DICELÂNEA

Laerte Antonio

 

            A Bela Acordada

 

A Bela Acordada  ( no bosque )

pelos metanos do Saci —

levantou-se com muita fome.

Com os nativos saboreou amoras,

deliciou-se com inhames

e sopinhas de cará.

Bebeu cauim.

Pulou, gingou, dançou —

delirou peladona.

Pediu que lhe rachassem a sapucaia

e se regalou,

e pediu mais.

Outra vez mais.

E mais... e...

O cacique fez sinal:

Um pouco para amanhã...

 

Nadou na lagoa,

no rio, na corredeira,

deliciou-se na bica.

Enxugou-se na cabeleira

de exuberantes índios.

 

Pescou traíras,

soberbos bagres,

enguias grandes e graúdas,

piavas bravas, lambaris ariscos.

Cansada,

dormiu de bunda para cima.

 

Lá pelas tantas,

entre ensonada e bocejando,

comeu mandioca de vários tipos

e legumes transgênicos.

Tiraram-lhe de uma forquilha

mel azedinho de arapuá —

que ela comeu por sobremesa

com limão e cauim.

 

Quando ia sarando do porre,

a Bela exigiu mais.

O cacique fez-lhe sinal

que deixasse para a noitinha,

noite a dentro e madrugada.

 

Ao outro dia — deslumbrada —

e a lamber entre os lábios

restos de festa,

Bela pediu ao Saci

que a despertasse sempre —

porém que antes de fazê-lo

comesse algumas folhas de alfazema.

 

 

    A Despedida Do Tião

 

                                        Cara$ Amiga$:

 

Foi bom, foi divino

ter-lhe$ a compreen$ão,

a genero$idade.

Tão farta$ e tanta$

cooperaçoe$ e $en$açõe$.

Devo, no entanto, dizer

que doravante

vou concentrar meu$ $onho$

na$ mão$ hábei$ e $éria$

de uma $ó pe$$oa —

vou ca$ar:

ba$ta de de$a$$o$$ego$.

É hora de pôr a caneta

no $eu e$tojo.

$em pen$ar que i$$o $eja $imple$ e $óbrio...

$ó uma que$tão de $o$$ego,

querida$.

 

$audade$ de ontem

e falta$ no amanhã.

Beijo$.

Mai$ que beijo$, amiga$, —

aquele$ cicio$ de ca$cavéi$:

...$$$$$$$$$$$$$$$$$$$...

ine$quecívei$.

 

$aúde.

Tim-tim, e adeu$.

                                         

                                      Tião Azaléia

 

 

                      A Menina Do Sul

 

              Um tobogã azul

no olhar.

A argila bem modelada.

Um jeito lindo de sonsa

a areolar-lhe o semblante.

No andar, nos gestos —

labaredas reverberando

entre taças de vinho

e pão caseiro.

Tocava sem pegar.

Pisava só relando...

Falava sem dizer.

              Sorriso entre o choro e o gozo.

Um quê de sonho e pedra.

De bicho e humano.

De fera e anjo.

De besta e ave.

De gelo e chama.

De lucidez e demência.

De êxtase e espinho.

Braços de carne e neônio.

Pernas celestes.

Charme cheiroso.

Aura cálida.

Respingos de fêmea.

 

Rita era isso.

Viera do Sul,

com um sotaque

que, vindo dela,

era discreta afrodisia —

lingerie de pensamento.

 

Os mancebos da cidadela

ficaram aos uivos:

fisgas no olhar

e o brim arrebentando.

........................................................

Mas coube a Rui,

coube a Rui, o Jeitoso,

cuidar de suas vinhas

por vindimas e vindimas —

até que um vento de apocalipse

derrubasse as estrelas

              e alagasse as varandas do sonho.

 

 

                       Aba-Pai Dá-Me A Mão...

 

Aba-Pai dá-me a mão e Seu sorriso

lá na ante-sala do meu coração —

e vamos juntos pela via andante

que é a vida a trabalhar-se em tempo-ser.

 

E vamos juntos pelo sonho a fora

de o Criador estar na criatura

e a criatura saber-se em Suas veias

outro Ulisses no encalço de trans-ser...

 

E é tão vasto sentir-me em Seu amor

que por vezes me vem a sensação

de estar-me longe Dele um infinito.

 

Mas sei que por luz-anos que me afaste

sempre estarei comendo aquele pão

              nas varandas da Casa de meu Pai.

 

 

                            Acréscimo

 

Viva a loucura ( ! )

dos loucos genuínos, —

donos de uma loucura de verdade:

o germe de algo que acrescenta.

Criaturas que sabem

que a vida é mais que viver,

ou que viver é só um pretexto

para mais vida.

 

Esses tais nos ensinam

como subir a montanha pelo caminho

de quem sempre esteve em seu cume.

Com eles aprendemos

que o fazer precisa dos sais do ousar,

como a mão do que pegar.

E que entre a pedra e o sonho,

urge o sopro polinizado

do bom, do belo, do novo

de um sonhar sempre outro

porque outros é o que sempre somos.

 

Viva a loucura ( ! ),

que sabe ousar outros caminhos

entre chegar e chegar-se.

 

 

Ao Jeito De Casa

 

Aquele jeito de dizer descalço.

Jeito de não fazer, fazendo.

Modo de quem não vai, mas já chegado.

Jeito de Rosa

despetalando espinhos do dizer.

 

Prato de Rosa feito apetecível

a Barros, Mia Couto, e muitos mais.

O jeito brasileiro de contar

e recontar sem nunca ter contado

( para quem ouve )

a não ser as delícias de escutar.

 

Modo descalço de dizer,

de não saber ( sabendo além ).

De não querer a não ser tudo.

De não ousar senão calar-dizer

e rebentar em flor de ser

             o que antes escondia conhecer.

 

 

               Ao Sul

 

Quando me lembro de Zefa,

sinto saudade

ao sul da carne.

 

Zefa era boa como peste

na tiririca de uma horta.

Bela como não ter dívidas.

Prudente como não se lembrar...

Inteligente

como ouvir mil palavras

e só dizer três ou quatro.

Feliz como não saber.

 

Ah, Zefa!...

Quanta saudade

ao sul de conversarmos.

 

 

     Canção De Espantar O Frio

 

Corre, corre, minha Zefa,

pra debaixo das cobertas —

que o bicho papão do frio

vem vindo aí de tremer.

Vem vindo de parceria

com o vento: vai judiar.

Vem vindo de enregelar,

vem vindo de endurecer

e fazer dentes bater.

 

Tira os trapos dessa mala

e joga em cima da gente.

Cobre bem a minha orelha

com teu bafo e riso quente.

E capricha, minha Zefa,

devagar e prestimosa,

enquanto o estrado da cama

vai musicando a floresta.

 

 

 

          Cantar Pelo Nariz...

 

Por que repudiarmos a ignorância,

se em não poucas vezes

a felicidade nos vem dela?

 

Cultuá-la

fora tolice

ou contra-senso —

mas degustá-la,

que há de errado em degustá-la?

 

Não saber

nos dá forças para continuar.

Conserva o afeto

e o sentimento

daquele valer a pena.

 

Não saber

é todo o segredo

do nosso riso

e da alegria que nos faz

cantar pelo nariz

pedaços de canções

orvalhadas de possibilidades.

 

         — Viva, então, o não saber?

         — Viva nada.

Dure o quanto for bom.

O mais... Não tem mais não.

 

 

               Casarão Do Largo

 

O casarão estava cai, não cai.

As paredes riam banguelas.

Um cheiro de chulé do tempo

sapateava no ar de sombras carunchadas.

 

Mesmo assim ( se segurando nas parcas pernas )

o casarão

( a partir das nove da noite )

continuava a hospedar

nos feriados e dias santos.

 

Os moleques,

fingindo não entender

por que os casais entravam e saíam

daquele fantasma de óculos sem vidro —

olhavam para as mães

em cadeiras nas calçadas...

Mas antes que se atrevessem à velha pergunta,

Meroca, a professora,

e socorrista nas horas difíceis,

dizia ao garoto cínico:

Eles estão fazendo o que você —

escondidinho e ressabiado

( aí o menino ficava vermelho...) —,

faz todos os dias sozinho:

xixi...

Ou não é só xixi que você faz?...

 

Só o Abner de d ª. Zica

ousou um dia argumentar:

Ah, professora!... Se todo mundo

que ali entra vai mijar —

             o casarão já tinha rolado com as águas.

 

 

Compadres

 

Enquanto Joaninha

morava na outra margem

o rio me atrapalhava.

Depois que veio pra cá

tudo virou uma só água...

e nem o rio dá mais peixe.

O bom mesmo, compadre,

é lá onde a mão não alcança...

A humana satisfação

              só se realiza insatisfeita.

 

 

          Companheiros

 

As delícias da ilusão,

a droga de ler-escrever,

o charme da vaidade,

a loucura de bolso,

os belos-fiéis enganos,

aquele diabo, velho amigo...

a certeza da fé,

o humor, o riso, a ironia,

a força da esperança,

a comunhão com Aquele,

as alfazemas do amor,

a piada, a paródia, o chiste,

o já estar-lá da utopia...

as pitadas de neurose,

o material do sonho

que corporifica os desejos —

se alguém quiser exorcizar-te

tais companheiros tão humanos,

dá uns dois passos para trás

e pergunta:

O que tem para me dar em troca?

 

 

                         Conte Até...

Conte até dez, e viva.

Invente ( chega de evasiva! )

coisa de viver-viver,

e não de viver-morrer.

 

Conte até dez, e diga,

diga ao seu coração

que construa uma loriga

contra o espinho-solidão.

 

Conte até dez, e creia

que a fera não é tão feia —

quando vista a légua e meia,

ou pela televisão.

 

Conte até dez, e juízo!

Saiba que o humor e o riso

não são o saldo de tudo,

mas até que nos ajudam.

 

Conte até dez, até cem,

se o sono ainda não vem —

levante e vá depressinha

            jogar gamão com a vizinha.

 

 

         Cuidado

 

Cuidado com a mulata,

que ela mata —

mata, esquarteja, mói.

Seu amor vale prata

ou ouro em pó.

Mas a mulata mata.

Ao que lhe desata 

a alça do desejo,

não por pejo,

mas por molejo —

é que a mulata mata.

Aproveitem que a mulata,

despida,

desliza pela avenida,

suada de libido

e remelexo atrevido —

esfregando suas plumas

( rebolando lentamente )

na cara e na careta

de toda gente.

Cuidado, que a mulata

desbarata, mata

e mói —

mas não dói.

 

 

          De Cabeça Para Baixo

 

Urgente quero dar uma demão

de cera ou de verniz na minha mala —

antes que as folhas mudem de estação

 

e o vento as leve longe, — para os lados

de não haver o porto desta sala

com os meus sonhos sendo digitados

 

e postos ( cada livro ) em seu disquete

( pra que tudo apodreça devagar ) —

se bem que, em alma, um chip me reflete

num pisco de olhos meu fazer-criar...

 

Urgente digo adeus  ( sem dor e alarde )

às saudades que tive do futuro —

antes que a fera noite engula a tarde

e ponha tudo de cabeça para baixo.

 

 

E Viva A Vida!

 

O amor se saboreia

entre a língua e o céu da boca.

Se a graça é pouca

e amar nos sabe a areia —

não é por nos faltar

alguma competência

dentro da ciência

de pinxotar.

 

É que o amor é mesmo assim,

do princípio até o fim:

sempre se falta

em sua alta

insuficiência.

Paciência!

Um autêntico trepófilo

jamais bronqueia com nada —

entre o biófilo e o necrófilo

sabe que a morte é uma empada

com azeitonas de Eros

em seus sinceros

enganos —

quase sempre muito lhanos

em suas belas razões,

cheias de boas intenções.

 

E viva a vida! —

que não obstante pouca,

é bela,

e sem ela —

adeus amores!

que já não alquimizariam

nossos ardores —

nem haveriam de orvalhar

( sob o arder de muitos sóis )

       a corola dos lençóis.

 

 

                                Elogio                          

                         

Todas as mulheres são terríveis,

mas algumas são mais

maravilhosamente terríveis.

Ruim com elas?

Sem elas: santos bocejos,

adeus às armas! —

nenhum dos deliciosos enganos,

das afrodisíacas mentiras,

das divinas diabruras,

das cruéis felicidades,

das desventuras venturosas...

Nenhum sentido teria

a falta de sentido.

Nenhum amor haveria

no desamor.

Nenhumíssima verdade

na mentira.

 

Sim: todas são iguais,

mas algumas são

mais loucamente iguais

              a quaisquer desigualdades.

 

 

           Entre Comadres

 

    E o nosso Andrezinho, Eulália?

    Meu André, agora, está bem:

deixou de criar galinhas

e desquitou da sogra e da mulher.

Casou com Zulmira —

a filha do Chicão Padeiro.

    Ah, bela moça. Trabalhadeira,

meiga, belos olhos, e que... !

E que...!

    Sim, Margarida, meu André

agora está bem vestido...

Já nem sai.

Trabalha o tempo todo...

    O André trabalhando?!

E o que faz?

    Conserta camas.

    Camas?

Sim, já quebraram três.

 

 

                       Estágios

 

Noiva-se em verso,

casa-se em prosa

e vive-se no conto.

E a vida canta

ora em chinês,

ora pois em risolês.

O amor? Aprende a pregar pregos —

pregos enferrujados.

Aprende orgasmos

de deixar boquiabertos

              os maiores faquires.

 

 

           Fininício Do Amor

 

Três chips implantados:

na cabeça,

no tronco,

na ilharga

( masculinos-femininos,

femininos-masculinos ) —

e se inaugura

o amor  ( discreto-decente ) digital.

 

Genitálias? Já eram.

Simples toques dígito-mentais

de pensamentos afinados ( e a fim... ) —

e faz-se o amor.

Amor dos bons, porque sem taxas

nem periculosidades...

Amor dígito-mental:

programado, taimerizado

e realizado

por reciprocidade

simpático-volitiva.

 

Amor anímico-celular,

ideal-fractal-virtual,

de orgasmos internáuticos

e delícias tele-acopláveis —

amor dígito-psiconáutico

ou neuropneumatelepático.

 

Amor ( se desejável )

de concepção psicogenética,

gestável e parível do mental

para uma sacola-útero,

que pode ser deixada em casa

ou adaptada

ao porta-malas do carro.

 

Adeus motéis, puteiros,

nostálgicos bordéis.

O amor dígito-mental

              vos decreta a falência.

 

 

                     Gene Romântico

 

Gosto frio de menta

lá em lembrar você.

Sinos interiores,

guizos de prata —

em vê-la vindo

entre sete e sete e meia.

Um cheiro de lavanda

na alegria de abraçá-la.

Árvores, flores, fonte luminosa

e muita coisa bonita

percutindo sensações

entre suores

e calafrios.

Uma braçada de flores

de hastes longas e suaves,

com um laço de fita ao meio —

isto, o que guardo de você.

              O bom, o belo, o melhor

da minha juventude.

 

              Gostoso Engano

 

Fique tranqüila, Zefa,

que o amor

não corre nenhum risco

de melhorar —

vai de amor pra desamor.

E nós, os seus cantores

quase sem voz.

 

Fique tranqüila, Zefa,

pois que aquela melhora,

que em geral precede à morte,

não se dará.

O amor vai prosseguir —

cheio de auto-sabotagens,

terceirizadas bandidagens

e gostosos enganos.

 

Mas nem por isso, Zefa, nem por isso

o sonho dos opostos

deixará de um dia ser

esse desassossego

de nos buscarmos uns nos outros

pensando que nossa falta

( de ser )

o nosso pobre amor

              pode suprir.

 

 

Guarda O Que Tens                         

 

Não permitas que o mundo te soterre

essa alegria simples,

que, no fundo, é coragem de viver.

Nem permitas que o mundo ponha absinto

na água que tu bebes.

Nada usurpe, em teu peito,

o espaço da tua paz.

Nada, ninguém consiga vulnerar

a tua fé,

tisnar tua esperança,

esfriar teu amor.

 

Navegar e viver

são dádivas simultâneas...

Esquece o tédio existencialista dos antigos...

e aprende a navegar, — vivendo,

e a viver, — navegando...

O nexo de navegar é a vida,

e o sentido da vida

é mais que nave,

é mais que vento,

é mais que vela...

A finalidade da existência é a alegria.

 

 

      Lembrança

 

Quando vinham temporais,

minha avó, com muito medo,

dava-me muitas palhas bentas,

pegava uma lamparina

e se punha a rezar

enquanto as palhas queimavam.

 

E o tempo descarregava

a sua formidável fúria

em relâmpagos, trovões,

raios, coriscos, estalos,

chuva grossa, grosso vento

e carrancas de céu negro.

 

Em seguida, a outra face:

a calma se recompunha

com um sorriso arrependido.

Minha avó, então, me olhava,

pálida ainda, e me dizia:

“Tá vendo, caro? É só rezar...”

 

 

     Lillian Witte Fibe

 

Seu jeito oblíquo de dizer

nos cai tão direitinho.

Sua simplicidade matreira

é o açúcar

para os limões da notícia.

Seu sorriso de menina

exilada da infância

gera empatia existencial

e o cheiro

daquele pão feito em casa.

Seus comentários

fingem dificuldades

para saber explicar —

e pela simpatia

decodifica.

Com você, Witte Fibe,

a gente aprende gostosamente

que as coisas “são assim”

de um “outro jeito”...

E aprendemos a tirar

mel das pedras

e doçuras do absinto:

as notícias azedas ( em seu narrá-las )

têm o perfume humano

de que poderiam ser outras.

Com você, Witte Fibe, as meias-noites

têm mais conchego.

Seu sorriso e seu boa-noite

foram tombados

pelo nosso coração.

 

 

           Longa

 

Teresa era uma flor

de haste longa —

sempre adorável

no vaso dos lençóis.

Quando irrigada,

seu rosto era caiado

de céu —

uma expressão de lonjuras

( entre rosa e jasmim )

de mistura

com o gesto-sorriso

de seres hermafroditas.

 

Amar Teresa

era um ritual

místico-carnal —

era participar

do gozo do Universo.

 

Claro que Teresa não sabia

de meus rituais mentais,

nem eu podia dizer-lhe

que era divino tê-la —

senão ela me explorava

            ainda mais.

 

 

     Mas Isso É Bom...

 

Durante toda a nossa vida

muitos haverão de ter rido

barbaridades de nós.

Teremos feito rir

muita gente.

Mas isso é bom —

assim se desviaram

( se esqueceram por momentos )

de seus ridículos e loucuras.

              Fomos bonzinhos sem querer.

 

 

          Moça No Shopping

 

Um jeito de palmeira ao vento.

Olhar de samurai

( que procura a bolsinha

em que a filha do rei

guardava a virgindade ) —

plurifocal, onividente.

Ar de quem adorou...

Sorriso de quem sabe...

Andar de pés descalços

pisando areia quente.

Semblante

pop-renascentista.

Vê-não-vendo.

Toca sem pegar.

Olha ternura a mil alvos.

Se detém em movimento.

Se desloca ficando.

Se encanta desencantada.

Pergunta sem ouvir a resposta.

Gosta se desgostando.

Faz questão de — pelo menos —

dizer “oi” a cada espelho.

Compara-se a todo busto,

quadris e pernas

que obrigam a adivinhar...

E vai e vem e passa,

passa rastreando —

levitandando,

passeia por entre panos

metais espelhos

couros jóias coisas-luzes

móbiles iguarias...

........................................................................

Preenche com o corpo o cheque —

e se vai: desliza... orvalho-evola

 

 

    Morrimentos

 

Os velhos morrem de tédio.

Os jovens, — de “êxtase turbinado”.

Os ricos morrem de ter muito.

Os miseráveis de ter de menos.

Já os pobres morrem de raiva.

 

Os chiques morrem de amor.

Os sensíveis de solidão.

Os que pensam que perderam

podem morrer de depressão.

 

Os grandes morrem de seus “megas”.

Os pequenos, — de não “dar pé”...

Uns morrem pela mentira,

já outros pela fé.

 

Uns morrem de seriedade,

já outros morrem de rir.

Os intelectuais, — de enfado.

Os tolos, — de euforia.

Os acanhados, — de falta.

Os liberados de excesso.

 

O bravo morre pela glória

( e Glória por garotões ).

Os espertos, — de esperteza.

Os bobos, — de bobeira.

 

Os loucos morrem por seus sonhos.

Os moderados de prudência.

Os “normais” morrem de medo

e de pagar seus impostos.

 

De nossa parte, morremos

( com um calmo riso prévio )

por tudo e de tudo um pouco.

Quanto a morrer de verdade —

a vida sempre oferece

              uma total segurança.

 

 

              Não-Saber

 

O que sei nem sei.

O que não sei me ajuda mais,

porque assim sei que não saber

é um pré-saber com mais sabença.

 

Quem sabe há mais sabor

nesse saber que nem sabe,

visto como não-saber

de uma maior sabedoria?

 

O não-saber da rosa

não seria o seu charme —

sua serenidade

e glória venturosa?

 

 

          No Hoje Podemos

 

Sonado pelo Verbo a recriar-me,

trespassam-me universos e galáxias,

glórias, sonhos de Deus — Sopro-venturas

desde antes queda a corpo e meu retorno.

 

Verbalizado pelo sonho-nostos,

desdobro-me em caminho-caminhante

por róridas veredas interiores

entre os desvãos de mim em tempos-ser.

 

Oferto a rosa à cruz, e me revejo

em personas em mim que são eu hoje

na boléia de um sonho de resgate.

 

De fato: todos quantos fui dependem

( para terem as vidas redimidas )

              deste ( que ora sou eu ) render-se a Cristo.

 

 

Nos Dezembros Molhados...

 

Nos dezembros molhados, goteando

nas latinhas cantando nas goteiras,

os olhos no sem forro das cumeeiras,

aos bocejos, o sono ia chegando.

 

Minha avó, as histórias recontando,

sentada ao lado, bem na cabeceira,

ia contando contos de sereias,

até meus olhos fossem se fechando...

 

Navios, velas, bochechudas velas,

fúrias do mar, rochedos com fantasmas...

iam-me desfilando em grandes telas...

 

Quase transpondo o sono, ouvia o tom pidonho

de suas orações em italiano ( pasmas )

              que ela trouxera lá detrás do sonho.

 

 

          O Mais...

 

Calma.

Não perca o estilo,

a classe,

o charme

( inclusive o de não tê-los ).

 

Calma.

Conserve o riso,

o humor

e o tudo-nada da ironia.

 

Uma pitada

de amor

no desamor

faz o bocado

deglutível.

 

Num gesto-quem

cheirando a zen —

colha do dia

o que restou da rosa

que sua mão plantou

entre o vento

e a audácia de sonhar.

 

Não perca a pose —

ouse.

O mais a gente funga

para manter a vida

              ca-ta-pul-tan-do...

 

                O Quadrado Da Hipotenusa

 

          — Pois é, amor.

               Por que será que antes

               é sempre a melhor parte?

 

            — Entendo não, amorzão.

                 Mas quando a gente não sabe   

    tudo parece

    bem mais cheio de graça.

    A humana felicidade

    não terá suas raízes

    fincadas em não saber?

 

         — Mas como agir,

              e que fazer

              para que não-saber

              se torne uma atitude-hábito —

              um durar a esquecer-se

              no sorriso da rosa?

 

        — Fácil, meu Amadis.

             A gente finge não saber

             e diz a si e aos outros

             ( até acreditar )

             que é feliz.

 

        — Credo, amor,

             que desencanto!

        — Nem tanto,

se comparado ao pranto

             que vai ser transformado em riso

             a dar laços vermelhos

             nos sapatos do arlequim.

 

 

                          Para Duda

            ( em todas as idades )

 

Não se assente debaixo da jaqueira,

que estrelas podem cair sobre você,

e duendes com chapéus cor de infinito

hão de querer levar a pedraria

e dela fazer pingentes para as fadas.

 

Não se assente debaixo da jaqueira,

que pétalas de flor hermafrodita

podem cair sobre você. Além do mais,

se passar sua mão na casca da jaqueira,

você acorda o sonho verde da floresta...

 

Não se assente debaixo da jaqueira,

que lhe caem na cabeça penas de sanhaço,

enquanto um vento azul passa assoviando

as canções que aprendeu com aqueles anões

que batem para a chuva a corda do arco-íris.

 

Não se assente debaixo da jaqueira,

a não ser quando os pássaros de sol

já tiverem comido as suas frutas

e brisas vindas lá de trás dos morros

      ensinem para os homens o sonho dos girassóis.

 

 

       Passas, Ou Passas?

 

Aceitas, amada, umas passas,

ou passas?

Se passas, então vem cá, —

me dá um beijo

com gosto de arrebol.

Um abraço

com cheiro de jasmim.

Um sorriso

sujo de manga.

Um olhar com um jeito

bem sem-vergonha.

O mais, amada,

a gente faz

entre lembranças passas...

Ou passas?

 

 

Pausa

 

Você luta,

você se morde,

você uiva e chora.

Você perde-ganha-conquista.

E não demora

você descobre

que muito e muito daquilo

por que você se ralou

não valia nem um cílio do seu sonho.

 

Chato né? Mas é assim.

O aprendizado custa caro,

e a vida não deixa por menos.

 

Pois é.

Só há o para frente, e um sonho

vai puxando outro sonho

com a beleza de sempre —

estar entre o tempo e a rosa.

 

 

                Pela Fresta Do Muro

 

Em geral os covardes

têm voz e timbre sonoros,

dicção eufórica

e arrojos de animal no cio.

 

Os covardes

vivem sempre empurrando

os outros a fazerem

aquilo a que jamais se atreveriam.

 Citando frases lustrosas

  de poetas e filósofos enfermos,

 incentivam o mergulho,

 o pulo,

 a escalada,

 a travessia,

 as aventuras desgrenhadas,

 o risco,

 o jogo,

 as paixões —

 e tudo mais o que jamais fariam.

 

 Incentivam,

 e ficam vendo

 ( por uma fresta do muro )

 se o leão deixa que lhe trancem a juba...

 

 

“Pela Linha”

 

Meu pai era maquinista.

Ficava “pela linha”, “pela linha”...

“pela linha”...

Era lindo-misteriosa a expressão

“pela linha” —

porque eu não sabia o que era...

De vez em quando vinha:

uma cesta enorme com

doces

bananas

chupetas açucaradas

e um cheiro bom

de graxa

nas mãos...

Suores nas mangas

do paletó marrom.

 

Nossa mãe disfarçava

sua felicidade,

e nos mandava ficar

esperando na esquina —

de onde corríamos encontrá-lo:

o coração pulava

de orgulho —

era o nosso pai,

forte como as locomotivas em que voava

e fazia chorar no apito.

Seu boné azul-marinho,

seu Ômega de bolso,

seu jeito mitológico.

 

Ele nos abraçava. Nossa mãe

    para agradar —

lhe mostrava alguma novidade

que ela havia feito na máquina

de costura,

ou mesmo algum dinheiro

que ganhara costurando. 

 

Meu pai sentava,

eu lhe tirava as botinas,

calçava-lhe os chinelos,

e um de nós lhe lavava

e lhe enxugava os pés.

Ele nos contava coisas

de aventuras:

chuvas,

desabamentos de linhas,

descarrilamentos,

problemas com a máquina...

A gente ouvia apalpando

e olhava segurando 

seu contar gesticulado,

entrecortado

de cachimbadas, e risadas.

 

Com o meu pai

o nosso coração ficava forte —

uma alegria bem doce,

com chocolate e rapadura.

Um gosto na boca

de coisas longe agora perto —

ouvidas e sentidas entre as mãos:

frias e quentes.

Ásperas

ou feito piavas ensaboadas.

E tudo cheirando a café fresco,

a pão e queijo

feitos por minha mãe.

E nossa casa era linda

como a rosa que não sabe

do fim da tarde.

A fé a suportava,

a esperança a fortificava,

a família dava-lhe um porto.

 

E a vida era feliz,

feliz de não saber.

 

 

              Pequi

 

Não chores não, senta aqui,

que te faço uma canção

com gosto de sapoti,

doçuras de pão assando

e festas de bem-te-vi.

 

Não chores não, senta aqui,

que te reconto a velha história

daquela pobre Glória

que louco-amava Peri

que era doido por Vitória.

 

Não chores não, senta aqui,

que o amor não vale o que come.

Fica sabendo, moleca,

que o amor é como pequi:

quem lambe não mata a fome,

              quem morde fundo se estrepa.

 

 

                    Proposta Consensual

 

O amor? Babau.

Esgueirou-se,

e sumiu. Ninguém viu.

Dias depois passou um fax:

A minha parte quero —

no sorriso ou no pau.

Quero a cobertura da praia,

a chácara de Búzios,

os oito motéis da serra,

             2/3 dos nossos móveis,

2/4 da conta na Suíça,

metade dos latifúndios,

50% das obras de arte

( que lavaram os pós por vinte anos ),

os quarenta quilos de dentes de ouro

( dos garimpeiros que você mandou matar ),

as calcinhas e sutiãs

em fios de ouro e diamantes

com que presenteavas no Natal

as jovens esposas dos seus amigos,

metade daquele Estado que você vendeu

àqueles sardentos da Europa e América,

todas as propinas do... e do... e...

todos os superfaturados,

as mutretas do hospitais,

Previdência e funerárias,

laudos forjados,

impostos e taxas para viver —

e o dinheiro e a posse dessas 42 empresas

por cujas águas você passa

a vida a limpo.

Ou me dá estas tutaméias

ou faço um requerimento

pedindo que você prenda a você mesmo —

antes que me mande uns trezentos

ou talvez mais pistoleiros

( inclusive com moto-serras )

para que me transforme

na mais leve e transparente das rendas

que só nosso Nordeste

             sabe fazer tão bem.

 

 

              Quase

 

              Não era aquilo

e não é isto, —

sempre aquele descompasso

entre sonhar e ser.

Aquela insatisfação

após satisfazer-se.

Aquele pós-sabor de fruste

no  término da fruta —

um gosto que a alma sabe

mas que não chega ao paladar.

Algo que falta

e dói por nos faltar,

mas que se não doesse

nem mais seria a vida

no seu querer-se mais —

no seu nos impelir

             para a nossa Casa em nós.

 

 

Que Raiva!

 

Como descansar em paz

enquanto não me torno despalavra —

nenhuma necessidade

de recontar-me a vida,

organizar-me no Verbo?

Enquanto não me morrer a precisão

de tanger o passado para o futuro

e transmutá-lo sobre a haste

das minhas frustrações —

terei de ler-escrever:

estar entre o silêncio, a solidão

e uma vice-ventura

com um sorriso sem-graça,

teimosamente irrevogável.

Um quase ter conseguido.

Quase ter sido.

Sim: só não fui

porque então veio o Rui

e apostou no mesmo cavalo

em que apostara a minha Vera.

Ambos ganharam, e saíram

montados na nota.

.............................................................

Que raiva!

 

Só um comprazimento,

uma compensação —

um dia

me calo.

...................................................................

Mas antes disso

compro um cavalo,

e fico de olho no horizonte —

a ver quando é que os bárbaros

vêm botar fogo

no palácio de Hermengarda....

 

 

Sem Querer

 

Chega um momento

que o nosso íntimo vomita

o excesso de realidade —

a lógica nos machuca

por nada resolver.

A dialética vira auto-engano.

O saber, — riso.

O riso, — toda a posse.

E o não-saber vai se tornando

a beleza

de aprender sem querer.

 

Ah, meus amigos,

respiremos aliviados —

sejamos irrazoáveis!

Um dia — sem querer —

              seremos todos felizes.

 

 

 Sentindo Que É Possível

 

A vida, um pau de sebo?

Quem sabe seja mesmo.

Mas não permita que outro o suba

e lhe diga que o prêmio é falso...

Suba lá você mesmo —

e toque com suas mãos

e veja com seus olhos.

Quem sabe a experiência

de você ter ido lá

não fará com que o falso

sorria transfigurado

num brilho genuíno?

 

Para subir lá —

apenas queira fazê-lo

              sentindo que é possível.

 

 

 Uivos De Agosto

 

Frios “is” sibilam

entre fios,

mugidos pelo vento.

Agosto mia

como famintos felinos

por finos, tísicos arbustos.

Fantasmas de poeira

correm ao longo dos caminhos.

Agosto uiva, ulula, assovia...

deflora uma a uma as corolas

assustadas dos ipês.

Agosto geme apaixonado —

exflora, esfolha, esfola,

espalha o sêmen da estação

pelo corpo da terra em cio.

Agosto faz amor gostosamente

com tudo —

mas uiva mesmo, urra de prazer

é com as árvores-mocinhas

cujo corpo folhudo adentra

com fúrias, fomes de fauno.

 

 

 

 

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