DICELÂNEA
Laerte Antonio
A Bela Acordada
A Bela Acordada ( no bosque )
pelos metanos do Saci —
levantou-se com muita fome.
Com os nativos saboreou amoras,
deliciou-se com inhames
e sopinhas de cará.
Bebeu cauim.
Pulou, gingou, dançou —
delirou peladona.
Pediu que lhe rachassem a sapucaia
e se regalou,
e pediu mais.
Outra vez mais.
E mais... e...
O cacique fez sinal:
Um pouco para amanhã...
Nadou na lagoa,
no rio, na corredeira,
deliciou-se na bica.
Enxugou-se na cabeleira
de exuberantes índios.
Pescou traíras,
soberbos bagres,
enguias grandes e graúdas,
piavas bravas, lambaris ariscos.
Cansada,
dormiu de bunda para cima.
Lá pelas tantas,
entre ensonada e bocejando,
comeu mandioca de vários tipos
e legumes transgênicos.
Tiraram-lhe de uma forquilha
mel azedinho de arapuá —
que ela comeu por sobremesa
com limão e cauim.
Quando ia sarando do porre,
a Bela exigiu mais.
O cacique fez-lhe sinal
que deixasse para a noitinha,
noite a dentro e madrugada.
Ao outro dia — deslumbrada —
e a lamber entre os lábios
restos de festa,
Bela pediu ao Saci
que a despertasse sempre —
porém que antes de fazê-lo
comesse algumas folhas de alfazema.
A Despedida Do Tião
Cara$ Amiga$:
Foi bom, foi divino
ter-lhe$ a compreen$ão,
a genero$idade.
Tão farta$ e tanta$
cooperaçoe$ e $en$açõe$.
Devo, no entanto, dizer
que doravante
vou concentrar meu$ $onho$
na$ mão$ hábei$ e $éria$
de uma $ó pe$$oa —
vou ca$ar:
ba$ta de de$a$$o$$ego$.
É hora de pôr a caneta
no $eu e$tojo.
$em pen$ar que i$$o $eja $imple$ e $óbrio...
$ó uma que$tão de $o$$ego,
querida$.
$audade$ de ontem
e falta$ no amanhã.
Beijo$.
Mai$ que beijo$, amiga$, —
aquele$ cicio$ de ca$cavéi$:
...$$$$$$$$$$$$$$$$$$$...
ine$quecívei$.
$aúde.
Tim-tim, e adeu$.
Tião Azaléia
A Menina Do Sul
Um tobogã azul
no olhar.
A argila bem modelada.
Um jeito lindo de sonsa
a areolar-lhe o semblante.
No andar, nos gestos —
labaredas reverberando
entre taças de vinho
e pão caseiro.
Tocava sem pegar.
Pisava só relando...
Falava sem dizer.
Sorriso entre o choro e o gozo.
Um quê de sonho e pedra.
De bicho e humano.
De fera e anjo.
De besta e ave.
De gelo e chama.
De lucidez e demência.
De êxtase e espinho.
Braços de carne e neônio.
Pernas celestes.
Charme cheiroso.
Aura cálida.
Respingos de fêmea.
Rita era isso.
Viera do Sul,
com um sotaque
que, vindo dela,
era discreta afrodisia —
lingerie de pensamento.
Os mancebos da cidadela
ficaram aos uivos:
fisgas no olhar
e o brim arrebentando.
........................................................
Mas coube a Rui,
coube a Rui, o Jeitoso,
cuidar de suas vinhas
por vindimas e vindimas —
até que um vento de apocalipse
derrubasse as estrelas
e alagasse as varandas do sonho.
lá na ante-sala do meu coração —
e vamos juntos pela via andante
que é a vida a trabalhar-se em tempo-ser.
E vamos juntos pelo sonho a fora
de o Criador estar na criatura
e a criatura saber-se em Suas veias
outro Ulisses no encalço de trans-ser...
E é tão vasto sentir-me em Seu amor
que por vezes me vem a sensação
de estar-me longe Dele um infinito.
Mas sei que por luz-anos que me afaste
sempre estarei comendo aquele pão
nas varandas da Casa de meu Pai.
Acréscimo
Viva a loucura ( ! )
dos loucos genuínos, —
donos de uma loucura de verdade:
o germe de algo que acrescenta.
Criaturas que sabem
que a vida é mais que viver,
ou que viver é só um pretexto
para mais vida.
Esses tais nos ensinam
como subir a montanha pelo caminho
de quem sempre esteve em seu cume.
Com eles aprendemos
que o fazer precisa dos sais do ousar,
como a mão do que pegar.
E que entre a pedra e o sonho,
urge o sopro polinizado
do bom, do belo, do novo
de um sonhar sempre outro
porque outros é o que sempre somos.
Viva a loucura ( ! ),
que sabe ousar outros caminhos
entre chegar e chegar-se.
Ao Jeito De Casa
Aquele jeito de dizer descalço.
Jeito de não fazer, fazendo.
Modo de quem não vai, mas já chegado.
Jeito de Rosa
despetalando espinhos do dizer.
Prato de Rosa feito apetecível
a Barros, Mia Couto, e muitos mais.
O jeito brasileiro de contar
e recontar sem nunca ter contado
( para quem ouve )
a não ser as delícias de escutar.
Modo descalço de dizer,
de não saber ( sabendo além ).
De não querer a não ser tudo.
De não ousar senão calar-dizer
e rebentar em flor de ser
o que antes escondia conhecer.
Ao Sul
Quando me lembro de Zefa,
sinto saudade
ao sul da carne.
Zefa era boa como peste
na tiririca de uma horta.
Bela como não ter dívidas.
Prudente como não se lembrar...
Inteligente
como ouvir mil palavras
e só dizer três ou quatro.
Feliz como não saber.
Ah, Zefa!...
Quanta saudade
ao sul de conversarmos.
Canção De Espantar O Frio
Corre, corre, minha Zefa,
pra debaixo das cobertas —
que o bicho papão do frio
vem vindo aí de tremer.
Vem vindo de parceria
com o vento: vai judiar.
Vem vindo de enregelar,
vem vindo de endurecer
e fazer dentes bater.
Tira os trapos dessa mala
e joga em cima da gente.
Cobre bem a minha orelha
com teu bafo e riso quente.
E capricha, minha Zefa,
devagar e prestimosa,
enquanto o estrado da cama
vai musicando a floresta.
Cantar Pelo Nariz...
Por que repudiarmos a ignorância,
se em não poucas vezes
a felicidade nos vem dela?
Cultuá-la
fora tolice
ou contra-senso —
mas degustá-la,
que há de errado em degustá-la?
Não saber
nos dá forças para continuar.
Conserva o afeto
e o sentimento
daquele valer a pena.
Não saber
é todo o segredo
do nosso riso
e da alegria que nos faz
cantar pelo nariz
pedaços de canções
orvalhadas de possibilidades.
— Viva, então, o não saber?
— Viva nada.
Dure o quanto for bom.
O mais... Não tem mais não.
Casarão Do Largo
O casarão estava cai, não cai.
As paredes riam banguelas.
Um cheiro de chulé do tempo
sapateava no ar de sombras carunchadas.
Mesmo assim ( se segurando nas parcas pernas )
o casarão
( a partir das nove da noite )
continuava a hospedar
nos feriados e dias santos.
Os moleques,
fingindo não entender
por que os casais entravam e saíam
daquele fantasma de óculos sem vidro —
olhavam para as mães
em cadeiras nas calçadas...
Mas antes que se atrevessem à velha pergunta,
Meroca, a professora,
e socorrista nas horas difíceis,
dizia ao garoto cínico:
Eles estão fazendo o que você —
escondidinho e ressabiado
( aí o menino ficava vermelho...) —,
faz todos os dias sozinho:
xixi...
Ou não é só xixi que você faz?...
Só o Abner de d ª. Zica
ousou um dia argumentar:
Ah, professora!... Se todo mundo
que ali entra vai mijar —
o casarão já tinha rolado com as águas.
Compadres
Enquanto Joaninha
morava na outra margem
o rio me atrapalhava.
Depois que veio pra cá
tudo virou uma só água...
e nem o rio dá mais peixe.
O bom mesmo, compadre,
é lá onde a mão não alcança...
A humana satisfação
só se realiza insatisfeita.
Companheiros
As delícias da ilusão,
a droga de ler-escrever,
o charme da vaidade,
a loucura de bolso,
os belos-fiéis enganos,
aquele diabo, velho amigo...
a certeza da fé,
o humor, o riso, a ironia,
a força da esperança,
a comunhão com Aquele,
as alfazemas do amor,
a piada, a paródia, o chiste,
o já estar-lá da utopia...
as pitadas de neurose,
o material do sonho
que corporifica os desejos —
se alguém quiser exorcizar-te
tais companheiros tão humanos,
dá uns dois passos para trás
e pergunta:
O que tem para me dar em troca?
Conte Até...
Conte até dez, e viva.
Invente ( chega de evasiva! )
coisa de viver-viver,
e não de viver-morrer.
Conte até dez, e diga,
diga ao seu coração
que construa uma loriga
contra o espinho-solidão.
Conte até dez, e creia
que a fera não é tão feia —
quando vista a légua e meia,
ou pela televisão.
Conte até dez, e juízo!
Saiba que o humor e o riso
não são o saldo de tudo,
mas até que nos ajudam.
Conte até dez, até cem,
se o sono ainda não vem —
levante e vá depressinha
jogar gamão com a vizinha.
Cuidado
Cuidado com a mulata,
que ela mata —
mata, esquarteja, mói.
Seu amor vale prata
ou ouro em pó.
Mas a mulata mata.
Ao que lhe desata
a alça do desejo,
não por pejo,
mas por molejo —
é que a mulata mata.
Aproveitem que a mulata,
despida,
desliza pela avenida,
suada de libido
e remelexo atrevido —
esfregando suas plumas
( rebolando lentamente )
na cara e na careta
de toda gente.
Cuidado, que a mulata
desbarata, mata
e mói —
mas não dói.
De Cabeça Para Baixo
Urgente quero dar uma demão
de cera ou de verniz na minha mala —
antes que as folhas mudem de estação
e o vento as leve longe, — para os lados
de não haver o porto desta sala
com os meus sonhos sendo digitados
e postos ( cada livro ) em seu disquete
( pra que tudo apodreça devagar ) —
se bem que, em alma, um chip me reflete
num pisco de olhos meu fazer-criar...
Urgente digo adeus ( sem dor e alarde )
às saudades que tive do futuro —
antes que a fera noite engula a tarde
e ponha tudo de cabeça para baixo.
E Viva A Vida!
O amor se saboreia
entre a língua e o céu da boca.
Se a graça é pouca
e amar nos sabe a areia —
não é por nos faltar
alguma competência
dentro da ciência
de pinxotar.
É que o amor é mesmo assim,
do princípio até o fim:
sempre se falta
em sua alta
insuficiência.
Paciência!
Um autêntico trepófilo
jamais bronqueia com nada —
entre o biófilo e o necrófilo
sabe que a morte é uma empada
com azeitonas de Eros
em seus sinceros
enganos —
quase sempre muito lhanos
em suas belas razões,
cheias de boas intenções.
E viva a vida! —
que não obstante pouca,
é bela,
e sem ela —
adeus amores!
que já não alquimizariam
nossos ardores —
nem haveriam de orvalhar
( sob o arder de muitos sóis )
a corola dos lençóis.
Elogio
Todas as mulheres são terríveis,
mas algumas são mais
maravilhosamente terríveis.
Ruim com elas?
Sem elas: santos bocejos,
adeus às armas! —
nenhum dos deliciosos enganos,
das afrodisíacas mentiras,
das divinas diabruras,
das cruéis felicidades,
das desventuras venturosas...
Nenhum sentido teria
a falta de sentido.
Nenhum amor haveria
no desamor.
Nenhumíssima verdade
na mentira.
Sim: todas são iguais,
mas algumas são
mais loucamente iguais
a quaisquer desigualdades.
— E o nosso Andrezinho, Eulália?
— Meu André, agora, está bem:
deixou de criar galinhas
e desquitou da sogra e da mulher.
Casou com Zulmira —
a filha do Chicão Padeiro.
— Ah, bela moça. Trabalhadeira,
meiga, belos olhos, e que... !
E que...!
— Sim, Margarida, meu André
agora está bem vestido...
Já nem sai.
Trabalha o tempo todo...
— O André trabalhando?!
E o que faz?
— Conserta camas.
— Camas?
Sim, já quebraram três.
Estágios
Noiva-se em verso,
casa-se em prosa
e vive-se no conto.
E a vida canta
ora em chinês,
ora pois em risolês.
O amor? Aprende a pregar pregos —
pregos enferrujados.
Aprende orgasmos
de deixar boquiabertos
os maiores faquires.
Três chips implantados:
na cabeça,
no tronco,
na ilharga
( masculinos-femininos,
femininos-masculinos ) —
e se inaugura
o amor ( discreto-decente ) digital.
Genitálias? Já eram.
Simples toques dígito-mentais
de pensamentos afinados ( e a fim... ) —
e faz-se o amor.
Amor dos bons, porque sem taxas
nem periculosidades...
Amor dígito-mental:
programado, taimerizado
e realizado
por reciprocidade
simpático-volitiva.
Amor anímico-celular,
ideal-fractal-virtual,
de orgasmos internáuticos
e delícias tele-acopláveis —
amor dígito-psiconáutico
ou neuropneumatelepático.
Amor ( se desejável )
de concepção psicogenética,
gestável e parível do mental
para uma sacola-útero,
que pode ser deixada em casa
ou adaptada
ao porta-malas do carro.
Adeus motéis, puteiros,
nostálgicos bordéis.
O amor dígito-mental
vos decreta a falência.
Gene Romântico
Gosto frio de menta
lá em lembrar você.
Sinos interiores,
guizos de prata —
em vê-la vindo
entre sete e sete e meia.
Um cheiro de lavanda
na alegria de abraçá-la.
Árvores, flores, fonte luminosa
e muita coisa bonita
percutindo sensações
entre suores
e calafrios.
Uma braçada de flores
de hastes longas e suaves,
com um laço de fita ao meio —
isto, o que guardo de você.
O bom, o belo, o melhor
da minha juventude.
Gostoso Engano
Fique tranqüila, Zefa,
que o amor
não corre nenhum risco
de melhorar —
vai de amor pra desamor.
E nós, os seus cantores
quase sem voz.
Fique tranqüila, Zefa,
pois que aquela melhora,
que em geral precede à morte,
não se dará.
O amor vai prosseguir —
cheio de auto-sabotagens,
terceirizadas bandidagens
e gostosos enganos.
Mas nem por isso, Zefa, nem por isso
o sonho dos opostos
deixará de um dia ser
esse desassossego
de nos buscarmos uns nos outros
pensando que nossa falta
( de ser )
o nosso pobre amor
pode suprir.
Guarda O Que Tens
Não permitas que o mundo te soterre
essa alegria simples,
que, no fundo, é coragem de viver.
Nem permitas que o mundo ponha absinto
na água que tu bebes.
Nada usurpe, em teu peito,
o espaço da tua paz.
Nada, ninguém consiga vulnerar
a tua fé,
tisnar tua esperança,
esfriar teu amor.
Navegar e viver
são dádivas simultâneas...
Esquece o tédio existencialista dos antigos...
e aprende a navegar, — vivendo,
e a viver, — navegando...
O nexo de navegar é a vida,
e o sentido da vida
é mais que nave,
é mais que vento,
é mais que vela...
A finalidade da existência é a alegria.
Lembrança
Quando vinham temporais,
minha avó, com muito medo,
dava-me muitas palhas bentas,
pegava uma lamparina
e se punha a rezar
enquanto as palhas queimavam.
E o tempo descarregava
a sua formidável fúria
em relâmpagos, trovões,
raios, coriscos, estalos,
chuva grossa, grosso vento
e carrancas de céu negro.
Em seguida, a outra face:
a calma se recompunha
com um sorriso arrependido.
Minha avó, então, me olhava,
pálida ainda, e me dizia:
“Tá vendo, caro? É só rezar...”
Lillian Witte Fibe
Seu jeito oblíquo de dizer
nos cai tão direitinho.
Sua simplicidade matreira
é o açúcar
para os limões da notícia.
Seu sorriso de menina
exilada da infância
gera empatia existencial
e o cheiro
daquele pão feito em casa.
Seus comentários
fingem dificuldades
para saber explicar —
e pela simpatia
decodifica.
Com você, Witte Fibe,
a gente aprende gostosamente
que as coisas “são assim”
de um “outro jeito”...
E aprendemos a tirar
mel das pedras
e doçuras do absinto:
as notícias azedas ( em seu narrá-las )
têm o perfume humano
de que poderiam ser outras.
Com você, Witte Fibe, as meias-noites
têm mais conchego.
Seu sorriso e seu boa-noite
foram tombados
pelo nosso coração.
Longa
Teresa era uma flor
de haste longa —
sempre adorável
no vaso dos lençóis.
Quando irrigada,
seu rosto era caiado
de céu —
uma expressão de lonjuras
( entre rosa e jasmim )
de mistura
com o gesto-sorriso
de seres hermafroditas.
Amar Teresa
era um ritual
místico-carnal —
era participar
do gozo do Universo.
Claro que Teresa não sabia
de meus rituais mentais,
nem eu podia dizer-lhe
que era divino tê-la —
senão ela me explorava
ainda mais.
Mas Isso É Bom...
muitos haverão de ter rido
barbaridades de nós.
Teremos feito rir
muita gente.
Mas isso é bom —
assim se desviaram
( se esqueceram por momentos )
de seus ridículos e loucuras.
Fomos bonzinhos sem querer.
Um jeito de palmeira ao vento.
Olhar de samurai
( que procura a bolsinha
em que a filha do rei
guardava a virgindade ) —
plurifocal, onividente.
Ar de quem adorou...
Sorriso de quem sabe...
Andar de pés descalços
pisando areia quente.
Semblante
pop-renascentista.
Vê-não-vendo.
Toca sem pegar.
Olha ternura a mil alvos.
Se detém em movimento.
Se desloca ficando.
Se encanta desencantada.
Pergunta sem ouvir a resposta.
Gosta se desgostando.
Faz questão de — pelo menos —
dizer “oi” a cada espelho.
Compara-se a todo busto,
quadris e pernas
que obrigam a adivinhar...
E vai e vem e passa,
passa rastreando —
levitandando,
passeia por entre panos
metais espelhos
couros jóias coisas-luzes
móbiles iguarias...
........................................................................
Preenche com o corpo o cheque —
e se vai: desliza... orvalho-evola
Morrimentos
Os velhos morrem de tédio.
Os jovens, — de “êxtase turbinado”.
Os ricos morrem de ter muito.
Os miseráveis de ter de menos.
Já os pobres morrem de raiva.
Os chiques morrem de amor.
Os sensíveis de solidão.
Os que pensam que perderam
podem morrer de depressão.
Os grandes morrem de seus “megas”.
Os pequenos, — de não “dar pé”...
Uns morrem pela mentira,
já outros pela fé.
Uns morrem de seriedade,
já outros morrem de rir.
Os intelectuais, — de enfado.
Os tolos, — de euforia.
Os acanhados, — de falta.
Os liberados de excesso.
O bravo morre pela glória
( e Glória por garotões ).
Os espertos, — de esperteza.
Os bobos, — de bobeira.
Os loucos morrem por seus sonhos.
Os moderados de prudência.
Os “normais” morrem de medo
e de pagar seus impostos.
De nossa parte, morremos
( com um calmo riso prévio )
por tudo e de tudo um pouco.
Quanto a morrer de verdade —
a vida sempre oferece
uma total segurança.
O que sei nem sei.
O que não sei me ajuda mais,
porque assim sei que não saber
é um pré-saber com mais sabença.
Quem sabe há mais sabor
nesse saber que nem sabe,
visto como não-saber
de uma maior sabedoria?
O não-saber da rosa
não seria o seu charme —
sua serenidade
e glória venturosa?
Sonado pelo Verbo a recriar-me,
trespassam-me universos e galáxias,
glórias, sonhos de Deus — Sopro-venturas
desde antes queda a corpo e meu retorno.
Verbalizado pelo sonho-nostos,
desdobro-me em caminho-caminhante
por róridas veredas interiores
entre os desvãos de mim em tempos-ser.
Oferto a rosa à cruz, e me revejo
em personas em mim que são eu hoje
na boléia de um sonho de resgate.
De fato: todos quantos fui dependem
( para terem as vidas redimidas )
deste ( que ora sou eu ) render-se a Cristo.
Nos Dezembros Molhados...
nas latinhas cantando nas goteiras,
os olhos no sem forro das cumeeiras,
aos bocejos, o sono ia chegando.
Minha avó, as histórias recontando,
sentada ao lado, bem na cabeceira,
ia contando contos de sereias,
até meus olhos fossem se fechando...
Navios, velas, bochechudas velas,
fúrias do mar, rochedos com fantasmas...
iam-me desfilando em grandes telas...
Quase transpondo o sono, ouvia o tom pidonho
de suas orações em italiano ( pasmas )
que ela trouxera lá detrás do sonho.
O Mais...
Calma.
Não perca o estilo,
a classe,
o charme
( inclusive o de não tê-los ).
Calma.
Conserve o riso,
o humor
e o tudo-nada da ironia.
Uma pitada
de amor
no desamor
faz o bocado
deglutível.
Num gesto-quem
cheirando a zen —
colha do dia
o que restou da rosa
que sua mão plantou
entre o vento
e a audácia de sonhar.
Não perca a pose —
ouse.
O mais a gente funga
para manter a vida
ca-ta-pul-tan-do...
— Pois é, amor.
Por que será que antes
é sempre a melhor parte?
— Entendo não, amorzão.
Mas quando a gente não sabe
tudo parece
bem mais cheio de graça.
A humana felicidade
não terá suas raízes
fincadas em não saber?
— Mas como agir,
e que fazer
para que não-saber
se torne uma atitude-hábito —
um durar a esquecer-se
no sorriso da rosa?
— Fácil, meu Amadis.
A gente finge não saber
e diz a si e aos outros
( até acreditar )
que é feliz.
— Credo, amor,
que desencanto!
— Nem tanto,
se comparado ao pranto
que vai ser transformado em riso
a dar laços vermelhos
nos sapatos do arlequim.
Para Duda
( em todas as idades )
Não se assente debaixo da jaqueira,
que estrelas podem cair sobre você,
e duendes com chapéus cor de infinito
hão de querer levar a pedraria
e dela fazer pingentes para as fadas.
Não se assente debaixo da jaqueira,
que pétalas de flor hermafrodita
podem cair sobre você. Além do mais,
se passar sua mão na casca da jaqueira,
você acorda o sonho verde da floresta...
Não se assente debaixo da jaqueira,
que lhe caem na cabeça penas de sanhaço,
enquanto um vento azul passa assoviando
as canções que aprendeu com aqueles anões
que batem para a chuva a corda do arco-íris.
Não se assente debaixo da jaqueira,
a não ser quando os pássaros de sol
já tiverem comido as suas frutas
e brisas vindas lá de trás dos morros
ensinem para os homens o sonho dos girassóis.
Passas, Ou Passas?
Aceitas, amada, umas passas,
ou passas?
Se passas, então vem cá, —
me dá um beijo
com gosto de arrebol.
Um abraço
com cheiro de jasmim.
Um sorriso
sujo de manga.
Um olhar com um jeito
bem sem-vergonha.
O mais, amada,
a gente faz
entre lembranças passas...
Ou passas?
Pausa
Você luta,
você se morde,
você uiva e chora.
Você perde-ganha-conquista.
E não demora
você descobre
que muito e muito daquilo
por que você se ralou
não valia nem um cílio do seu sonho.
Chato né? Mas é assim.
O aprendizado custa caro,
e a vida não deixa por menos.
Pois é.
Só há o para frente, e um sonho
vai puxando outro sonho
com a beleza de sempre —
estar entre o tempo e a rosa.
Pela Fresta Do Muro
Em geral os covardes
têm voz e timbre sonoros,
dicção eufórica
e arrojos de animal no cio.
Os covardes
vivem sempre empurrando
os outros a fazerem
aquilo a que jamais se atreveriam.
Citando frases lustrosas
de poetas e filósofos enfermos,
incentivam o mergulho,
o pulo,
a escalada,
a travessia,
as aventuras desgrenhadas,
o risco,
o jogo,
as paixões —
e tudo mais o que jamais fariam.
Incentivam,
e ficam vendo
( por uma fresta do muro )
se o leão deixa que lhe trancem a juba...
“Pela Linha”
Meu pai era maquinista.
Ficava “pela linha”, “pela linha”...
“pela linha”...
Era lindo-misteriosa a expressão
“pela linha” —
porque eu não sabia o que era...
De vez em quando vinha:
uma cesta enorme com
doces
bananas
chupetas açucaradas
e um cheiro bom
de graxa
nas mãos...
Suores nas mangas
do paletó marrom.
Nossa mãe disfarçava
sua felicidade,
e nos mandava ficar
esperando na esquina —
de onde corríamos encontrá-lo:
o coração pulava
de orgulho —
era o nosso pai,
forte como as locomotivas em que voava
e fazia chorar no apito.
Seu boné azul-marinho,
seu Ômega de bolso,
seu jeito mitológico.
Ele nos abraçava. Nossa mãe
— para agradar —
lhe mostrava alguma novidade
que ela havia feito na máquina
de costura,
ou mesmo algum dinheiro
que ganhara costurando.
Meu pai sentava,
eu lhe tirava as botinas,
calçava-lhe os chinelos,
e um de nós lhe lavava
e lhe enxugava os pés.
Ele nos contava coisas
de aventuras:
chuvas,
desabamentos de linhas,
descarrilamentos,
problemas com a máquina...
A gente ouvia apalpando
e olhava segurando
seu contar gesticulado,
entrecortado
de cachimbadas, e risadas.
Com o meu pai
o nosso coração ficava forte —
uma alegria bem doce,
com chocolate e rapadura.
Um gosto na boca
de coisas longe agora perto —
ouvidas e sentidas entre as mãos:
frias e quentes.
Ásperas
ou feito piavas ensaboadas.
E tudo cheirando a café fresco,
a pão e queijo
feitos por minha mãe.
E nossa casa era linda
como a rosa que não sabe
do fim da tarde.
A fé a suportava,
a esperança a fortificava,
a família dava-lhe um porto.
E a vida era feliz,
feliz de não saber.
Pequi
Não chores não, senta aqui,
que te faço uma canção
com gosto de sapoti,
doçuras de pão assando
e festas de bem-te-vi.
Não chores não, senta aqui,
que te reconto a velha história
daquela pobre Glória
que louco-amava Peri
que era doido por Vitória.
Não chores não, senta aqui,
que o amor não vale o que come.
Fica sabendo, moleca,
que o amor é como pequi:
quem lambe não mata a fome,
quem morde fundo se estrepa.
Proposta Consensual
O amor? Babau.
Esgueirou-se,
e sumiu. Ninguém viu.
Dias depois passou um fax:
A minha parte quero —
no sorriso ou no pau.
Quero a cobertura da praia,
a chácara de Búzios,
os oito motéis da serra,
2/3 dos nossos móveis,
2/4 da conta na Suíça,
metade dos latifúndios,
50% das obras de arte
( que lavaram os pós por vinte anos ),
os quarenta quilos de dentes de ouro
( dos garimpeiros que você mandou matar ),
as calcinhas e sutiãs
em fios de ouro e diamantes
com que presenteavas no Natal
as jovens esposas dos seus amigos,
metade daquele Estado que você vendeu
àqueles sardentos da Europa e América,
todas as propinas do... e do... e...
todos os superfaturados,
as mutretas do hospitais,
Previdência e funerárias,
laudos forjados,
impostos e taxas para viver —
e o dinheiro e a posse dessas 42 empresas
por cujas águas você passa
a vida a limpo.
Ou me dá estas tutaméias
ou faço um requerimento
pedindo que você prenda a você mesmo —
antes que me mande uns trezentos
ou talvez mais pistoleiros
( inclusive com moto-serras )
para que me transforme
na mais leve e transparente das rendas
que só nosso Nordeste
sabe fazer tão bem.
Quase
Não era aquilo
e não é isto, —
sempre aquele descompasso
entre sonhar e ser.
Aquela insatisfação
após satisfazer-se.
Aquele pós-sabor de fruste
no término da fruta —
um gosto que a alma sabe
mas que não chega ao paladar.
Algo que falta
e dói por nos faltar,
mas que se não doesse
nem mais seria a vida
no seu querer-se mais —
no seu nos impelir
para a nossa Casa em nós.
Que Raiva!
Como descansar em paz
enquanto não me torno despalavra —
nenhuma necessidade
de recontar-me a vida,
organizar-me no Verbo?
Enquanto não me morrer a precisão
de tanger o passado para o futuro
e transmutá-lo sobre a haste
das minhas frustrações —
terei de ler-escrever:
estar entre o silêncio, a solidão
e uma vice-ventura
com um sorriso sem-graça,
teimosamente irrevogável.
Um quase ter conseguido.
Quase ter sido.
Sim: só não fui
porque então veio o Rui
e apostou no mesmo cavalo
em que apostara a minha Vera.
Ambos ganharam, e saíram
montados na nota.
.............................................................
Que raiva!
Só um comprazimento,
uma compensação —
um dia
me calo.
...................................................................
Mas antes disso
compro um cavalo,
e fico de olho no horizonte —
a ver quando é que os bárbaros
vêm botar fogo
no palácio de Hermengarda....
Sem Querer
Chega um momento
que o nosso íntimo vomita
o excesso de realidade —
a lógica nos machuca
por nada resolver.
A dialética vira auto-engano.
O saber, — riso.
O riso, — toda a posse.
E o não-saber vai se tornando
a beleza
de aprender sem querer.
Ah, meus amigos,
respiremos aliviados —
sejamos irrazoáveis!
Um dia — sem querer —
seremos todos felizes.
Sentindo Que É Possível
A vida, um pau de sebo?
Quem sabe seja mesmo.
Mas não permita que outro o suba
e lhe diga que o prêmio é falso...
Suba lá você mesmo —
e toque com suas mãos
e veja com seus olhos.
Quem sabe a experiência
de você ter ido lá
não fará com que o falso
sorria transfigurado
num brilho genuíno?
Para subir lá —
apenas queira fazê-lo
sentindo que é possível.
Uivos De Agosto
Frios “is” sibilam
entre fios,
mugidos pelo vento.
Agosto mia
como famintos felinos
por finos, tísicos arbustos.
Fantasmas de poeira
correm ao longo dos caminhos.
Agosto uiva, ulula, assovia...
deflora uma a uma as corolas
assustadas dos ipês.
Agosto geme apaixonado —
exflora, esfolha, esfola,
espalha o sêmen da estação
pelo corpo da terra em cio.
Agosto faz amor gostosamente
com tudo —
mas uiva mesmo, urra de prazer
é com as árvores-mocinhas
cujo corpo folhudo adentra
com fúrias, fomes de fauno.
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