CANCIONEIRO DO ESPRAIADO

                                                   Laerte Antonio

 

(textos-1)

 

 

A Poesia Das Pedras

( Um Pouco Do Espraiado )

 

Dezembrando as suas águas,

o velho Espraiado geme.

De minha sala o escuto,

emoldurado pelas pedras

que Carlos Bastos, o Camisa-de-meia,

com suas mãos de desvirar sonhos,

ia mandando ter sentido...

E elas viravam poesia

de pegar com os olhos —

paradas sobre o brejo, o barro, o lodo:

porque ele ( Carlos ) as mandava

ficar ali paradas,

e não tinha conversa não: obedeciam

para não competir com a persistência dele,

e por saberem

( sim: até as pedras sabem... )

que o bom português

sempre falava sério —

mesmo quando brincava.

 

Antes de Carlos ( e com Carlos ) tinha vindo Outro

que inventava horizontes com os olhos...

( Foi ele quem fez dos caraguatás-espinheiros-limões-bravos-e

-antros do Espraiado

essa iguaria de Avenida

que hoje todos desejam degustar... )

Sim: o Dr. Sckandar Mussi

inventava horizontes com os olhos,

pegava dificuldades a unha,

abria ruas e avenidas

com seu jeito desbravador —

cabeça universitária

e botinas administrativas.

 

Inventava não, —

inventa:

o homem está aí, o povo o chamou de volta,

talvez saudoso

do seu enxergar valente,

do seu saber o quê/como fazer.

 

O que ensinava as pedras

a falarem macio,

a ter modos

e a recitar poesia —

esse foi convocado

para geometrizar jardins

à margem daquele rio

que banha a cidade de Deus.

 

E o velho Espraiado geme

dezembrando suas águas,

e a dizer que tudo passa —

mas que passar é bom:

muda o por fora e o por dentro

dos homens e das coisas,

a ribalta e o poscênio

com seu fio escarlate

a interligar as páginas

desse conto chamado vida.

LA 12/001

 

 

 

 

 

Cotovelar

 

O amor morreu, minha Rosa?

Pois demos graças a Deus —

nós dois estamos bem vivos.

 

Ficaram mágoas, minha Rosa?

Que bom! Ainda bem que temos

um passado que lembrar

e grilos pra desentortar.

 

Sabe, Rosa?, essa gente

que nunca levou um tombo,

anda louco-louquinha

pra se quebrar...

 

Amor dos bons, minha Rosa,

legítimo-genuíno —

tem mesmo é que machucar...

Mas... lá vem o tempo, e pensa —

pensa todas as feridas

impensadas...

E a gente, Rosa,

racionaliza:

Se não se tem uma rosa

ou um bombástico crisântemo —

serve uma dália dolorida...

ou um modesto bem-me-quer.

 

E o bom de tudo, minha Rosa,

é que com o tempo

a gente até aprende a ser feliz

com pouca ( quase nenhuma )

felicidade.

LA 06/001                 

       

 

 

 

 

Espeto/Espetado

 

O amor, Teresa, é hoje um clone

que usa camisinha e nos descarta

assim que o látex o desveste.

Só é enquanto espeto/espetado.

Assim que pára a chuva, vai-se.

E não se lembra

do número do telefone.

O amor, Teresa, virou cobra

que se engole pelo rabo.

Que nem maná —

já não se guarda pr’amanhã.

....................................................................

Mas deixa,

deixa chover,

do jeito que quiser,

sejas implicante não.

Sim, deixa o amor chover,

e seu gemer virar goteira,

que a gente apara o seu canto

nas latinhas...

Amor com chuva

faz bem até pra cachumba.

LA /06/001­                

           

 

 

 

 

Longe/Perto

 

Quando Laurinha morava longe,

meus arrazoados sentiam falta,

meu coração muita saudade.

 

Depois que veio morar bem perto,

meus braços se fartaram:

vontade de barriga cheia

e coração refestelado.

 

Foi então que sei lá o que em mim

sentiu falta daquela falta...

teve saudade das saudades

e do tempo que tinha fomes...

 

Laurinha, me vendo a agonia,

tenta me consolar:

Te entendo, meu André,

te entendo.

Por longe ser nada bom,

perto se finge melhor...

Mas não... Depois se vê que não...

Melhor um longe que rói,

e até possa ser triste,

que um perto a suspirar

de um desengano que dói...

E dói porque não existe

a não ser na necessidade

que teima em ter de doer.

LA 06/001

           

 

 

 

 

Pois É

 

Bem-te-vi fez um ninho —

cai, não cai...

aqui na beira do Espraiado.

Um ninho

parecido com o turbante

daquele homem

que Bush queria degustar —

de preferência morto:

para que não houvesse

nenhuma retração esfincteriana.

.............................................................................

Mas comeu não. Nem morto,

nem vivo.

Não só não comeu como não viu.

Igual ao bem-te-vi —

diz que vê,

mas cadê?

 

Bush viu?

Não, não viu.

Bem-te-vi,

onde e quê?

É tudo só garganta,

sim: muita onomatopéia —

pios & bombas,

bombas & pios.

Pois é.

LA 06/001

 

 

 

 

 

Infanto-Metafísica

 

Dois meninos:

um de quatro,

outro de seis anos.

 

O de quatro:

— Onde o vô enterrou a cachorra,

Natan?

— Debaixo da jabuticabeira.

— Então, Natan, a Chila acabou?

— Não, Saulo, o vô disse que sua alma

foi pro céu dos cachorrinhos.

 

— Todo mundo morre, Saulo?

— Morre. O vô falou que morre.

— E Deus, Saulo, morre?

— Deus não. Deus é esperto.

 

...........................................................................

Os que ouviam

rimos um riso sem fundo...

LA 06/001     

                      

 

 

 

 

           

            Condolências Em Tom Caboclo                     

                                                                 

 

Desespere não, Deolinda, —

a gente sempre arranja força.

Se Teobaldo se foi,

também a deixou embasada —

e os fundamentos são tudo:

estando firmes e a prumo,

ergue-se um outro edifício

com a rapidez de um coçar.

 

Desespere não, comadre,

que só não tem jeito o jeito

que a gente se nega dar.

E olhe, comadre: a vida

passa assim tão rapidinho

que nem pedra do céu

que despenca incendiada

dentro do nosso olhar...

..........................................................................

Por isso, não seja boba —

tão depressa lhe passe o nojo

( e a vizinhança lhe tire

o olho de corvo da vida ) —

tem mais é que aproveitar...

Comadre tá inteirinha...

mais parece melancia

( uma fatia vermelhinha )

em verão de estalar bagens...

 

Tem mais é que aproveitar.

Não vê a minha Neusinha?!

A pobre parafusou

lá por dentro de suas juntas —

as cadeiras viraram mesa:

nem rotação nem translação —

Neusinha virou pedra

e eu, um trípede implume...

.......................................................................

Por isso e por quanto queira,

é que lhe vim intimar

( enquanto não tiver quem

lhe trepe pelo telhado,

lhe enfie prego nas paredes,

lhe amacie as maçanetas,

lhe cuide da parte elétrica ):

conte comigo, comadre!

              LA 06/001

          

 

 

 

 

Aprendizado

 

Lá bem menino,

falava com meu cachorro,

com o muro,

com as dálias que espiavam por cima do muro,

com um enorme pé de jabuticaba

que me ensinou a cavalgar

e a viajar de mil modos...

Falava-lhes e os ouvia respondendo,

e sua voz tinha o timbre da minha...

 

Certa vez, uma prima

              dissera-me que as coisas

não falavam nem ouviam.

A partir desse dia

já não pudemos conversar (eu e as coisas).

.........................................................................

 

Comecei a ver navios com essa prima,

que conversava-beijava,

abandonava-voltava —

e me fazia o coração

dar cambalhotas,

voar em trapézios,

escalar celestes montes,

rastejar pelo brejo,

andar de pernas de pau,

chupar-favos-beber-venenos,

engolir fogo.

E martelei os dedos todos....

Tive vertigens em cores....

 

Foi aí que aprendi que as coisas

e os animais só não podem falar

pouco depois que admitimos

que eles não podem falar...

................................................................

Minha prima ficou sem graça

quando lhe ensinei

o que falava uma rosa

segundo a hora do dia,

a estação,

o ambiente

e — sobretudo —

as coisas lá em nós...

E o que dizia o perfume

de um bem-me-quer

em aflições de transformar-se

em malmequer...

....................................................................

E isso faz tanto tempo,

que já nem sei se é verdade.                         

LA06/001

 

 

 

 

 

Quem Sabe?

 

O coração e seus sintomas

de amor.

Já a razão, com seus instintos

de fuga.

Os dois — misturadinhos —, Rosa,

dão certo:

não criam fungos nem desfolham...

 

Essa mania, Rosa,

de levar para casa...

tem de acabar.

 

Assim ( quem sabe? ) a gente

aprende a ser feliz

sem precisar nem ser.

LA 06/001

        

 

 

 

 

 Não É Tempo...

 

Não é tempo de uvas, Joaninha,

nem é tempo de amor,

mas, na falta dos dois,

a gente tem as amoras.

 

(O amor, Joaninha, está passando

por uma transerogenia

biopsicocultural

[ Deus meu!].

Só o que se pode adivinhar

é que ele será tão outro

que as mentes pessimistas

pensarão que ele morreu —

ou que somente sobrevive

nos corações celestizados...

Mas não, Joaninha, o amor

apenas anda fariseado —

não ama nem desama:

se amorna descarrilado...

Natural, tudo bem natural

nesta curva da história

em que Desdêmona canta

a canção do salgueiro,

sob cuja ramagem

as águas levam Ofélia...

Friamente o amor lhes faltou,

lhes faltou com a palavra...)

 

Aguardemos a vindima,

Joaninha,

e a estação sem onde-quando

o amor seja possível.

Não o amor feito coisa qualquer,

mas sim o que nos há de ensinar

a fazê-lo com a luz —

o que, por certo, deixará os anjos

com muita água na boca e...

aos quais desafiaremos:

Quereis aprender chiques chiliques,

ó das alturas?

Quereis deveras? Então tereis

de vos mortalizar...

Ou pagais o preço ou permaneceis

com as lombrigas dançando

em vosso ventre...

a formigar-vos com o sonho

de mil ou mais tremeliques...

 

Enquanto isso, Joaninha,

vamos saboreando amoras —

que têm a cor do amor

e ninguém nem desconfia

que não o são.

LA 06/001

 

 

 

 

 

Microscópico

 

Um fio,

sempre por um fio —

o amor,

o amigo,

o afeto,

o apoio,

o sonho —

a vida.

 

Sobre esse fio ( microscópico )

é que andam ( sem maromba )

a fé,

a esperança,

o amor,

a verdade,

a beleza,

a vida —

sempre,

terrivelmente sempre

entre o equilíbrio e o chão.

LA 06/001

 

 

 

 

Elogio                          

                         

Todas as mulheres são terríveis,

mas algumas são mais

maravilhosamente terríveis.

Ruim com elas?

Sem elas: santos bocejos,

adeus às armas! —

nenhum dos deliciosos enganos,

das afrodisíacas mentiras,

das divinas diabruras,

das cruéis felicidades,

das desventuras venturosas...

Nenhum sentido teria

a falta de sentido.

Nenhum amor haveria

no desamor.

Nenhumíssima verdade

na mentira.

 

Sim: todas são iguais,

mas algumas são

mais loucamente iguais

a quaisquer desigualdades.

LA 07/001

 

 

 

 

 

A Vida, A Rosa, O Tempo

 

Rosa-Rosinha,

o tempo que perdemos

nem Proust ajuda a achar.

Nem Deus nunca... ah, Rosa,

quase blasfemo! Quase pe...

................................................................

Mas sim: nem Ele

nunca Se preocupou,

Rosinha,

com o que não fazemos

com o nosso tempo.

E tempo ganho, minha Rosa,

tempo ganho é ventura,

felicidade vivida

e lambiscada de memória

sempre que a língua estiver seca.

 

O mais é tempo-temporal

que nem dá chuva —

só vento, muito vento

e poeira, muita poeira —

a nos dizer, Rosinha,

que devíamos saber usar

o nosso tempo.

A vida, a rosa, o tempo,

ó Rosa,

e o vento, o fero vento...

só amigo dos carecas.

LA 07/001

 

 

 

 

 

Tato Interior

 

As bonecas não falam,

mas ensinam as meninas

que a vida passa depressa.

E as meninas adoram

trocarem-nas por garotos

o mais depressa que possam.

 

As meninas e os meninos

fazem tudo pensando

em coisas-primeira-vez...

E é belo ver-lhes no olhar

o brilho tímido de libido,

a pele ardendo por pele

e mãos e dedos e centros

buscando o diálogo da carne.

LA 07/001

 

 

 

 

 

Cor De Amora

 

Quando a vejo,

tenho prévias lembranças tão felizes...

Lembranças lá nas bordas de um futuro,

que fora, se quiséramos, o agora...

 

Que fora belo nesse ( suponhamos )

amarmo-nos numa fusão de luz

e sombras com o charme marchetado

de arrebóis a espremer as suas uvas...

 

Que fora lindo como um sonho findo —

mas recordando, igual um sol se abrindo,

carnais suspiros, gestos de açucenas...

 

Mas não, mas não! O agora cor de amora

não apetece a nós... Talvez nos fora

muito ter-lhe a ventura e suas penas...

LA 07/001

 

 

 

 

 

Filtro Do Tempo

 

Os discursos que faríamos

na mocidade,

mais tarde,

damos graças a Deus não tê-los feito,

ou por terem sido poucos...

É que vemos tão outras nossas opiniões —

tão juncadas de idéias subterrâneas,

não que construímos ou pensamos —

mas pelas quais fomos pensados...

Idéias que nos idealizaram,

sonhos que nos sonharam...

É aí que vemos quão manuseados

fomos-somos-seremos:

ouvintes alegres de uma velha música

que tocam lá por trás de não sabemos,

e a reputamos vinda de nós dentro

ou dos azuis de célicas esferas...

Nessa altura,

nos surpreendemos entre nossos feitos

( em outras coisas já desfeitos )

e o riso... Sim: o riso.

Um riso bom e amigo,

brotado de nós mesmos

e a um tempo força e calmo anseio

de irmos passando a limpo,

não o mundo e seus “ismos” —

mas a nós, a nós mesmos,

em silêncio e humildade.

.........................................................................................

Nessa hora, sim, pode haver

um brilho verdadeiro —

não para os outros ( o essencial é intransferível ),

mas para o nosso interno caminhar —

em que ser é aventura

e o tempo, — o filtro e a senha.

LA 07/001

 

 

 

 

 

Estações

 

Sem olhar para trás, nem desviar,

as estações nos levam pela mão,

e como crianças, vamos a palrar,

entre jamais voltar e a solidão...

 

Sim: bandos de estações a nos levar

para o lado de lá de nós... com a sensação

de estarmos sempre aqui ( pela repetição

talvez dos nomes ) todo ano a desfilar...

 

E viajamos tanto em seus comboios,

que só restam de nós sons-fantasmas de arroios...

até que a vida os passe a encarnar...

 

e vê-los recaindo ( novamente! )

na mão das estações que, de repente,

nos façam ( esquecidos ) re-sonhar.

LA 07/001

 

 

 

 

 

Elas, As...

 

Tenho no quintal duas matronas,

que conversam com a brisa

( num quase tédio vegetal ),

e um galo que já não canta,

mas ainda faz amor:

risca o chão, faz a corte,

e estala o que foi asas

no que foi peito...

E trepa, literalmente,

trepa — procura, dá uma tremidinha,

e pronto: desmonta,

gira e risca o chão —

lembrando o cavaleiro de la Mancha...

 

Duas matronas

lá dos tempos dos avós...

e que, sempre que possível,

e bem na ponta dos dedos:

servem licores a sanhaços,

sabiás, bem-te-vis...

 

Entre setembro-outubro

( em sonhos de primavera ),

parecem áulicas fofinhas —

vestidas de um branco em flor

e muito perfumadas,

a atrair burburinhos alados...

 

E não demora, tais senhoras

trocam o branco das vestes

pelo verde em vários tons...

e com pouco ou muito viço —

a depender da pouca ou muita chuva...

rala ou nenhuma...

.......................................................................

E bem mais sérias, as matronas

trajam agora

um negro gorgorão:

todo em bolinhas —

cheirosas e festejadas

por bocas que as estalam,

que as estalam,

que as estalam...

LA 07/001

 

 

 

 

 

Porque-Sim

 

Por vezes nos nutrimos de maus sonhos,

retalhos oraculares de desejos.

Surrupiamos vinho

das adegas de Salomão.

Roubamos fogo do céu

e seus manjares com sabor,

não de aventura,

mas de bem-aventurança.

E afinamos os nossos violinos,

preparamos o piano

para uma linda canção

de uma cadência e tom

constelados —

que o nosso coração não aprendeu...

Não aprendeu,

mas exigimos:

queremos porque-sim que ele a cante...

E ele a canta,

corajosamente a canta —

até que percebemos

que estamos numa festa triste:

uma alegria sem brilho,

uma ventura, uma espera

de alguém que não veio.

LA 07/001

 

 

 

 

 

Que São?

 

Que são os animais,

os seres e as coisas —

senão metáforas que nos ajudam

a entender os mistérios da vida?

 

Que são nossos sentimentos,

senão modos de traduzirmos

o que os pensamentos

esquecem de sentir?

 

Que são nossas verdades,

senão mentiras que um dia

chegarão a meias-verdades —

com tentações de se julgarem

verdades por inteiro,

com um riso de absolutas?

 

Que são a vida e a morte,

senão ribalta e poscênio

de um sonho dentro de outro sonho?

 

Que são os que não foram,

mas com desejo de ser?

Orgasmos de possibilidades

que acabam por falir?

Sei lá, só sei que a vida

é cada vez mais parecida

com a morte.

Parecida? Não: igual à morte.

A vida é a morte

com medo de morrer.

 

A mulher que cantava fados

se enfadou —

ninguém já se comovia

nem já chorava —

a não ser com a feijoada

e a caipirinha —

com tempero afrodisíaco.

.......................................................

E a moça? Cadê a moça

que dançava castanholas

e pisava  tão a  gosto

as nossas carambolas?

LA 07/001

 

 

 

 

 

Céu Pontilhado

 

Feliz, Rosinha, já sou.

Só falta achar o motivo

que a tanto me levou.

De tanta felicidade,

a um tempo me morro e vivo.

Pra te falar a verdade,

já sinto até saudade

de quando, lá no futuro,

eu despencar desse muro

todo feito de caquinhos

dessa feliz irrealidade —

em que ora me morro e vivo

com todo e nenhum motivo.

................................................................

O mundo? Sifu o mundo,

com seu jeitão furibundo...

com todos os seus blefes,

seus “pês”e “cês”e “efes”!

Sim: que o mundo sifu

com mais quem o entortou.

Feliz, Rosinha, já sou —

com esse céu mais tu.

Com esse céu pontilhado

de liberdade de urubu.

LA 08/001

       

 

 

 

 

Coisa Feia

 

A fome não é mais feia,

nem mais feia a feia vaca

do que um poeta babaca:

o que tem na própria veia,

não o canto da sereia,

mas ( temperada com doçura )

sua suave desventura

que aprendeu a cerzir meia!...

................................................................

Sim: não há coisa mais feia,

ou que mais pise os nossos ...”ões”

que um poeta babaca —

correndo atrás de seus fantasmas

com uma cruz, martelo e estaca...

E meia volta e volta e meia

a suspirar — panaca —,

não pelo anel que alguém lhe deu

( tão justinho ao dedo seu ),

mas pela dona do anel!...

LA 08/001

 

 

 

 

 

Na Pontinha Da Língua

 

Nem só de pão vive o homem,

mas de carne também.

Morena da perna grossa,

você bem que poderia

ensinar-me as suas rezas —

mas devagar, devagarinho,

que sou duro de aprender.

Sem pressa, nenhuma pressa,

morena da perna grossa —

              me ensine ontem e agora,

daqui a pouco e amanhã

um pouquinho de cada vez,

e quando vê, a gente sabe

o breviário inteirinho —

sem esforço nem cansaço,

de cor e salteado —

bem na ponta da língua,

ai, morena!

LA 08/001

 

 

 

 

 

Vai-E-Vem

 

Em agosto

quando o capim vira palha

e o vento se faz áspero

de arrepiar os dentes —

é que se nota claro

o vai-e-vem da vida:

o espraiar de outono-inverno

com ondas de primavera —

morrinascer em tudo.

LA 08/001

 

 

 

 

 

Agosto

 

Áspero como paisagem grega,

agosto sopra —

empoeirado e quebradiço...

Seco, em cicios de celulose e areia.

Sopra ora amplo, ora enfeixado

como numa ânfora etrusca —

tirando a máscara amarela da paisagem...

Tudo vira secura e pó,

muito pó impaciente

a esperar pela chuva —

e se tornar com ela barro,

o barro a remoldar os perfis,

os cantos,

os gritos,

a ousadia colorida de setembro

que virá.

Enquanto isso o Espraiado

corre magrinho... a levar

a roupa rota e amarela

de sonhos que já migraram...

LA 08/001

 

 

 

 

 

Delícia Mortal

 

A vida é sempre uma dor altiva,

compensada pela esperança —

a esticar-se entre a mão e a fruta,

no entre ramos que vêm e vão...

 

Tolo é quem troca

a perna que tem entre as suas

por aquelas que lhe acenam

a fugir pelas calçadas...

 

Do lado de cá do afeto,

a mão é quente e possível.

Na outra margem,

a beleza é mais bonita —

mas não tem pele

nem tempo,

nem a delícia mortal

de ser presença.

LA 08/001

 

 

 

 

 

Campo ( Santo? )

 

Aqui repousam nossos mortos,

em seu último e intemporal

abraço de terra.

Ainda que não houvesse

o sonho-além,

fora e é bom, muito bom ver

( por dentro da realidade )

todas essas mãos vazias —

e a relaxante beleza

de já não terem nada —

nem mais a sua forma.

Quando realmente não temos,

então somos todas as coisas:

um delicioso nada.

LA 08/001

 

 

 

A Pó Calipse

 

Não em água,

não em fogo,

não em vento

ou sismos —

mas em pó.

Sim, meu velho:

o mundo acaba

sempre que um de nós

vai engrossar seu pó.

LA 08/001

 

 

 

 

 

Trissos No Lago

 

Belas aquelas tardes

andorinhadas de calma —

trissos rasantes no lago...

No lago daquela infância

que via, não o que vemos

( enfermos de adultez ) —

mas com seu ver de não ver

senão o que os homens juram

( sem ver )

que são coisas de criança.

 

Belas aquelas tardes

andorinhadas pelo riso

da vida ainda orvalhada

de infância —

a descer, a subir

pelos corrimãos do olhar

de nossa mãe.

LA 07/001

 

 

 

 

 

Recorte

 

— Recorte aqui, Aninha:

     A esperança desse coração —

     mas inteirinha, sem machucar

     nem a esperança nem o coração...

— Deixa comigo, vô. Lembra como

     outro dia recortei o sorriso

     daquela manhã 

     sem fazer chover nem um pouquinho?

    Lembro, Aninha.

    Agora, vô, se a gente

corta só um pouquinho assim ó: assim...

a gente põe esparadrapo e amor, né?

Vovó diz que esparadrapo e amor

curam mais que o mundo inteiro

não seria capaz de curar.

              —  Verdade, Aninha. Mas prefiro

que não me corte.

LA 07/001

 

 

 

 

 

Ao Telefone

 

    Alô?!

      Oi, vô!

      Oi, Saulo!

Tá chovendo aí?

              —  Tá, vô.

Chovendo azul em tudo.

LA 07/001

 

 

       

 

 

 

Sonho-Quem

 

Quem é que magnetiza de poesia

esse fundo musical

que há em nós?

 

Quem é que exprime

em nós o inexprimível,

pegando pelas penas a palavra

e fixando o brilho do seu vôo?

 

Esse percutir temas

que dá flores em alma

e salta em frutos

para a página?

Esse lavar a realidade

pela metáfora

e colhê-la transformada

naquela margem

que se olha sem rosto

porque tornada, não em outra coisa,

mas no sonho de seu avesso-coisa?

 

Será esse outro em nós,

que aqui chamo Sonho-Quem,

quem sonha e vira o sonhado

de barriga para cima —

e o dá à mão que vai buscá-lo?

LA 11/001

 
 
 
 
 
     Indicação

 

      Por favor, alguém transmita

      ao pessoal do Nobel

      que há várias saracuras

      moradoras do Espraiado

      que bem que mereciam

      ficar com esse prêmio.

 

      Fácil saber por quê:

      faz anos e anos que manejam,

      lá por entre outono-inverno,

      ( cada qual ) os seus três potes

      e não consta que nenhuma,

      sim, senhor: nenhuma delas

      tenha quebrado ou trincado

      um só sequer de seus potes.

 

      Três potes três potes três potes... 

      E olhem, sem exagero:

      são três potes pra lá,

      são três potes pra cá —

      num sobe-desce vocal,

      em escalada e rapel

      ( com pote vazio e cheio )

      que bem que lhes caberia

      um assim... ( como diria?...)

    Um Nobel de manuseio.

LA 12/001

 

 

 

 

 

                 Auto-Homenagem

 

                     Hoje, levantei-me pródigo —

                     prestei-me uma auto-homenagem:

                     agraciei-me com o título

                     de Barrão do Espraiado.

                     ( Olhem: é barrão com dois “rr”,

                     e não barão. Isto em virtude

                     de ter havido aqui muito barro... )

                     Por se tratar de um título

                     nobili... isto é, plebiárquico,

                     presumo casa-branquense algum

                     ficará com inveja

                     e por isso não se oporá.

                     Assinado:

                     Laerte Antônio,

                     Barrão do Espraiado.

                     LA 12/001

 

                       

 

                

 

                 Claro Que Sim

 

Saudades? Sim: saudades,

que ninguém é de ferro.

A lembrança dos olhos,

dos olhos não: do gesto

de ariscos momentos felizes —

saudades são isso?

Claro que sim: isto e aquilo

que se comprava por quilo

e quando se descascava

não dava mais que um gomo,

chupado pelo gnomo

— familiar —

das moedinhas que tiniam,

rodavam e sumiam.

 

A delícia de chafarizes

molhando nossos verões

também não são piscos dolentes

com a vontade de reviver

pela tela de lembrá-los?

Claro que sim: degustações

que se querem

repetir

lá no corpo do mental —

sem mãos de segurá-las

nem boca de mordê-las...

 

O bom de se ter tido

uma namorada Vera,

mentirosa como o tempo

( que faz esquecer o guarda-chuva

bem onde não se devia...) —

isso também não faz

a gente lamber de memória

o derreter de um sorvete

que escorre pelos dedos?

Claro que sim: mais a saudade

que agora se saboreia

com colherinha niquelada

entre tantas gostosas mentiras,

tantos belos enganos —

tão mais belos

quanto mais veramente

mentirosos.

........................................................................

E quais outras, quais mais saudades?

Ah, sim: saudades das boas,

das graúdas, das melhores —

saudades do futuro.

LA 12/001

 

 

 

 

 

Belos Tempos

 

Saudades daquele Espraiado

molambento e ao deus-dará —

do Espraiado antes de Sckandar-Carlos.

Onde os moleques — após as chuvas —

pescávamos de peneira, e enchíamos

o velho escorredor de alumínio:

bagres, lambaris, cascudos...

E subíamos — molhados —,

limpávamos os bichinhos

que com limão-rosa e sal —

saltavam fritos

dentro do prato de arroz com salada

de almeirão picado fino. Por refrigerante,

água de poço com limão-galego —

daqueles bem miúdos e amarelinhos,

cheirosos como os sonhos de Clarinha

( que era linda e morreu menina de tudo ).

 

E ali — bem debaixo da jabuticabeira —

a gente  banqueteava —

inclusive Clarinha

que deve ter bronqueado com o Pai:

“Por que me trouxe para cá, Babu,

se lá estava tão bom?

Que é que Você tinha de tão urgente

pra me contar,

que não podia me dizer

lá no meu coração? ”

 

Vocês, que a ouviram,

perdoem a franqueza da guria Clara,

que era bondosa quanto bela

e se despetalava à toa

por qualquer vento ou brisa.

Mas Deus sabe:

mesmo quando xingava,

era de bom coração.

E como nos explicava

nosso vizinho,

branquinho de experiências

e curtido de versículos:

“Deus a amava tanto demais da conta,

que a quis com Ele, Nele...

Agora a gente sabe

que Ele a é.”

...............................................................................................

Belos tempos, sobretudo

porque a gente não sabia.

Sim: saudades de não saber

que a gente nem sabia.

 

Quanto ao mais,

o Espraiado, hoje, é bem melhor —

já não faz molecagens

levando gente e pinguelas...

Agora só resmunga. Civilizado.

A voz grossa com as chuvas

de fim-começo de ano

lhe dá ares de quem garganteia,

mas sabe que não é nada.

Bonachão, isto, sim,

a deslizar pela calha do tempo...

Do tempo que — sorrindo —

vai sovelando a ferrugem

de todo flutuar.

 

Clarinha já deve estar

com dois terços daqueles moleques...

( moleques não, alguns então já grandinhos... )

Deus deve ter dito a ela:

“Sossega, minha flor, que não demora

está todo o mundo aqui,

e vou deixar vocês brincarem num Espraiado

mais molambento ainda do que aquele...

E te juro, Menina,

te juro pelo Filho que deixei pregarem:

vocês jamais vão saber de mais nada —

a não ser da ventura

de não saber.”

LA 12/001

 

 

 

 

 

Doces Tolices

 

Casa-branquense nato, vou cagar

no mato, que é gostoso e lembra a infância —

quando a gente o fazia, e até com petulância:

lá em cima da galhada a cavalgar...

 

De sorte que o produto vinha do ar,

caindo dentre as pedras na reentrância —

pintava telas com predominância

de amarelo entre folhas a crocar...

 

Bons tempos? Não diria bons, apenas

outros tempos que a gente digeria

com outros tons de asneira, escamas, penas...

 

Doces tolices de um viver perneta.

Após cada cagada, a fantasia

de ter como resposta uma punheta.

LA 01/002

 

 

 

 

 

            Nosso Espraiado, Rosa...

 

Nosso Espraiado, Rosa, em seus dois lados,

é tão modesto que até daria

pra conversarmos — bem acomodados —

cada um de um lado em sua pedraria.

 

Seus sussurros são tão apaziguados,

tão calma a sua voz, e tão macia,

que o que dizes, em sons despetalados,

flui roseamente em piscos de alegria...

 

............................................................................

A tarde veste longo... a espremer

suas uvas e amoras numa glosa

de lusco-fusco com o anoitecer —

 

pingando sombras n’alma da aquarela...

Já ( invisíveis ) podemos, minha Rosa,

fazer amor em cima da pinguela.

LA 01/002

 

 

 

 

 

 

             Corre, Espraiado...

 

Corre, Espraiado, corre.

Se tuas águas

não derem para tanto —

daqui de cima        

                       e

                        u

                        

                           a

                             s

                          

                                e

                                 n

                                                  gr

                                                    o

                                                      s                                                

                                                        s

                                          o...................................................................................................

 

Se mesmo assim não der,

peço àquela Rosinha

( meu Deus, faz tanto tempo!... )

peço à Rosinha nos ajude —

aliás, meu velho, entre mil coisas,

Rosinha sabe ser sinfônica —

isto é, assoviar

as suas pérolas...

 

Sim: caso seja preciso,

Rosa e eu engrossaremos tuas águas.

Tuas águas que passam passam passam...

a nos dizer que a vida dói

quando se sabe um sopro-conto

a passar pelo tempo —

pela ribalta e poscênio da grande roda...

 

Corre, Espraiado, corre —

senão a vida pega a dianteira...

e o vento,

o vento me despetala Rosa

e não me resta o que viver.

LA 01/002

 

 

 

 

Profissão: Fazendeiros

 

Enquanto houver tesão, minha Rosa,

a vida vale a pena e o vôo.

Depois, minha comparsa, é a gente ir

metabolizar a terra

da fazenda de nossos pais.

 

Engraçado,

só depois que nossos ossos estão maduros

é que temos a certeza ( quase tátil )

de que os pais de todo o mundo

sempre tiveram uma profissão implícita,

e obrigatória:

a de sermos fazendeiros.

.......................................................................................

Vá lá! Ou melhor: até que iria lá... se ao menos

a gente demonstrasse vocação.

........................................................................................................

Pois é.

Enquanto a argila está molhada,

o negócio é modelá-la —

sová-la bem ( e logo! ), minha Rosa.

Porque o depois será sempre uma canção

que tentamos lembrar,

isto é, daríamos tudo pra lembrar...

LA 01/002

 

 

 

 

 

Tudo Isso, Aquilo...

 

Que bom que é, minha Rosa,

coçar os mimos e olhar para o Espraiado —

sabê-lo pobre e quase nada como nós:

tão apagado e humilde,

que só mesmo esticando o ouvido

pra gente ouvi-lo gorjear...

No entanto, corre fiel e sempre.

Com certeza ouviu os sonhos

que molhavam os pés e as patas dos cavalos

dos primeiros que por aqui passaram.

 

Sim: corre fiel e sempre.

Entre setembro-outubro suas águas

viram jabuticabas graúdas

nos pomares em derredor.

 

Que bom que é, minha Rosa,

ir coçando as saudades

e ouvir o vento em nosso bosque,

em nosso bosque enraizado no silêncio.

Que bom que é, minha Amiga,

ser vagabundo por opção

( e sugestão Presidencial... ),

após ter lutado e sonhado entre os homens...

Ser vagabundo, andarilho

lá nos esconsos da alma,

da alma livre-leve-solta como

um pensamento vadio

pelo infinito de Deuspai.

 

Que bom que é, minha Rosa,

viver-doer ao pé desse Espraiado

enquanto a gente cumpre a vida —

boboca, calmamente boquiabertos

de ver como é enfado

tudo isso, aquilo e o calcanhar de Aquiles.

LA 01/002

 
 
 
 
 
            O Mais É Escola

 

Já li dez vezes

o Antimanual de Bons Modos —

aquele que me diz

que se eu mudar para agradar aos outros,

certamente me tornarei

alguém muito desagradável para mim.

Me dou bem comigo assim.

Com o meu Espraiado,

com meu pequeno bosque

e meu ler-escrever.

Até com meu cachorro —

sim, nos damos muito bem.

 

Bem junto ao telefone

deixei escrito ( em vermelho ):

C C C =

Classe

Calma

Coerência

Sim:

Classe-Calma-Coerência

E embaixo:

Falar menos de 5 minutos —

e jamais acasalar demônios...

E ainda:

Com o tirano use:

passividade-alienação

e as quatro frases

( que aprendi com meus alunos ):

Não lembro.

Não sei.

Me esqueci.

Claro-que-sim-um-outro-dia...

 

E demos ( você e eu ) graças a Deus

porque sempre existiram

os que se têm por muito espertos.

............................................................................

Já ouvi todas as canções

( quase todas, perdão! ),

e aprendi que só falam de uma coisa:

Faz de conta que sou e que tu és...

 

O mais?

O mais é viver.

O resto?

É resto.

E havemos de aprender muito mais nada.

LA 01/002

               
 
 
 
 
                Sem-Terra

 

O único sem-terra agora

( de todos os meus ), Babu,

sou eu.

Deste a cada um a sua gleba.

Tornaste-os mineradores

de seus sonhos,

cultivadores

de seus próprios casulos.

 

Quanto a mim, quero que saibas:

não tenho pressa .

Enquanto me permitires, Babu,

prefiro as glebas psíquicas,

isto é: prefiro

plantar na imaginação,

ou mesmo plantar favas...

Isto sim: plantar favas

nas minhas vagabundagens.

Sim, Babu, que eu me torne um vagabundo

tão consciente,

que só a minha vagabundagem

tenha-me ainda algum sentido...

 

Quanto àquele chocolate

que a vida nos oferece

logo à direita

da Estação dos Papagaios —

enquanto puderes adiar-mo,

Te agradeço, Babu.

Todos, que o provam,

emagrecem de ficar brancos...

 

Prefiro ir ficando por aqui,

à beira desse estúpido Espraiado...

a beliscar saudades

do tempo em que não sabia

que era feliz.

E como era!

Ah, Babu, minhas mãos

e todos os meus dedos

foram mais que felizes!

.......................................................................

A gente contava estrelas...

a gente tirava a roupa...

a gen...

Perdão, Babu.

Por vezes a gente se empolga.

LA 01/002

 

 

 

 

 

Água Mansa E Areia Rosada

 

A infância fazia guerra

de mamona,

ou de barro ( de fazer pelotas ) —

lançado com a mão, com o estilingue...

Barro de modelagem

que a Escola Normal

vinha buscar aqui no Espraiado.

A infância fazia amor com a esperança,

com o seu não-saber feliz.

Montava animais

com cabrestos improvisados de cipós...

Moleques lutavam, nadavam, jogavam, pescavam....

Afagavam éguas em barrancos

de três degraus...

Desfrutavam os bonecas.

Nessa especialidade, o Furunha

passava a perna em todos.

Era inventivo: fez a máquina

de furunhar...

Ficava em pé no meio do corgo,

junto à pinguela bem flexível

( que ele próprio construíra... )

O bichanão

sentava no meio dela...

Dois ajudantes (em pé), um de cada lado

do bichano,

impulsionavam, ao comando do Furunha

( plantado, em pé, no meio do corgo ), —

o sobe-desce-sobe-desce-sobe-desce-sobe...

em cadenciados furunhamentos...

Fazia-se um silêncio santo:

a respiração suspensa,

babava-se ante tanta tecnologia...

e presteza-gozo.

.........................................................................................

Findo o furunhamento hi-tec,

os moleques, na ponta dos pés,

sobre a pinguela e nos barrancos —

depenavam seus sabiás

( lentamente e em silêncio )

até que um deles

pinchasse duas ou três pequeninas pérolas

no seio manso das águas...

Aí rompiam o silêncio

em urras, bravos ao campeão:

Fulano perolou primeiro!

E o carregavam nas costas

até a primeira panela rasa

com o fundo de areia rosa...

onde todos, sentados, em círculo,

ouviam do campeão a ordem

para depenarem-se com calma —

até às pérolas, ou o orgasmo oco

e seco

de quem ainda não fabrica mel.

( Havia quase sempre

dois meninos engomados,

literalmente engomados,

sapatos e meias claros,

que acompanhavam sérios

— interessadíssimos —

com os braços cruzados

e um tanto ao de longe...

como se anotassem tudo,

adorassem o que viam:

seus olhos lampejavam,

suas línguas molhavam-lhes toda a boca...

mostrando sempre no olhar

muita, mas muita vontade

de se sujarem —

cabeça, tronco e membros...

E sabe Deus que outras lombrigas.

LA 011/002