Curtos, Nem Sempre Grossos

                                    Laerte Antonio

textos 2

Sem Hesitar

 

Li o seu livro.

Idéias plastificadas,

concepções pasteurizadas —

uma delícia de pudim

azedo.

Carne com varejeiras

sobre a cama desfeita

onde o sadomasoquismo

ejacula porra fria.

Seu livro,

sem nenhuma metáfora,

é uma loucura.

Pura água suja

a escorrer de xiranhas

que se lavam semipútridas

( na mesma água de bacia )

para atender a fila de impacientes.

Mas há uma coisa para remediá-lo:

não pensar em publicá-lo.

Ou melhor: jogá-lo fora.

LA 11/001

 

 

 

 

Cena

 

O tempo pretejou de repente.

O casario à beira rio

ficou mudo, espiando estatelado

atrás do medo...

Raios terríveis — desavergonhados,

e enormes!—

entravam os pígios das pedras

dentro d’água.

Foi então que a pedraria toda,

mesmo as de gesto mais casto —

se pegaram de amor,

degustando a afrodisia

dos estalidos cor de ouro:

faíscas penetrando as águas.

LA 11/001

 

 

 

 

E Viva A Vida!

 

Hafiz, Hafiz, desconfie sempre

do sultão,

do mar,

do amor

e de si própria —

principalmente, Hafiz, se eles

estiverem sorrindo pra você,

e você encantada de egoíce.

 

Sim: desconfie sempre, Hafiz.

Do sultão —

porque sua palavra

decide sobre a vida e a morte.

Do mar —

porque um dia desejará

lhe mostrar os seus fundos tesouros...

Do amor —

porque está sempre a um passo

de não se sabe...

De você —

porque há dias em que está

bem pior companhia pra si mesma

do que o perigo que mora

atrás do sorriso daqueles três.

 

E viva a vida, Hafiz!

que é uma só

para alguém chamada Hafiz —

que ama o mundo e as flores

e o haver um céu e estrelas

com quem conversa

( sem saber se sabem de você... )

lá nas águas do seu coração.

LA 11/001

 

 

 

 

Sistema Echelon

 

Diabos, Rosinha, diabos! Agora a gente

nem vai mais poder fazer amor

debaixo do pé de amora,

paparicado de brisas,

salpicado das pombas do luar...

 

Diabos, Rosinha! Os caras lá do Norte

agora espiam tudo —

por dentro e por fora,

verso e reverso,

direito e avesso —

em prosema e coesia,

em números e sonhos.

 

Diabos, Rosinha! Se pegam a gente

trabalhando,

vão mandar logo um míssil —

pensando que estamos a cavar um túnel

que irá dar perto de Bóston.

LA 11/001

 

 

 

 

Companheiras De Viagem

 

Lá para os lados das certezas

ficou a infância

e a mocidade.

 

Hoje sabemos

como era bom ter certezas!

E cá em voz bem baixa —

foram elas que nos construíram

esse respaldo que hoje

nos resguarda do mundo...

Tudo o que nos serviu de corrimão

pelas pinguelas roliças

de nosso querer-ousar —

abismos que não víamos,

perigos que só hoje arrepiam...

 

Belas, piedosas certezas!

Só hoje as sabemos assim —

deveras belas e piedosas.

Só hoje as vemos bem ao lado

de nossas pobres experiências

e nossas muitas incertezas.

LA 11/001

 

 

 

 

Reconsideração

 

Guerras religiosas?

Não as há.

Toda guerra é política.

Interesse, inveja, ambição...

Mágoas, ressentimentos, diferenças...

Doenças de raízes.

 

Guerras de egos,

não de espíritos.

Os que fazem tais guerras

têm um deus bem menor

que o de seu ateísmo —

um ateísmo

que nem levam a sério,

por não saberem que existe.

 

Guerras religiosas —

máscaras de covardes

que teatralizam ao povo

ainda usando calças curtas.

 

Máscaras teológicas

a camuflar o rosto da política

com os santos de uns

e o martelo de outros.

 

Guerreai, guerreai,

almas escarlates!

Quem sabe da vossa guerra

não nasce a paz

pra tomardes um fôlego,

e logo após

vos devorardes mais gostosamente?

Donos dos céus

e dos infernos,

cuidado: não vos assenteis

( no furor da batalha )

sobre o vosso priapo.

Colocai-o de lado,

preservai-o:

há mil e mil xoxolas que vos esperam —

xiranhas místicas,

reais-virtuais,

de pele e surreais,

mas todas ávidas de se fartarem.

Aleluia, bravos homens!

A História saberá contar

vossas loucuras.

Os filhos de vossos escravos

se alforriarão com o germe

de uma nova consciência.

.

LA 11/001

 

 

 

 

Cônjuge-Lagartixa

 

Não raro a bela esposa se ausentava,

e por lá se demorava

mais que o brim do consorte resistia —

de tal modo que o pobre

virava lagartixa...

 

E varria, e lustrava, e espanava...

e dava brilho de espelhar-lhe

o rosto a pingar suor...

E encerava ( outra vez! ) os móveis,

e lavava ( de novo! ) a calçada,

e subia ( muitas vezes! ) no telhado e o varria...

Fazia longas caminhadas

( duas, três vezes por dia ),

tomava banhos frios,

não se enxugava....

Abria a porta do freezer

e o abraçava por longo tempo....

Fazia panquecas com salitre...

Tecia toalhinhas de crochê...

Jogava buraco sozinho...

Ia ver, cedo, à tarde e à noite,

se Deus estava na esquina,

encarnado nalguma profetisa...

 

Seu amigo diácono

( bom amigo de infância )

jamais deixava de lhe telefonar

( às 20h30 em ponto,

e toda a santa noite ):

Olhe, André, agüente aí,

meu irmão,

pois — sem a sua Clara aqui —

como é que eu poderia trabalhar?

A seara é tão imensa e carente

( e aqui nesse sertão!... ) —

sem Clarinha,

como é que eu iria me arrumar?

.....................................................................

Aliás, sorria, homem, aleluia!

Seja a vontade Dele, e não a nossa!

..........................................................................................

E numa noite

( e pela terceira vez ):

O Senhor o tem escolhido, André, —

Clara acaba de adotar outro bebezão...

Um varão! E se parece com você...

Sua tia vai adorar. Ela já não cria dois?

Pois então, quem cria dois...

Vai saber dos desígnios de Deus!

Amém, homem! Aleluia!

Sim: diga amém comigo, meu irmão!

Abaixe a sua cerviz,

para que Ele o exalte.

Talvez no fim do ano,

vamos levá-lo

( inclusive eu também irei )

para a sua piedosa tia.

Vá preparando a escolhida.

A indigitada pelo Altíssimo.

 

André gostava de Clara,

e urrava a sua falta.

Morava com sua mãe,

mulher prática, chofer de taxi,

e que mordia a língua

e espetava com os olhos

a situação do filho.

Seu silêncio petrificado

rugia como terremoto...

Sofria por ver o filho

tomando vodca com pólvora...

e trepando em macauveiras...

 

Sofria até o ponto de chamá-lo,

e com jeito lembrar-lhe

( mais uma vez ):

Olha, André, segundo aquele poeta,

que nunca teve nada de babaca,

todos nós somos amigos daquele rei...

Lembras?

Lembro, mãe.

    Então cria vergonha, homem,

e te afunda entre as capituvas

de outros brejos!

LA 11/001

 

 

 

 

Pontos A Favor

 

O que a fome e sede de justiça

têm hoje a seu favor lá em humano

é, sem dúvida, a velocidade

com que as coisas vão mudando —

tudo num evoluindo

do andar a pé para o da carruagem;

do automóvel para o avião;

daí para as naves espaciais,

e dessas para o clique eletrônico.

O dilatar da consciência

vai fazendo o ambiente insuportável...

E que assim seja!

Insuportável seja

a cada dia mais!

LA 11/001

 

 

 

 

                   Menino Afegão

         [Folha De S. Paulo, pág. A 17,

          domingo, 02/12/2001]

 

Quatro ou cinco anos. Belo e forte.

Cheio daquela coragem-confiança

da infância —

ei-lo correndo,

rodando o seu pneu de bicicleta

enrolado com trapos...

 

Brinca tranqüilo,

corre descalço-maltrapilho,

e altivo,

concentrado-confiante em seu brincar —

o menino afegão

corre tranqüilo no melhor dos mundos....

...........................................................................................

 

Corre, roda o teu pneu,

menino afegão!

Vendo-te, nos lembramos

que nós também já tivemos

uma coragem limpa,

bonita e forte como a tua!

Que também já tivemos

uma alma no céu

com os pés sobre o chão.

 

Corre, roda o teu pneu,

menino afegão!

Corre no entre fronteiras hostis.

Corre por sobre a terra esbranquiçada e seca,

sobre essa  terra pedrenta —

a receber chuvas de mísseis —

terra cheia de gemidos e feridas.

Corre, menino,

corre e roda o teu pneu

entre essas pedras que já aprenderam a falar...

em seu silêncio de sangue.

Sobre essa terra cujo seio

os homens rechearam com bombas —

o que eles tinham em alma-coração.

 

Corre, menino, corre e roda o teu pneu

como se rodá-lo fosse

o que há de melhor e mais belo neste mundo...

 

Corre, menino, e jamais pares, jamais cresças,

jamais pares, jamais cresças, jamais pares de rodar esse pneu...

para que possas mostrar aos homens

que rodar esse pneu

tem muito mais sentido

do que despedaçar corpos de pessoas.

Jamais pares, jamais cresças, jamais pares, jamais...

Ê, menino afegão! Menino-irmão-filho-neto-

cidadão-gente-pessoa a correr bem lá dentro do sonho,

lá nas entranhas do nexo de viver.

 

Esse divino-humano em ti

é nós mesmos, menino! Nós mesmos num tempo

em que ainda nem sabíamos falar

de fé,

de amor,

de esperança —

porque éramos essas três virtudes

resumidas na alegria de viver —

uma alegria

que jamais precisava de razões.

LA 12/001

 

 

 

 

 

Buscas

 

Que buscas, Diabo moço?

         — Busco o sucesso.

E tu, Diabo velho?

         — Busco o êxito.

E tu, Diabo D. Juan?

         — Busco xotas

que saibam ordenhar.

E tu, Diabo homossexual?

         — Busco priapos de duas cabeças.

Quanto a ti, jovem Diabo?

         — Busco a delícia do proibido.

              E tu, Diabo menino?

         — Quero sorvete      

com muitos pistaches,

grânulos de chocolate

e rum

daquela “Nau Sem Rumo”...

E tu, Diabo broxa,

Diabo ancião?

         — Quero muito, muito mais:

              Vivo orando o dia todo

               pra que os anjos desbundem

na vigilância do céu...

e eu — penetrando nele —

possa dizer aos beatos

que Deus entrou numa mala

e se despachou pra Si mesmo.

LA 12/001

 

 

 

 

Tempora Mala

 

Os tempos

são maus

lá dentro

de nós.

Lá fora,

temos a guerra

que nos distrai.

Lá dentro,

a esperança

que trai.

Sim: bem humana,

engana

( em seu não-sim )

o amor, a fé

até

o fim.

LA 12/001

 

 

 

 

Patos Sem Pena

 

Gostava de se sentir

deprimido e triste.

Adorava aquele tédio

amarelo-encardido —

Tédio de “Cartas a Milena”...

Aquele tédio

a escorrer pelo ver-sentir-pensar:

viscosa melancolia

somada a uma dolente,

musical nostalgia —

como a dos restos de jardins

dos velhos casarões:

avencas-musgos-limos

entre as fendas dos muros

com dálias doloridas

espiando desenganadas

o nada ter restado...

e a morder os lábios rubro-carnudos —

mordiscá-los

num gesto de quem vê fantasmas

em seu nevoento recordar...

Degustava esse bonzo sagrado

em alma-coração,

enquanto a lua, um cachorro lulu,

vagava em ganidos,

ganidos frios de inverno.

Gostava tanto de sentir-se deprimido e triste,

que sua esposa

lhe lia todos as noites

jornais especializados

em frankensteinizar a cabeça

do patos sem pena

de seus viciados leitores.

LA 12/001

 

 

 

 

Hi-Tec

 

A gente se diverte

vendo as guerras —

a de Bin-Bush

e a de Sharon-Arafat.

Delícia! Sentados,

comendo pipoca

com cafezinho quente —

a gente vê chover mísseis

nas montanhas, nas ruas, nas cabeças

dos cidadãos

que porventura ( quem mandou? )

ali estejam.

 

De vez em quando

rola um morto de turbante

ou de boné

lá de cima da montanha —

e a gente ( com todo o respeito! ) acha

magnífico: quanto maior a altura,

maior a beleza do tombo.

E os há até estéticos,

sim: tombos de uma simetria

em sinfônicas geometrias

catatodinâmicas: magnificentes.

Graças a Deus ( bem longe e em nossas casas )

temos cenas belíssimas

de morte de verdade:

na bandeja midiática,

o ser humano, —

a milhares e milhares de quilômetros, —

estrebuchando em nossa tela:

com esgares, gemidos, estertores

e o azeite vermelho escorrendo...

A realidade em carne viva.

 

O matar,

isto é: telematar hi-tec.

Bacana pacas!

.....................................................

Ou um horror-terror

que nos é impingido?

LA 12/001

 

 

 

 

Canção E Pão

 

Bardos e bufos,

menestréis e patetas,

trovadores de repentes —

dizei aos altos poetas

que é na canção,

com os pés bem no chão,

que — por decantação —

o social mais se mostra:

sim: de tais comeres e excretos

é que se deduz o quê

e quem come-descome

dentro da sede e da fome

de alimento e de justiça.

A canção tem sido o pão

feito com o vômito

do social.

 

Mas que é que o povo tem com isso,

se a parte que ele tem nisso

é só de comer tal pão

enquanto o esfolam de trabalhar

e o assassinam

quando, não tendo trabalho,

se aventura a roubar um pão?

LA 09/001

 

 

 

 

Tsuname

 

Se vier a tal tsuname,

minha Zefa,

então me chame

um pouco antes

de seu instante espumante —

para comer salame

com pão crocante

nesse momento a tremer...

E, é claro, pra que a ame

ao lado dessa tsuname,

pouco antes de morrer —

num desbragado,

escatológico foder.

LA 09/001

 

 

 

 

Solidão-Solitude

 

A solidão, meu velho,

fora a maior punição

de um imortal

( faz de conta que os há )...

 

Tenhamos dó do que não morre

( suponhamos que existem ).

Sim: o principal gozo do homem

é a sua gozosa

mortalidade.

 

Aliás, a solidão,

em meio à mortalidade,

é doce,

gostosamente suportável —

tão assim,

que se torna solitude:

um status

de quem se sente só,

saborosamente a lidar

com a alma tansversal do sonho.

LA 09/001

 

 

 

 

Por Aqui

 

Sei que por aqui não passará

nenhum trem,

nenhum ônibus,

nem condução

ou OVNI que me possa

levar daqui —

porque aqui é um lugar em mim:

um topos-universo ( para mim )

e algo não-existente ( para os outros ).

 

Por aqui não passará

senão esse silêncio-solitude

que me trespassa o íntimo do ser

e essencializa a vida que respiro —

já que pelo sentir-pensá-la

metabolizo em alma outras gamas

de mares, ares que se abrem

para viagens por mim mesmo,

em nenhuma distância

entre o ser e Aba-Pai.

LA 09/001

 

 

 

 

Pão E Bomba

 

Pã-pã-pã-pão.

Bom-bom-bom-bomba —

pão e bomba,

bomba e pão.

Pã-pã-pã-pã-pã-pã...

Bom-bom-bom-bom-bom-bom...

Pão-bomba,

bomba-pão.

A cada bom-m-m-m

um pão.

A cada pão-ão-ão-ão...

uma bomba.

Bu-Bu-Bu-Bush!

Corram-subam-desçam-nadem!

Da-W Bush,

Bi-Bin Laden.

Pão e bomba,

bomba e pão.

Bi-Bin,

Bu-Bush —

ão-om-ão-om-ão-om:

Pão-bomba,

bomba-pão.

LA 12/001

 

 

 

 

                 Lucro-Show

      ( Um Pedaço De Página )

 

Menino, lembro bem: não eram poucos

aqueles que contraíam comunismo.

Uns por acharem nele um modo

de prolongar a sua adolescência...

( adolescência não raro encanecida ),

outros como se fora um jeito-status de brincar com fogo:

“Olhem, gente, não temos medo de queimar-nos,

nem por nós, nem por todo o nosso povo —

sacrificarmo-nos ( se for preciso! )

‘pela verdade’, pelos nossos filhos,

até pelos eunucos e maricas,

meios-homens que nos rodeiam...”

 

E havia, é claro, os que vestiam tal ideologia

por legítima oposição: como entrada

para um dos portais da necessária utopia...

Mas todos — pró e contra — sabiam muito bem

tirar proveito desse “ismo” demoníaco-divino.

E assim faziam carreira social ( bilateral ):

a) Os que — com ares de vanguardeiros

do proibido-incompreendido — agiam como

dentro de um sonho a bicar a própria casca...

b) Os que se guindavam manejando os cordéis

de escudeiros do Quixote...

ou de exorcistas domonológicos.

Tanto de um lado como de outro, o lucro era certo:

status, cadeia e fama.

Claro que também havia o lucro excessivo:

tortura e morte.

Mas lucro. Lucro-show de 70 anos —

no fim do que o comunismo

morreu de fome e mentira.

Mas bela, bela mentira:

se o homem perde

a humanidade ganha.

 

Velhos demônios terríveis

viraram frangos-d’água —

depenados e degolados

pelos anjos aloirados

da Tocaia Econômica.

.....................................................................................................

O proletariado

acordou tirando dos olhos

a remela de seus sonhos.

E viu:

viu que só tinha a sua prole!

 

O teatro acabara.

Quando tiraram a máscara,

vimos que só o script

era um pouco diferente...

Elenco e povo-platéia —

eram os mesmos

de todos os lugares.

No chão:

a maroma,

os enormes sapatos,

a bolota nasal,

a camisa de bolinhas

enrolada na maromba...

......................................................................

 

Hoje, sobrou o riso,

não o de Marx ( que não ria ) —

mas o das coisas prometidas.

LA 12/001

 

 

 

 

Parlenda

 

    Cadê minha mulher daqui?

    O vizinho a levou.

    Cadê o vizinho?

    Foi fazer cafuné.

    Cadê o cafuné?

    Virou uma só argila.

    Cadê a argila?

    Está moldando o amor.

    Cadê o amor?

    Foi confessar-se ao padre.

    Cadê o padre?

    Viajou com ele.

    Com o amor?

    Não, com a mulher

que foi levada pelo bispo,

que a transformou

em sua camareira.

    Cadê o bispo?

    De dia reza e visita,

de noite faz amor devagarinho,

até a luz de fora

projetar na parede

o seu bundão de sombra.

LA 12/001

 

 

 

 

Pule Este!

 

Quem não aprendeu a rir de si mesmo,

tem uma idéia trágica da vida —

há de pensar de si

uma coisa que nunca foi...

Mas por pensar já tê-la sido —

há, sim, de jurar já portá-la em si.

E glória ao Pai! E hosana a seus fiéis!

O temporal passou sem xingar nem ofender.

O padre disse na missa de domingo

( me informou a vizinha )

que as coisas são assim:

quando precisamos delas,

não raro, não estão ali.

Mas ainda bem que Deus não tira férias...

principalmente quando Deus está menstruado...

Deus menstruado!?...

Sim, machão panaca, —

Deus menstrua a cada Yuga

( por favor, abra os Vedas ),

que é quando Ele está existindo,

pois quando não está

Deus sempre nos socorre em Sua sombra...

e nos convida para Seu teatro ( lá em poscênio ).

E quando a vida nos faz sentir seguros,

então, sim: batemos as punhetas mais gloriosas,

e dizemos à nossa vizinha

que não há nenhum perigo —

pois nenhum M virá

estrangular nosso prazer —

e que fique bem tranqüila:

receba no seu ventre

nosso ciber-amor

transformado no riso

que o diabo pendurou na lapela

de seu esfíncter anal.

 

Muito siso,

dobrado riso —

é o que me diz Glorinha.

LA 12/001

 

 

 

 

 Agora

 

Quando viver se multiplica,

o resultado são cabelos brancos —

o homem vai se tornando dobrável...

e sua morte quase palpável.

Resta-lhe o agora —

um agora-anomia,

se comparado ao que ele foi.

Resta-lhe o agora —

um agora bambo,

se visto em seu tempo de vigor.

Resta-lhe o agora —

uma coisa-arremedo,

talvez com medo

de se ver a cada dia

só com o seu agora.

LA 12/001

 

 

 

 

Um puto De Um Soneto

 

 

Quero fazer um puto de um soneto

que me faça capaz de me esquecer

enquanto o escrevo, e saiba obsoleto,

não escrevê-lo, mas isso saber.

Um puto de um soneto tão completo

de não-ventura, que só o escrever

me faça relembrar o tom correto

da canção que escrevi lá no meu ser.

 

Que escrevi, mas não pude musicá-la —

esqueci o instrumento em minha mala,

tão cheio de preguiça e adiamentos...

 

Um puto de um soneto em sonhamentos,

que, quando lido em meio da putada,

só provoque uma puta gargalhada.

LA 12/001

 

 

 

 

Crocante

 

Na minh’alma plantaram joio e trigo

e os dois cresceram com igual vontade

de viver lado a lado num antigo

conúbio opositivo em gesto-jade...

 

Quem me fez isso ( indago ) e quem me há de

socorrer nesse duplo vitiligo —

que fere a alma e a pele e, sem piedade,

faz a esposa negar-me o seu umbigo?

 

Sim: suspendeu a esposa seus carnais

quitutes a esse pobre corpo a arder

sua libido uivando belos ais...

 

Com o trigo fiz o pão, o joio assei-o.

O que sobrou guardei bem junto ao seio

da amada. Em vindo a fome, é só comer.

LA 01/001

 

 

 

 

Síndrome Fá...

 

— Estava tão sozinho,

tão seco,

tão crepitante,

tão carente-pulsante —

que coisou com um cacto.

 

— É... O que o virtual não faz!

— Virtual uma pinóia, —

real-realista, coisa-coisada,

estrepe no estrepe, cara!

    Mas como?!

    Assim:

André desceu o brim,

escolheu um cacto-fêmea

( o homem é botânico... ) —

e foram os arfares mais suaves,

que jamais se ouviram

de alguém chegado.

    E houve orgasmo?!

    Um orgasmo atravessado de punhais —

como os românticos traídos...

.....................................................................................

A amiga, que era médica,

lhe retirou espinho por espinho —

condoída, maternal e cheia de remorso,

pensando bem baixinho e sem graça lá consigo:

“Como pude deixar este pobre nesse estado?”

........................................................................................

Já em casa, a mulher — com infinita

paciência e ternura —

lhe jurou jamais deixá-lo em síndrome fá... fáli...

califa... ( a língua não dá... )

Mas era tarde... Trop tard!

Daí pra frente

jamais André conseguiu relacionar-se

com outra coisa a não ser aquele cacto —

o cacto sensual, jeitoso, pilo-espináceo

do jardim da psicanalista Jacobina

( vizinha do cacófilo ) —

e que tinha um olhar tão penetrante,

que em geral seus clientes

deixavam seu consultório

literalmente do avesso...

Por isso é que o porteiro dizia que as pessoas

saíam de lá outras.

LA 12/002

 

 

 

 

 

Entre Querer-Ousar

 

A beleza da vida

é nem ser bela.

O bom da amizade

é nem ser boa.

O curioso da mentira

é que muda a verdade.

O engraçado da verdade

é o seu lado de mentira.

A beleza de ser

é a esperança de ser-se.

A magia de crer

é usufruir bem antes.

A glória de amar

é não dever

o que as moedas não pagam.

A maior bênção de Deus

não é Ele nos amar,

mas nos ser.

Suportamos a angústia

porque a sabemos breve.

Sim: tudo tem seu lado nobre:

dura pouco.

Existimos porque existir

é o que há de melhor.

Vivemos porque viver

é o discípulo —

dentro da vida,

que é o mestre.

Entre Ser e Tempo,

o primeiro é cavaleiro,

o segundo cavalo.

Entre partir-chegar,

há o querer-ousar

dentro do Sonho-Quem.

LA 01/002

 

 

 

 

Muy Amigo

 

O amigo vinha acasalar

seus demônios com os meus.

Depois que se ia,

ficava por três dias

um cheiro muito ruim

de palavras ociosas —

cheirando a enxofre

e a vômito

de veleidade e tolice.

LA 01/002

 

 

 

 

Coisas De Homo Sapiens

 

Fim de festa. Cansaço.

Sensações de quem bebeu até os tampos.

De quem comeu e pediu mais.

Certeza de que a ressaca,

misturada com a luz do amanhecer,

por vezes provoca vômitos —

não vale a libido da festa...

Ou vale? Sei lá. Pra alguém

deve valer.

..........................................................................................

Fim de festa. Quando viu —

estava só com Heitor

no quarto de uma das empregadas.

E como Heitor precisava,

não negou: não lhe ousou negar —

mesmo porque era o melhor amigo

de seu marido.

Deixou Heitor chupar mel nos favos.

Comer carne com ossos: bistecas

( com vontade de mijar ),

frias em baixo,

quentes de uísque na boca.

Com infinito carinho,

deixou Heitor comê-la

em várias posições em que fingiu

orgasmos celestiais, chiliques divinos —

não esquecer que o de cujíssimo

não era só o melhor amigo,

mas também o patrão do marido —

por isso lhe era generosa

( e agradecida aos céus ) —

em trinta e duas posições,

com fantasias

que davam arrepios fosforescentes...

LA 01/002

 

 

 

 

Não Mais, Mas Mais

 

A triste carne

— envilecida —

ensaia o canto,

que já não sai.

Ensaia o vôo,

mas já não pode.

 

A triste carne

já não vindima —

envilecida

de orgia e tempo.

Em suas vinhas — secas —

a lua é gorda

e tem um jeito cansado:

a esperança calada

das donas de bordel.

....................................................................

Não mais o canto,

o espremer das uvas

e o vôo azul.

.......................................................................

A triste carne

— envilecida —

já não canta,

nem voa —

mas lembra:

refaz suas venturas

no mental.

LA 01/002

 

 

 

 

Caturritas

 

Caso a mulher lhe diga:

Já não te amo, desculpa.

Considere-se feliz —

em geral não pedem desculpas.

Será um “fora” diferente —

civilizado até.

Melhor dizer a ela

que aceita o “consensual”

e que procure o advogado.

Já quando na partilha,

lhe dê a metade do gado

( se algum restou ),

metade do telhado

( se não se hipotecou ),

e, claro, metade das dívidas...

E também diga a ela

que existe o crime ( inafiançável ),

no caso imputado aos dois,

que foi o de prenderem

duas belas caturritas

que lhes liam a sorte

por meio de bicadinhas

pelas linhas da mão...

enquanto a empregada — cigana —

ia lendo em cada ponto

paz-amor-felicidades...

...........................................................................

E vá com calma,

diga a ela  ( e a você )

que essas coisas

são assim mesmo.

LA 01/002

 

 

 

 

Por Amor Do Teu Nome

 

O homem não morre,

fica sem graça.

Parece até que acabou de...

Parece pedir desculpas

por ter sido vencido.

Sim: o morto

fica muito sem graça —

por não ter conseguido

pegar o que lhe faltava...

Ou por não ter tido perícia

para dançar o tango...

Por não se ter lembrado

de esquecer.

Por não poder se esquecer

do esquecimento.

Por ter estourado na mão

a granada do amor,

com que não soube lidar.

Por não perceber

que seu ver

era apenas uma fresta —

não um periscópio.

Por essas e mil outras,

um morto mais parece

um mamífero

que não foi desmamado —

poucos genes o separam

dos outros animais.

Entre Deus e o homem

há o biombo

do “Eu te sou”,

do “Tu me és”...

Logo, sossegue, homem!

Teus ares desencantados,

tua morte sem graça —

ao menos te livraram

de seres um demônio

de arrogância e prepotência

insuplantáveis.

..................................................................

Piedade, Senhor, de nós!

Por amor do Teu nome —

piedade, Senhor, de nós!

De nós que nos vemos

envelhecer,

broxar

e — como terceira loucura —

ainda temos de morrer.

LA 12/001

             

 

 

 

 

O Amor É Bom...

 

O amor é bom porque, quando não ama,

há de saber ferir e desamar.

E toda aquela trama ( a enorme trama

de Penélope ) sabe destramar.

 

O amor é bom porque já não reclama —

nem mesmo o silicone o faz recuar.

E as quatro bolas, hoje, amor as chama

de contrapeso muito irregular...

 

O amor é bom porque, hoje, é um safado,

e quanto mais safado, mais amado.

O amor é bom porque, hoje, já não é.

 

O amor é bom porque já nem precisa

ser bom: vive sofrendo de coriza...

Sim: o melhor do amor é o seu chulé.

LA 12/001

 

 

 

 

Nem Tanto

 

Nem tanto para o altar,

nem tanto para a zona.

Entre putos e putas,

entre bons ou nem tanto —

atravesso uma ponte

chamada mundo.

Nem tanto para lá,

nem tanto para cá —

o caminho do meio

é o que me seve.

Os que sabem levitar

( lá em si mesmos )

podem se dar o luxo

de ir pela margem espiral.

LA 01/002

 

 

 

Vergonha E conivência

 

Não raro vemos o mundo

como ele é —

não como queremos que ele seja.

Chamamos isso de realismo,

e fundamos sobre isso

a nossa moralidade.

 

Racionalizamos a realidade,

e nossa culpa-arrogância-indiferença —

que não vemos,

nos faz cultivar a desventura

da maioria do planeta.

 

Vítimas-vitimantes de um grande engano,

há que inventarmos um novo caminho —

não já,

mas ontem.

No ontem vergonhoso e estúpido

do nosso fazer de conta

que a realidade é tão mesquinha quanto nós:

realidade de um lado só...

 

O futuro,

sem nossas mãos no hoje —

será a vergonha e a conivência

das nossas omissões

e a monoface das racionalizações,

não do que poderia ser,

mas do que — ferrenhamente —

queremos porque-sim que seja.

LA 01/002

 

 

 

 

Vítima-Vitimante

 

Lá em nossa arrogância-Titanic

não é de admirar que naufraguemos.

Trocamos nossas bênçãos pelo chique

luxurioso a faiscar em tons extremos.

 

A carne tem seus tiques e chiliques

e manda que pilhemos e empilhemos...

Nossa alma, de uma gula sem tabiques,

abarca no olho os sonhos mais enfermos.

 

Vive-se na mais santa veleidade...

A vida? Um amontoar de protoplasmas —

sem-nexo-rumo-nem-finalidade.

 

O homem vira uma coisa sem sentido —

vítima-vitimante em torres de aço e vidro.

Pelas ruas, bandidos e fantasmas...

LA 01/002

 

 

 

 

Um Mesmo Transeunte

 

Os jardineiros odeiam

as formigas,

que estupram suas rosas.

Mudam a geometria

musical de seus sonhos.

 

Os jardineiros odeiam

matar formigas.

Mãos que conversam

com as flores,

não são talhadas

para a morte.

 

Os jardineiros que, à luz

fresca do sol,

deparam com suas plantas

arrasadas pelas formigas —

aprendem

que para manter a vida

é preciso vigilância

e luta —

do micro ao macro:

vigilância, perspicácia

e luta.

 

A nossa parte é a nossa parte,

fazendo-a, aprendemos

que por ser frágil

é que a vida é tão bela.

E que a vida, a verdade,

a beleza, o homem

são um mesmo transeunte.

LA 01/002

 

 

 

 

Deixa Saudades

 

Como um anjo assume em paz

a sua angelitude,

assim ele fazia

com a sua cornitude.

 

No começo ( é natural )

até lhe doía um pouco,

mas leu muito sobre o assunto,

deixou cruzeiros e cruzados,

reais e dólares

sobre o divã —

até que reverteu a situação:

já agora adorava ser corno.

E tinha orgasmos deliciosos

quando — frente aos amigos —

se coçava ( manso e humilde )

em qualquer parte do corpo.

 

Rogava mesmo a Deus

( religioso que era )

que abençoasse os amigos

que usufruíam

das pérgulas da patroa.

 

“Bendita a tua cornitude,

ó corno privilegiado, —

( lhe dizia o amigo hindu )

que te faz desapegar

dos abismos da carne

e livrando-te vai da roda

de nascimentos e mortes!”

 

Quando a amada consorte

foi desta para melhor,

deu-lhe digna sepultura,

com epitáfio e tudo:

Deixa Saudades

LA 01/002

 

 

 

 

Seis

 

 

Um enterro? Seis pessoas.

Sim: bastante suficiente —

evita que competidores

( e amigos )

nos vejam assim sem graça,

e os inimigos se encantem

com nosso desencanto.

Sim: um enterro não precisa

de mais que seis pessoas.

Seis pessoas

numa tarde não-romântica —

sem vento, nem céu pedrento, ou brumas...

Nem aquelas pessoas

que treparam com nosso cônjuge.

Tudo,

menos um enterro político,

ou piegas.

Não chega a morte?

Sua presença crua, abissal

não basta?

Quanto mais gente

mais triste um enterro.

 

Poucas, poucas pessoas.

E muitas flores.

Elas que falem.

Só elas falem,

mas falem nada.

LA 01/002

 

 

 

 

De Diferente Em Diferente

 

Se essa é a minha vida,

que fazer senão vivê-la assim minha?

Sim: vivê-la assim minha,

já que se precisasse

vivê-la como a de outrem

que é que teria esse viver

com o meu?

Entre o meu e o do outro —

o que existe são dois viveres,

e o que é que entre eles pode haver,

senão a diferença?

Sim: a beleza e o caminho

chamam-se diferença.

E alguém poderia nos dar

algo melhor

que sermos diferentes?

E há algo de errado

em eu ser esse eu

que a própria vida me deu?

Não foi a criança, o moleque, o moço,

o adulto, o maduro

que me trouxeram até aqui?

E aí está:

nessas faixas de tempo

eu mudei para mim.

O diferente me interessa

de mim para mim:

enquanto organizar-me, superar-me,

transcender-me —

mudar-me para mim,

para poder chegar

àquele que me sou

lá em funduras-ser:

mudar-me

de diferente em diferente

para esse fim ontocósmico,

essa finalidade

que finjo não saber de frente

e que olho de soslaio

para melhor aprendê-la

em meu aprender-me nela.

LA 02/002

 

 

 

      

 Purê Das Gramíneas

 

As notícias ofegantes,

deixe-as ali na ponta daquela mesa...

Gosto de lê-las nas tardes ensonadas,

coçando o escroto sessentão

com suas enormes batatas

( ah, descobri porque crescem tanto nessa idade,

doutor:

preparam-se para a festa

do Purê das Gramíneas...

Aliás,  purê e ovos, doutora,

ornam, agradam desde sempre...

Mas não sejamos tão telúricos,

ainda não é o caso...).

 

Nessa idade, as notícias já não espantam —

tudo ganha uma relatividade com bocejos

em que o mais belo já não seduz

e o verdadeiro são esplêndidas incertezas.

 

{Esse riacho logo-ali é apenas uma fatalidade,

chibata do destino em forma de rego d’água...

com seu poscênio cheio de silêncio ( alagado),

enquanto a alma marulha, entre lisos e escamas,

as ironias sórdidas da vida: sórrrdidas —

construídas quem sabe por nossas próprias mãos...}

 

A essa altura os anos passam muito rápido,

os meses nem tanto... Dir-se-ia que

passam feito cobra sob a galhada

em que a gente se equilibra sentado...

Já os dias caminham com os caracóis...

E a existência só parece poder ser vivida

de lado de nosso vê-la-consciência...

 

A vida é apreendida pelas penas ou pelo vôo...

Seu volume vai se tornando tedioso,

algo assim igual a coisas muito iguais...

Tediosa não, mas feminista: foge

como se não mais a merecêssemos...

e nos deixa sozinhos como nossa mãe,

que já nos morreu,

e nosso cônjuge, que foi acasalar com o mundo

sua última tarde a gemer os pruridos da carne.

 

Nosso ler-escrever-dedicação-estudo-pesquisa...

tornaram-se nossos melhores companheiros,

e cada um de nós ( de si ) um confiável amigo.

Mandamos plantar favas nossos demônios gregos...

Descobrimos a Pneumo-Amizade...

com quem conversamos lá nas funduras de nós...

Se racionalizamos as uvas do mundo,

conseguimos também — secretamente — sublimá-las.

 

De modo que a felicidade

nem mais precisa ser feliz,

nem a ventura venturosa.

Afortunado quem inventa

seu modo de viver,

e enquanto passa

seu coração vai se lembrando

do caminho de casa.

LA 02/002

 

 

 

 

Adorações Em Lá Maior

 

Um apego ao infortúnio,

sim: grande queda pela desventura.

Adoramos ser infelizes...

Talvez para sermos mimados,

e compreendidos

lembrança deliciosa

da voz de nossas mães.

 

Adoramos ser heróis ( ou anti- ) —

fabular gabolices:

recordar nossa infância

entre vontades das coisas

e a paciência dos de casa.

 

Adoramos dramatizar —

apostar infelicidades...

comparar desenganos...

competir com desgraças...

Aliás, tanto pela tragédia

como pela comédia

é que os gurus-orgânicos

nos ensinam e nos tangem

( jeitosamente ) como gado.

 

Adoramos o não sei,

o não lembro,

o esqueci,

o faço, sim: um dia faço...

Adoramos justificativas,

elogios e adiamentos

do que devíamos fazer.

Adorações em lá maior...

a que lhes somos todo-ouvidos.

LA 02/002

 

 

 

 

Aleluias E Formigas

 

O relacionamento a dois?

Só Deus sabe como anda...

Mas a três, a quatro ou mais —

vai muito bem relacionado.

 

Mulheres reclamam de homens,

homens reclamam de mulheres,

mas, segundo o Procon, —

os dois só pensam naquilo.

E o pobre do Santo Antônio

nunca teve menos sossego.

Se bem, por vezes, é verdade,

só para provar, talvez,

( a todos os linguarudo )

que o amor existe sim, senhor.

Existe e é produto chique:

sabidamente trambicado,

ainda é o mais procurado.

 

Eronóia, filonóia!

Velhanóia, novanóia!

Glória, glória e pinóia!

Aleluias e formigas!

Bote um copo com água

ao lado da oração das seis —

e você pode salvar-se

de morrer de tanta sede.

Não dando resultado,

procure por um guru —

que sabe tudo, menos

ser honesto e feliz.

LA 02/002

 

 

 

 

Se O Amor Fosse...

 

Se o amor fosse,

dispensaria

os ensaios diuturnos —

te-amo-me-amas,

flores, bilhetes,

bijuterias, jóias,

mimos de novelas,

telefonemas ao outro dia —

esse andar cotidiano

por maroma sem maromba,

e trejeitos de saltimbancos.

 

Se o amor fosse,

era, e pronto.

Como não é,

nem nunca foi —

porque — graças a Deus — não é,

justamente por isso,

amor, minha Rosa,

é coisa chique:

faz inventar, gemer,

tremelicar os seus chiliques

e orquestrar os seus tiques.

 

Se o amor fosse,

pobres de nós!

Como iríamos

achar ridículo

o amor dos outros?

 

Ama o amor, minha amiga,

o amor pelo amor do amor:

luta, esgrime, duela,

defende o humor, o riso,

a gargalhada no amor.

O homem, sem o amor, —

como é que viveria

sem a sua graciosa tolice,

sem a graça

de suas aventuras,

seus desenganos,

os flertes com o mundo,

os adultérios

incentivados pelas novelas

(em seu burlesco romanesco

e suas quixotadas),

a traição saborosíssima,

fornicações glamourosas,

assiduamente

em lúbricos requintes praticadas?

 

O amor-eros iguala os homens,

por isso o amor é belo:

além de fazer de bobo,

também faz o homem se queimar.

LA 02/002

 

 

 

 

Ida E Volta Do Herói

 

Construiu uma torre de capim:

dez andares, rodeados de sacadas.

Nela pôs cem das suas bem-amadas,

e partiu para a Guerra do Alecrim...

 

Andou terras de Alá, Pedro, Joaquim...

Passou por Londres, por Paris, Granada...

Fez tal estrago, deu tanta paulada —

guerreiro algum parou em seu selim...

 

Recobrou o brasão de Alecrinada,

velho símbolo santo na cruzada

contra os infiéis idólatras do Aipim.

 

Voltou pontudo igual a mil talheres...

( Os amigos lhe tinham cuidado das mulheres...)

Festejaram comendo amendoim.

LA 02/002

 

 

 

 

Rosa

 

Cerca pulada,

jardim pisado —

um tudo-nada,

mas encantado:

sal,

nexo,

sentido —

feitos razão de ser.

 

Uma rosa

não é só uma rosa,

mas o que os séculos

( a cultura )

sonhou ser a rosa...

Tudo o que simboliza,

o que diz sem falar —

sim: a rosa não fala

a linguagem dos homens...

O transverbal da rosa

só a alma entende

e sabe tão verdade

quanto seus espinhos

conversarem

entre os dedos e a vida.

A rosa morre,

seu símbolo jamais.

Suas pétalas murcham,

sua intenção vive sempre.

Se o vento a desfolha,

suas pétalas viram pranto

em nós lá dentro:

sim: pranto nosso.

Somos a rosa

e ela nos é.

 

Não raro pisam a rosa

que ofertamos a alguém

num belo dia

em que nosso coração brilhava

e essa rosa falava ( lembra? )

a linguagem dos anjos.

Pisá-la é fazer doer muito.

O que amamos

amamos porque-sim —

o que chamamos nosso

só é belo e compensa

porque o fingimos assim.

O encanto encanta

por seu canto-nexo em alma.

Amor pisado

é rosa morta.

Quem a matou

que fique com a dor.

LA 02/002

 

 

 

 

Barganha

 

Amansam-nos.

Fazem-nos pensados.

Fazem-nos sonhados.

Toureiam-nos.

Roubam-nos.

Corneiam-nos.

Acanalham-nos.

Dizem-nos o que fazer

e não fazer.

“Provam-nos”estarem certas

a pobreza e a miséria.

Inventam “ismos”e “ias”

que nos mostram tudo estar correto:

ser essa a vontade de Deus

e ponto final.

..........................................................................

E em troca dessa aceitação —

nos prometem o reino dos céus.

LA 03/002

 

 

 

 

Aleluias E Minhocas

 

O pastor ia falar,

alguém tossia.

Ia falar,

tossia.

Ia,

tossia.

I...

tos...

Até que o pregador

lhe repreendeu a tosse:

“Em nome do Sen...!!!”...

........................................................

E pronto —

não se ouviu mais tosse.

Fez o sermão.

LA 03/002

 

 

 

Fofundas

 

Rotunduras malhadas

Sim: rotundo-modeladas

com suor e desvelo —

recompensadamente

graciundas

Facundas ( undas-ondas-undas-ondas-undas... ),

ecoando deliciundas:

redondas-ondas-ondas-ondas...

Facundas a ondear:

ondeando-ondeando-ondeando

tagarelantes,

mexemexundas

Undas undas ( latinas undas )

Ondas-ondas-undas-undas —

undivagantes, undívagas

ao horizonte dos olhos,

aos comichões digitais:

ondeando-ondeando-ondeando

rechonchundas-bochechundas

Vós ocupais, ó rotundas,

lugar de privilégio

( irreverentemente egrégio! )

sob o topete ( ou calva )

do momento —

sempre belundas

e jucundas:

undas-ondas-undas-ondas-undas,

jucundas quanto fecundas —

fofosamente fofundas,

e sempre-sempre sabichundas

LA 08/002