocar o eixo da verdade e voltarmos a ser nossos meninos. LA 07/004
Desenham-Me De Brisas...
Desenham-me de brisas rotas taisque confluem por mim num só caminho orlado por Eu Sou, o meu Painho, que vejo em sensações multiversais...
Sim, vejo: e em vendo-O, sou-Lhe a nave e o cais de um viajar na ponta de um espinho que se abre em rubros sonhos entre o linho de dourados gorjeios matinais...
Um ir-me e vir-me Nele, um respirar-me pelos poros da vida a revelar-me o avesso de pegadas cor de vinho
e o miolo desse pão que a passarada ( espiando entre os leçóis da madrugada ) vai bicando entre cantos cor de arminho... LA 07/004
Mais Que Rosa
Rosinha era especial. Muito mais que especial — todo mamífero apreciaria ter-lhe a ternura, o traquejo e a tecnologia.
Sim: mais que rosa, Rosinha era uma roseira, um roseiral inteiro. Claro que com espinhos e tudo, que ninguém, meu amigo, é de ferro, nem se deve exigir mundos e fundos de um ser assim tão humano, não é mesmo?
Rosinha não se desfolhava à toa, à toa com qualquer ventinho ou brisa... Era terna, sim, era sensível — mas sobretudo versada em tecnologia de ponta.
Verdadeiro prodígio nos cafunés, com PhD naqueles tais chiliques múltiplos ( que ninguém sabe o que é ). Fosse ministra da saúde logo-logo acabaria com as filas enormes e tensas... Por onde andasse arregalava tudo em volta: os cônjuges machinhos ficavam esbugalhados com quatrocentos olhos: como pés de manacá, ou caudas de pavão... Seus braços e cinturas ( deles, dos cônjuges ) ficavam roxos de beliscões das patroas.
Rosinha era pra lá de demais — todo mamífero adoraria ser triturado, moído pela sua ternura e azeitada maquinaria. Até o vigário, coitado, ( não contem pra ninguém! ) — ao vê-la flutuandando pela nave, enfiava a mão no bolso e se dava tanto beliscão, que sua amiga, à noite lá no ninho, entre encabulada e irônica, lhe perguntava entre os dentes: Que diabo é isto aqui, Inácio?! Ele, é claro, respondia-lhe honesto: Penitência, Dolores, penitência de pecados peludos! Aí Dolores, compreensiva, fazia-lhe curativos nessas e outras dores. .....................................................................
Rosinha? Nem o Diabo era diabo suficiente pra andar-lhe quatro segundos no rastro sem sentir pena de ser civilizado...
A cidadela viveu aos uivos ( discretos, claro: bem sufocados ) até que apareceu “o fazendeiro” que a levou para trabalhar pra ele. LA 08/004
Pelas Rêmiges
Pega teus pensamentos e tira, quebra-lhes o gesso. Pega os teus pensamentos e tira, tira- lhes a barra de preço... Os ventos, pega pelas rêmiges os ventos — e traduz ( senão me esqueço ), traduz os seus gemidos, suas vertigens cor de anil e vê, vê por que doem tanto os ventos, por que doem tanto os ventos. E pega esses momentos ( cheios de vida e morte ) e arranca-lhes as penas das asas... Sim, pega esses momentos e dá-lhes um nó na pressa, ainda que sem sucesso. E entre nascimentos e morrimentos — saibamos que morrer é nascer do avesso. LA 07/004
Lembrança
Lembro-me: os tempos eram maus. Engarrafei meus sonhos e os pus num canto — improvisei-lhes uma adega.
Cortei a lenha para a lareira... Aí apareceu Maria: ficamos bebendo sonhos em finas, frágeis taças de prazer — até acabar o vinho. Quando acabou ( a lareira estava acesa ) — vimos então que o destino estava escrito nas estrias dos próprios sonhos. LA 07/004
Não Menos Que Tudo
Em troca de nada? Nada. A liberdade de não pagar o preço tem o seu alto custo. O prazer, a satisfação são trocas — pagas de cá e de lá.
Depois da peleja não há tempo pra descansar. É contar os feridos, os mortos e desfrutar os despojos em casa.
Em troca de nada? Tudo. Sim: não menos que tudo. LA 07/004
Luz-Sombra-Luz
É preciso humildade. É preciso estudo. É preciso paciência. É preciso pesquisa. As coisas não são assim, nem assim-assim — as coisas estão sendo: estão no seu caminho de ser. A vida é uma estrada em mudanças. Pronta, acabada — nem a nossa insensatez. É preciso olhar para as pessoas e para as coisas de um outro modo — de uma maneira sempre mais total. Sim: repensadamente sempre mais total — onde saber se some a não saber e não saber seja a humildade-luz de mais pesquisa, mais estudo, mais paciência e sempre-sempre um outro modo de ver a coisa-ser.
Mister ter sempre em mente que o amanhã tem uma luz que faz a luz de ontem fugir como sombras... e a luz de hoje cantar uma canção de integração.
Nada é, nem muito menos será assim nem de outro jeito ou de forma padrão-clichê qualquer. Tudo está sendo diferentemente lá em chãos do provisório ( em sua estrada-tempo-ser ) o seu glorioso não saber O Quê. LA 08/004
Não Vás Sozinho...
Não vás sozinho pela noite imensa —mas com a bênção que colhes do momento... Ata um fio entre o cós do pensamento e o brilho dessa luz em ti suspensa...
Não vás sozinho pela noite densa — mas de mão dada ao forte sentimento de já teres chegado a teu intento bem antes de saber a noite intensa...
Não vás sozinho pela noite fria — leva contigo o dom dessa alegria de acreditar que podes: que é possível
não ires só por essa noite horrível — que engole os sonhos dos mortais... e dança nua no não haver mais esperança. LA 08/004
Lá Em Alma Lhe Plantaram...
Lá em alma lhe plantaram joio e trigo —todos os monstros culturais plantaram e toda a história ( sérios! ) lhe ensinaram — lhe disseram que o amor é vitiligo
do avesso: que o bem/mal é um pintassilgo que aprecia sementes que secaram lá entre maio/agosto: onde empalharam os sonhos de Gisele que um amigo
ajudou — mano a mano — a realizar e a dizer que não eram condizentes com a idade da menina ainda nuela —
e não porque a quisesse resguardar da fúria de canalhas delinqüentes — mas por querê-la sua toda ela. LA 08/004
Pato?...
— Até que ponto, doutor, escreviver pode ser um caso patológico? — Sei não, seu escritor. Só sei que além de pato... pode também ser gansológico. E esses dois-em-um podem virar coisose... Sim, um caso coisótico. Mas nada que não sare com algum antibiótico. LA 08/004
Com Ou Sem Calcanhar
É isto aí, minha nega, isso aí, mais Aquiles, o velho Aquiles — com ou sem calcanhar. E o mais é vida e quem lá anda. O mais é vida e sua angústia a empurrá-la a mais ser. LA 08/004
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