CANCIONEIRO DO ESPRAIADO
Laerte Antonio
(textos-1)
A Poesia Das Pedras
( Um Pouco Do Espraiado )
Dezembrando as suas águas,
o velho Espraiado geme.
De minha sala o escuto,
emoldurado pelas pedras
que Carlos Bastos, o Camisa-de-meia,
com suas mãos de desvirar sonhos,
ia mandando ter sentido...
E elas viravam poesia
de pegar com os olhos —
paradas sobre o brejo, o barro, o lodo:
porque ele ( Carlos ) as mandava
ficar ali paradas,
e não tinha conversa não: obedeciam
para não competir com a persistência dele,
e por saberem
( sim: até as pedras sabem... )
que o bom português
sempre falava sério —
mesmo quando brincava.
Antes de Carlos ( e com Carlos ) tinha vindo Outro
que inventava horizontes com os olhos...
( Foi ele quem fez dos caraguatás-espinheiros-limões-bravos-e
-antros do Espraiado
essa iguaria de Avenida
que hoje todos desejam degustar... )
Sim: o Dr. Sckandar Mussi
inventava horizontes com os olhos,
pegava dificuldades a unha,
abria ruas e avenidas
com seu jeito desbravador —
cabeça universitária
e botinas administrativas.
Inventava não, —
inventa:
o homem está aí, o povo o chamou de volta,
talvez saudoso
do seu enxergar valente,
do seu saber o quê/como fazer.
O que ensinava as pedras
a falarem macio,
a ter modos
e a recitar poesia —
esse foi convocado
para geometrizar jardins
à margem daquele rio
que banha a cidade de Deus.
E o velho Espraiado geme
dezembrando suas águas,
e a dizer que tudo passa —
mas que passar é bom:
muda o por fora e o por dentro
dos homens e das coisas,
a ribalta e o poscênio
com seu fio escarlate
a interligar as páginas
desse conto chamado vida.
LA 12/001
Cotovelar
O amor morreu, minha Rosa?
Pois demos graças a Deus —
nós dois estamos bem vivos.
Ficaram mágoas, minha Rosa?
Que bom! Ainda bem que temos
um passado que lembrar
e grilos pra desentortar.
Sabe, Rosa?, essa gente
que nunca levou um tombo,
anda louco-louquinha
pra se quebrar...
Amor dos bons, minha Rosa,
legítimo-genuíno —
tem mesmo é que machucar...
Mas... lá vem o tempo, e pensa —
pensa todas as feridas
impensadas...
E a gente, Rosa,
racionaliza:
Se não se tem uma rosa
ou um bombástico crisântemo —
serve uma dália dolorida...
ou um modesto bem-me-quer.
E o bom de tudo, minha Rosa,
é que com o tempo
a gente até aprende a ser feliz
com pouca ( quase nenhuma )
felicidade.
LA 06/001
Espeto/Espetado
que usa camisinha e nos descarta
assim que o látex o desveste.
Só é enquanto espeto/espetado.
Assim que pára a chuva, vai-se.
E não se lembra
do número do telefone.
O amor, Teresa, virou cobra
que se engole pelo rabo.
Que nem maná —
já não se guarda pr’amanhã.
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Mas deixa,
deixa chover,
do jeito que quiser,
sejas implicante não.
Sim, deixa o amor chover,
e seu gemer virar goteira,
que a gente apara o seu canto
nas latinhas...
Amor com chuva
faz bem até pra cachumba.
LA /06/001
Longe/Perto
Quando Laurinha morava longe,
meus arrazoados sentiam falta,
meu coração muita saudade.
Depois que veio morar bem perto,
meus braços se fartaram:
vontade de barriga cheia
e coração refestelado.
Foi então que sei lá o que em mim
sentiu falta daquela falta...
teve saudade das saudades
e do tempo que tinha fomes...
Laurinha, me vendo a agonia,
tenta me consolar:
Te entendo, meu André,
te entendo.
Por longe ser nada bom,
perto se finge melhor...
Mas não... Depois se vê que não...
Melhor um longe que rói,
e até possa ser triste,
que um perto a suspirar
de um desengano que dói...
E dói porque não existe
a não ser na necessidade
que teima em ter de doer.
LA 06/001
cai, não cai...
aqui na beira do Espraiado.
Um ninho
parecido com o turbante
daquele homem
que Bush queria degustar —
de preferência morto:
para que não houvesse
nenhuma retração esfincteriana.
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Mas comeu não. Nem morto,
nem vivo.
Não só não comeu como não viu.
Igual ao bem-te-vi —
diz que vê,
mas cadê?
Bush viu?
Não, não viu.
Bem-te-vi,
onde e quê?
É tudo só garganta,
sim: muita onomatopéia —
pios & bombas,
bombas & pios.
Pois é.
LA 06/001
Infanto-Metafísica
Dois meninos:
um de quatro,
outro de seis anos.
O de quatro:
— Onde o vô enterrou a cachorra,
Natan?
— Debaixo da jabuticabeira.
— Então, Natan, a Chila acabou?
— Não, Saulo, o vô disse que sua alma
foi pro céu dos cachorrinhos.
— Todo mundo morre, Saulo?
— Morre. O vô falou que morre.
— E Deus, Saulo, morre?
— Deus não. Deus é esperto.
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Os que ouviam
rimos um riso sem fundo...
LA 06/001
Condolências Em Tom Caboclo
a gente sempre arranja força.
Se Teobaldo se foi,
também a deixou embasada —
e os fundamentos são tudo:
estando firmes e a prumo,
ergue-se um outro edifício
com a rapidez de um coçar.
Desespere não, comadre,
que só não tem jeito o jeito
que a gente se nega dar.
E olhe, comadre: a vida
passa assim tão rapidinho
que nem pedra do céu
que despenca incendiada
dentro do nosso olhar...
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Por isso, não seja boba —
tão depressa lhe passe o nojo
( e a vizinhança lhe tire
o olho de corvo da vida ) —
tem mais é que aproveitar...
Comadre tá inteirinha...
mais parece melancia
( uma fatia vermelhinha )
em verão de estalar bagens...
Tem mais é que aproveitar.
Não vê a minha Neusinha?!
A pobre parafusou
lá por dentro de suas juntas —
as cadeiras viraram mesa:
nem rotação nem translação —
Neusinha virou pedra
e eu, um trípede implume...
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Por isso e por quanto queira,
é que lhe vim intimar
( enquanto não tiver quem
lhe trepe pelo telhado,
lhe enfie prego nas paredes,
lhe amacie as maçanetas,
lhe cuide da parte elétrica ):
LA 06/001
Aprendizado
Lá bem menino,
falava com meu cachorro,
com o muro,
com as dálias que espiavam por cima do muro,
com um enorme pé de jabuticaba
que me ensinou a cavalgar
e a viajar de mil modos...
Falava-lhes e os ouvia respondendo,
e sua voz tinha o timbre da minha...
Certa vez, uma prima
dissera-me que as coisas
não falavam nem ouviam.
A partir desse dia
já não pudemos conversar (eu e as coisas).
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Comecei a ver navios com essa prima,
que conversava-beijava,
abandonava-voltava —
e me fazia o coração
dar cambalhotas,
voar em trapézios,
escalar celestes montes,
rastejar pelo brejo,
andar de pernas de pau,
chupar-favos-beber-venenos,
engolir fogo.
E martelei os dedos todos....
Tive vertigens em cores....
Foi aí que aprendi que as coisas
e os animais só não podem falar
pouco depois que admitimos
que eles não podem falar...
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Minha prima ficou sem graça
quando lhe ensinei
o que falava uma rosa
segundo a hora do dia,
a estação,
o ambiente
e — sobretudo —
as coisas lá em nós...
E o que dizia o perfume
de um bem-me-quer
em aflições de transformar-se
em malmequer...
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E isso faz tanto tempo,
que já nem sei se é verdade.
LA06/001
Quem Sabe?
de amor.
Já a razão, com seus instintos
de fuga.
Os dois — misturadinhos —, Rosa,
dão certo:
não criam fungos nem desfolham...
Essa mania, Rosa,
de levar para casa...
tem de acabar.
Assim ( quem sabe? ) a gente
aprende a ser feliz
sem precisar nem ser.
LA 06/001
Não É Tempo...
Não é tempo de uvas, Joaninha,
nem é tempo de amor,
mas, na falta dos dois,
a gente tem as amoras.
(O amor, Joaninha, está passando
por uma transerogenia
biopsicocultural
[ Deus meu!].
Só o que se pode adivinhar
é que ele será tão outro
que as mentes pessimistas
pensarão que ele morreu —
ou que somente sobrevive
nos corações celestizados...
Mas não, Joaninha, o amor
apenas anda fariseado —
não ama nem desama:
se amorna descarrilado...
Natural, tudo bem natural
nesta curva da história
em que Desdêmona canta
a canção do salgueiro,
sob cuja ramagem
as águas levam Ofélia...
Friamente o amor lhes faltou,
lhes faltou com a palavra...)
Aguardemos a vindima,
Joaninha,
e a estação sem onde-quando
o amor seja possível.
Não o amor feito coisa qualquer,
mas sim o que nos há de ensinar
a fazê-lo com a luz —
o que, por certo, deixará os anjos
com muita água na boca e...
aos quais desafiaremos:
Quereis aprender chiques chiliques,
ó das alturas?
Quereis deveras? Então tereis
de vos mortalizar...
Ou pagais o preço ou permaneceis
com as lombrigas dançando
em vosso ventre...
a formigar-vos com o sonho
de mil ou mais tremeliques...
Enquanto isso, Joaninha,
vamos saboreando amoras —
que têm a cor do amor
e ninguém nem desconfia
que não o são.
LA 06/001
Microscópico
Um fio,
sempre por um fio —
o amor,
o amigo,
o afeto,
o apoio,
o sonho —
a vida.
Sobre esse fio ( microscópico )
é que andam ( sem maromba )
a fé,
a esperança,
o amor,
a verdade,
a beleza,
a vida —
sempre,
terrivelmente sempre
entre o equilíbrio e o chão.
LA 06/001
Elogio
Todas as mulheres são terríveis,
mas algumas são mais
maravilhosamente terríveis.
Ruim com elas?
Sem elas: santos bocejos,
adeus às armas! —
nenhum dos deliciosos enganos,
das afrodisíacas mentiras,
das divinas diabruras,
das cruéis felicidades,
das desventuras venturosas...
Nenhum sentido teria
a falta de sentido.
Nenhum amor haveria
no desamor.
Nenhumíssima verdade
na mentira.
Sim: todas são iguais,
mas algumas são
mais loucamente iguais
a quaisquer desigualdades.
LA 07/001
Rosa-Rosinha,
o tempo que perdemos
nem Proust ajuda a achar.
Nem Deus nunca... ah, Rosa,
quase blasfemo! Quase pe...
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Mas sim: nem Ele
nunca Se preocupou,
Rosinha,
com o que não fazemos
com o nosso tempo.
E tempo ganho, minha Rosa,
tempo ganho é ventura,
felicidade vivida
e lambiscada de memória
sempre que a língua estiver seca.
O mais é tempo-temporal
que nem dá chuva —
só vento, muito vento
e poeira, muita poeira —
a nos dizer, Rosinha,
que devíamos saber usar
o nosso tempo.
A vida, a rosa, o tempo,
ó Rosa,
e o vento, o fero vento...
só amigo dos carecas.
LA 07/001
As bonecas não falam,
mas ensinam as meninas
que a vida passa depressa.
E as meninas adoram
trocarem-nas por garotos
o mais depressa que possam.
As meninas e os meninos
fazem tudo pensando
em coisas-primeira-vez...
E é belo ver-lhes no olhar
o brilho tímido de libido,
a pele ardendo por pele
e mãos e dedos e centros
buscando o diálogo da carne.
LA 07/001
Quando a vejo,
tenho prévias lembranças tão felizes...
Lembranças lá nas bordas de um futuro,
que fora, se quiséramos, o agora...
Que fora belo nesse ( suponhamos )
amarmo-nos numa fusão de luz
e sombras com o charme marchetado
de arrebóis a espremer as suas uvas...
Que fora lindo como um sonho findo —
mas recordando, igual um sol se abrindo,
carnais suspiros, gestos de açucenas...
Mas não, mas não! O agora cor de amora
não apetece a nós... Talvez nos fora
muito ter-lhe a ventura e suas penas...
LA 07/001
na mocidade,
mais tarde,
damos graças a Deus não tê-los feito,
ou por terem sido poucos...
É que vemos tão outras nossas opiniões —
tão juncadas de idéias subterrâneas,
não que construímos ou pensamos —
mas pelas quais fomos pensados...
Idéias que nos idealizaram,
sonhos que nos sonharam...
É aí que vemos quão manuseados
fomos-somos-seremos:
ouvintes alegres de uma velha música
que tocam lá por trás de não sabemos,
e a reputamos vinda de nós dentro
ou dos azuis de célicas esferas...
Nessa altura,
nos surpreendemos entre nossos feitos
( em outras coisas já desfeitos )
e o riso... Sim: o riso.
Um riso bom e amigo,
brotado de nós mesmos
e a um tempo força e calmo anseio
de irmos passando a limpo,
não o mundo e seus “ismos” —
mas a nós, a nós mesmos,
em silêncio e humildade.
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Nessa hora, sim, pode haver
um brilho verdadeiro —
não para os outros ( o essencial é intransferível ),
mas para o nosso interno caminhar —
em que ser é aventura
e o tempo, — o filtro e a senha.
LA 07/001
Sem olhar para trás, nem desviar,
as estações nos levam pela mão,
e como crianças, vamos a palrar,
entre jamais voltar e a solidão...
Sim: bandos de estações a nos levar
para o lado de lá de nós... com a sensação
de estarmos sempre aqui ( pela repetição
talvez dos nomes ) todo ano a desfilar...
E viajamos tanto em seus comboios,
que só restam de nós sons-fantasmas de arroios...
até que a vida os passe a encarnar...
e vê-los recaindo ( novamente! )
na mão das estações que, de repente,
nos façam ( esquecidos ) re-sonhar.
LA 07/001
Elas, As...
Tenho no quintal duas matronas,
que conversam com a brisa
( num quase tédio vegetal ),
e um galo que já não canta,
mas ainda faz amor:
risca o chão, faz a corte,
e estala o que foi asas
no que foi peito...
E trepa, literalmente,
trepa — procura, dá uma tremidinha,
e pronto: desmonta,
gira e risca o chão —
lembrando o cavaleiro de la Mancha...
Duas matronas
lá dos tempos dos avós...
e que, sempre que possível,
e bem na ponta dos dedos:
servem licores a sanhaços,
sabiás, bem-te-vis...
Entre setembro-outubro
( em sonhos de primavera ),
parecem áulicas fofinhas —
vestidas de um branco em flor
e muito perfumadas,
a atrair burburinhos alados...
E não demora, tais senhoras
trocam o branco das vestes
pelo verde em vários tons...
e com pouco ou muito viço —
a depender da pouca ou muita chuva...
rala ou nenhuma...
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E bem mais sérias, as matronas
trajam agora
um negro gorgorão:
todo em bolinhas —
cheirosas e festejadas
por bocas que as estalam,
que as estalam,
que as estalam...
LA 07/001
Porque-Sim
Por vezes nos nutrimos de maus sonhos,
retalhos oraculares de desejos.
Surrupiamos vinho
das adegas de Salomão.
Roubamos fogo do céu
e seus manjares com sabor,
não de aventura,
mas de bem-aventurança.
E afinamos os nossos violinos,
preparamos o piano
para uma linda canção
de uma cadência e tom
constelados —
que o nosso coração não aprendeu...
Não aprendeu,
mas exigimos:
queremos porque-sim que ele a cante...
E ele a canta,
corajosamente a canta —
até que percebemos
que estamos numa festa triste:
uma alegria sem brilho,
uma ventura, uma espera
de alguém que não veio.
LA 07/001
Que são os animais,
os seres e as coisas —
senão metáforas que nos ajudam
a entender os mistérios da vida?
Que são nossos sentimentos,
senão modos de traduzirmos
o que os pensamentos
esquecem de sentir?
Que são nossas verdades,
senão mentiras que um dia
chegarão a meias-verdades —
com tentações de se julgarem
verdades por inteiro,
com um riso de absolutas?
Que são a vida e a morte,
senão ribalta e poscênio
de um sonho dentro de outro sonho?
Que são os que não foram,
mas com desejo de ser?
Orgasmos de possibilidades
que acabam por falir?
Sei lá, só sei que a vida
é cada vez mais parecida
com a morte.
Parecida? Não: igual à morte.
A vida é a morte
com medo de morrer.
A mulher que cantava fados
se enfadou —
ninguém já se comovia
nem já chorava —
a não ser com a feijoada
e a caipirinha —
com tempero afrodisíaco.
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E a moça? Cadê a moça
que dançava castanholas
e pisava tão a gosto
as nossas carambolas?
LA 07/001
Feliz, Rosinha, já sou.
Só falta achar o motivo
que a tanto me levou.
De tanta felicidade,
a um tempo me morro e vivo.
Pra te falar a verdade,
já sinto até saudade
de quando, lá no futuro,
eu despencar desse muro
todo feito de caquinhos
dessa feliz irrealidade —
em que ora me morro e vivo
com todo e nenhum motivo.
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O mundo? Sifu o mundo,
com seu jeitão furibundo...
com todos os seus blefes,
seus “pês”e “cês”e “efes”!
Sim: que o mundo sifu
com mais quem o entortou.
Feliz, Rosinha, já sou —
com esse céu mais tu.
Com esse céu pontilhado
de liberdade de urubu.
LA 08/001
A fome não é mais feia,
nem mais feia a feia vaca
do que um poeta babaca:
o que tem na própria veia,
não o canto da sereia,
mas ( temperada com doçura )
sua suave desventura
que aprendeu a cerzir meia!...
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Sim: não há coisa mais feia,
ou que mais pise os nossos ...”ões”
que um poeta babaca —
correndo atrás de seus fantasmas
com uma cruz, martelo e estaca...
E meia volta e volta e meia
a suspirar — panaca —,
não pelo anel que alguém lhe deu
( tão justinho ao dedo seu ),
mas pela dona do anel!...
LA 08/001
Nem só de pão vive o homem,
mas de carne também.
Morena da perna grossa,
você bem que poderia
ensinar-me as suas rezas —
mas devagar, devagarinho,
que sou duro de aprender.
Sem pressa, nenhuma pressa,
morena da perna grossa —
me ensine ontem e agora,
daqui a pouco e amanhã
um pouquinho de cada vez,
e quando vê, a gente sabe
o breviário inteirinho —
sem esforço nem cansaço,
de cor e salteado —
bem na ponta da língua,
ai, morena!
LA 08/001
quando o capim vira palha
e o vento se faz áspero
de arrepiar os dentes —
é que se nota claro
o vai-e-vem da vida:
o espraiar de outono-inverno
com ondas de primavera —
morrinascer em tudo.
Agosto
Áspero como paisagem grega,
agosto sopra —
empoeirado e quebradiço...
Seco, em cicios de celulose e areia.
Sopra ora amplo, ora enfeixado
como numa ânfora etrusca —
tirando a máscara amarela da paisagem...
Tudo vira secura e pó,
muito pó impaciente
a esperar pela chuva —
e se tornar com ela barro,
o barro a remoldar os perfis,
os cantos,
os gritos,
a ousadia colorida de setembro
que virá.
Enquanto isso o Espraiado
corre magrinho... a levar
a roupa rota e amarela
de sonhos que já migraram...
LA 08/001
A vida é sempre uma dor altiva,
compensada pela esperança —
a esticar-se entre a mão e a fruta,
no entre ramos que vêm e vão...
Tolo é quem troca
a perna que tem entre as suas
por aquelas que lhe acenam
a fugir pelas calçadas...
Do lado de cá do afeto,
a mão é quente e possível.
Na outra margem,
a beleza é mais bonita —
mas não tem pele
nem tempo,
nem a delícia mortal
de ser presença.
Campo ( Santo? )
Aqui repousam nossos mortos,
em seu último e intemporal
abraço de terra.
Ainda que não houvesse
o sonho-além,
fora e é bom, muito bom ver
( por dentro da realidade )
todas essas mãos vazias —
e a relaxante beleza
de já não terem nada —
nem mais a sua forma.
Quando realmente não temos,
então somos todas as coisas:
um delicioso nada.
LA 08/001
Não em água,
não em fogo,
não em vento
ou sismos —
mas em pó.
Sim, meu velho:
o mundo acaba
sempre que um de nós
vai engrossar seu pó.
LA 08/001
andorinhadas de calma —
trissos rasantes no lago...
No lago daquela infância
que via, não o que vemos
( enfermos de adultez ) —
mas com seu ver de não ver
senão o que os homens juram
( sem ver )
que são coisas de criança.
Belas aquelas tardes
andorinhadas pelo riso
da vida ainda orvalhada
de infância —
a descer, a subir
pelos corrimãos do olhar
de nossa mãe.
LA 07/001
— Recorte aqui, Aninha:
A esperança desse coração —
mas inteirinha, sem machucar
nem a esperança nem o coração...
— Deixa comigo, vô. Lembra como
outro dia recortei o sorriso
daquela manhã
sem fazer chover nem um pouquinho?
— Lembro, Aninha.
— Agora, vô, se a gente
corta só um pouquinho assim ó: assim...
a gente põe esparadrapo e amor, né?
Vovó diz que esparadrapo e amor
curam mais que o mundo inteiro
não seria capaz de curar.
— Verdade, Aninha. Mas prefiro
que não me corte.
LA 07/001
— Alô?!
— Oi, vô!
— Oi, Saulo!
Tá chovendo aí?
— Tá, vô.
Chovendo azul em tudo.
LA 07/001
Sonho-Quem
Quem é que magnetiza de poesia
esse fundo musical
que há em nós?
Quem é que exprime
em nós o inexprimível,
pegando pelas penas a palavra
e fixando o brilho do seu vôo?
Esse percutir temas
que dá flores em alma
e salta em frutos
para a página?
Esse lavar a realidade
pela metáfora
e colhê-la transformada
naquela margem
que se olha sem rosto
porque tornada, não em outra coisa,
mas no sonho de seu avesso-coisa?
Será esse outro em nós,
que aqui chamo Sonho-Quem,
quem sonha e vira o sonhado
de barriga para cima —
e o dá à mão que vai buscá-lo?
LA 11/001
Por favor, alguém transmita
ao pessoal do Nobel
que há várias saracuras
moradoras do Espraiado
que bem que mereciam
ficar com esse prêmio.
Fácil saber por quê:
faz anos e anos que manejam,
lá por entre outono-inverno,
( cada qual ) os seus três potes
e não consta que nenhuma,
sim, senhor: nenhuma delas
tenha quebrado ou trincado
um só sequer de seus potes.
Três potes três potes três potes...
E olhem, sem exagero:
são três potes pra lá,
são três potes pra cá —
num sobe-desce vocal,
em escalada e rapel
( com pote vazio e cheio )
que bem que lhes caberia
um assim... ( como diria?...)
— Um Nobel de manuseio.
LA 12/001
Auto-Homenagem
Hoje, levantei-me pródigo —
prestei-me uma auto-homenagem:
agraciei-me com o título
de
Barrão do Espraiado.( Olhem: é barrão com dois “rr”,
e não barão. Isto em virtude
de ter havido aqui muito barro... )
Por se tratar de um título
nobili... isto é, plebiárquico,
presumo casa-branquense algum
ficará com inveja
e por isso não se oporá.
Assinado:
Laerte Antônio,
Barrão do Espraiado.
LA 12/001
Claro Que Sim
Saudades? Sim: saudades,
que ninguém é de ferro.
A lembrança dos olhos,
dos olhos não: do gesto
de ariscos momentos felizes —
saudades são isso?
Claro que sim: isto e aquilo
que se comprava por quilo
e quando se descascava
não dava mais que um gomo,
chupado pelo gnomo
— familiar —
das moedinhas que tiniam,
rodavam e sumiam.
A delícia de chafarizes
molhando nossos verões
também não são piscos dolentes
com a vontade de reviver
pela tela de lembrá-los?
Claro que sim: degustações
que se querem
repetir
lá no corpo do mental —
sem mãos de segurá-las
nem boca de mordê-las...
O bom de se ter tido
uma namorada Vera,
mentirosa como o tempo
( que faz esquecer o guarda-chuva
bem onde não se devia...) —
isso também não faz
a gente lamber de memória
o derreter de um sorvete
que escorre pelos dedos?
Claro que sim: mais a saudade
que agora se saboreia
com colherinha niquelada
entre tantas gostosas mentiras,
tantos belos enganos —
tão mais belos
quanto mais veramente
mentirosos.
........................................................................
E quais outras, quais mais saudades?
Ah, sim: saudades das boas,
das graúdas, das melhores —
saudades do futuro.
LA 12/001
Saudades daquele Espraiado
molambento e ao deus-dará —
do Espraiado antes de Sckandar-Carlos.
Onde os moleques — após as chuvas —
pescávamos de peneira, e enchíamos
o velho escorredor de alumínio:
bagres, lambaris, cascudos...
E subíamos — molhados —,
limpávamos os bichinhos
que com limão-rosa e sal —
saltavam fritos
dentro do prato de arroz com salada
de almeirão picado fino. Por refrigerante,
água de poço com limão-galego —
daqueles bem miúdos e amarelinhos,
cheirosos como os sonhos de Clarinha
( que era linda e morreu menina de tudo ).
E ali — bem debaixo da jabuticabeira —
a gente banqueteava —
inclusive Clarinha
que deve ter bronqueado com o Pai:
“Por que me trouxe para cá, Babu,
se lá estava tão bom?
Que é que Você tinha de tão urgente
pra me contar,
que não podia me dizer
lá no meu coração? ”
Vocês, que a ouviram,
perdoem a franqueza da guria Clara,
que era bondosa quanto bela
e se despetalava à toa
por qualquer vento ou brisa.
Mas Deus sabe:
mesmo quando xingava,
era de bom coração.
E como nos explicava
nosso vizinho,
branquinho de experiências
e curtido de versículos:
“Deus a amava tanto demais da conta,
que a quis com Ele, Nele...
Agora a gente sabe
que Ele a é.”
...............................................................................................
Belos tempos, sobretudo
porque a gente não sabia.
Sim: saudades de não saber
que a gente nem sabia.
Quanto ao mais,
o Espraiado, hoje, é bem melhor —
já não faz molecagens
levando gente e pinguelas...
Agora só resmunga. Civilizado.
A voz grossa com as chuvas
de fim-começo de ano
lhe dá ares de quem garganteia,
mas sabe que não é nada.
Bonachão, isto, sim,
a deslizar pela calha do tempo...
Do tempo que — sorrindo —
vai sovelando a ferrugem
de todo flutuar.
Clarinha já deve estar
com dois terços daqueles moleques...
( moleques não, alguns então já grandinhos... )
Deus deve ter dito a ela:
“Sossega, minha flor, que não demora
está todo o mundo aqui,
e vou deixar vocês brincarem num Espraiado
mais molambento ainda do que aquele...
E te juro, Menina,
te juro pelo Filho que deixei pregarem:
vocês jamais vão saber de mais nada —
a não ser da ventura
de não saber.”
LA 12/001
Casa-branquense nato, vou cagar
no mato, que é gostoso e lembra a infância —
quando a gente o fazia, e até com petulância:
lá em cima da galhada a cavalgar...
De sorte que o produto vinha do ar,
caindo dentre as pedras na reentrância —
pintava telas com predominância
de amarelo entre folhas a crocar...
Bons tempos? Não diria bons, apenas
outros tempos que a gente digeria
com outros tons de asneira, escamas, penas...
Doces tolices de um viver perneta.
Após cada cagada, a fantasia
de ter como resposta uma punheta.
LA 01/002
Nosso Espraiado, Rosa...
Nosso Espraiado, Rosa, em seus dois lados,
é tão modesto que até daria
pra conversarmos — bem acomodados —
cada um de um lado em sua pedraria.
Seus sussurros são tão apaziguados,
tão calma a sua voz, e tão macia,
que o que dizes, em sons despetalados,
flui roseamente em piscos de alegria...
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A tarde veste longo... a espremer
suas uvas e amoras numa glosa
de lusco-fusco com o anoitecer —
pingando sombras n’alma da aquarela...
Já ( invisíveis ) podemos, minha Rosa,
fazer amor em cima da pinguela.
LA 01/002
Corre, Espraiado...
Corre, Espraiado, corre.
Se tuas águas
não derem para tanto —
daqui de cima
e
u
a
s
e
n
gr
o
s
s
o...................................................................................................
Se mesmo assim não der,
peço àquela Rosinha
( meu Deus, faz tanto tempo!... )
peço à Rosinha nos ajude —
aliás, meu velho, entre mil coisas,
Rosinha sabe ser sinfônica —
isto é, assoviar
as suas pérolas...
Sim: caso seja preciso,
Rosa e eu engrossaremos tuas águas.
Tuas águas que passam passam passam...
a nos dizer que a vida dói
quando se sabe um sopro-conto
a passar pelo tempo —
pela ribalta e poscênio da grande roda...
Corre, Espraiado, corre —
senão a vida pega a dianteira...
e o vento,
o vento me despetala Rosa
e não me resta o que viver.
LA 01/002
Enquanto houver tesão, minha Rosa,
a vida vale a pena e o vôo.
Depois, minha comparsa, é a gente ir
metabolizar a terra
da fazenda de nossos pais.
Engraçado,
só depois que nossos ossos estão maduros
é que temos a certeza ( quase tátil )
de que os pais de todo o mundo
sempre tiveram uma profissão implícita,
e obrigatória:
a de sermos fazendeiros.
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Vá lá! Ou melhor: até que iria lá... se ao menos
a gente demonstrasse vocação.
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Pois é.
Enquanto a argila está molhada,
o negócio é modelá-la —
sová-la bem ( e logo! ), minha Rosa.
Porque o depois será sempre uma canção
que tentamos lembrar,
isto é, daríamos tudo pra lembrar...
LA 01/002
Tudo Isso, Aquilo...
Que bom que é, minha Rosa,
coçar os mimos e olhar para o Espraiado —
sabê-lo pobre e quase nada como nós:
tão apagado e humilde,
que só mesmo esticando o ouvido
pra gente ouvi-lo gorjear...
No entanto, corre fiel e sempre.
Com certeza ouviu os sonhos
que molhavam os pés e as patas dos cavalos
dos primeiros que por aqui passaram.
Sim: corre fiel e sempre.
Entre setembro-outubro suas águas
viram jabuticabas graúdas
nos pomares em derredor.
Que bom que é, minha Rosa,
ir coçando as saudades
e ouvir o vento em nosso bosque,
em nosso bosque enraizado no silêncio.
Que bom que é, minha Amiga,
ser vagabundo por opção
( e sugestão Presidencial... ),
após ter lutado e sonhado entre os homens...
Ser vagabundo, andarilho
lá nos esconsos da alma,
da alma livre-leve-solta como
um pensamento vadio
pelo infinito de Deuspai.
Que bom que é, minha Rosa,
viver-doer ao pé desse Espraiado
enquanto a gente cumpre a vida —
boboca, calmamente boquiabertos
de ver como é enfado
tudo isso, aquilo e o calcanhar de Aquiles.
LA 01/002
Já li dez vezes
o
Antimanual de Bons Modos —aquele que me diz
que se eu mudar para agradar aos outros,
certamente me tornarei
alguém muito desagradável para mim.
Me dou bem comigo assim.
Com o meu Espraiado,
com meu pequeno bosque
e meu ler-escrever.
Até com meu cachorro —
sim, nos damos muito bem.
Bem junto ao telefone
deixei escrito ( em vermelho ):
C C C =
Classe
Calma
Coerência
Sim:
Classe-Calma-Coerência
E embaixo:
Falar menos de 5 minutos —
e jamais acasalar demônios...
E ainda:
Com o tirano use:
passividade-alienação
e as quatro frases
( que aprendi com meus alunos ):
Não lembro.
Não sei.
Me esqueci.
Claro-que-sim-um-outro-dia...
E demos ( você e eu ) graças a Deus
porque sempre existiram
os que se têm por muito espertos.
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Já ouvi todas as canções
( quase todas, perdão! ),
e aprendi que só falam de uma coisa:
“Faz de conta que sou e que tu és...”
O mais?
O mais é viver.
O resto?
É resto.
E havemos de aprender muito mais nada.
LA 01/002
O único sem-terra agora
( de todos os meus ), Babu,
sou eu.
Deste a cada um a sua gleba.
Tornaste-os mineradores
de seus sonhos,
cultivadores
de seus próprios casulos.
Quanto a mim, quero que saibas:
não tenho pressa .
Enquanto me permitires, Babu,
prefiro as glebas psíquicas,
isto é: prefiro
plantar na imaginação,
ou mesmo plantar favas...
Isto sim: plantar favas
nas minhas vagabundagens.
Sim, Babu, que eu me torne um vagabundo
tão consciente,
que só a minha vagabundagem
tenha-me ainda algum sentido...
Quanto àquele chocolate
que a vida nos oferece
logo à direita
da
Estação dos Papagaios —enquanto puderes adiar-mo,
Te agradeço, Babu.
Todos, que o provam,
emagrecem de ficar brancos...
Prefiro ir ficando por aqui,
à beira desse estúpido Espraiado...
a beliscar saudades
do tempo em que não sabia
que era feliz.
E como era!
Ah, Babu, minhas mãos
e todos os meus dedos
foram mais que felizes!
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A gente contava estrelas...
a gente tirava a roupa...
a gen...
Perdão, Babu.
Por vezes a gente se empolga.
LA 01/002
A infância fazia guerra
de mamona,
ou de barro ( de fazer pelotas ) —
lançado com a mão, com o estilingue...
Barro de modelagem
que a
Escola Normalvinha buscar aqui no Espraiado.
A infância fazia amor com a esperança,
com o seu não-saber feliz.
Montava animais
com cabrestos improvisados de cipós...
Moleques lutavam, nadavam, jogavam, pescavam....
Afagavam éguas em barrancos
de três degraus...
Desfrutavam os bonecas.
Nessa especialidade, o Furunha
passava a perna em todos.
Era inventivo: fez a máquina
de furunhar...
Ficava em pé no meio do corgo,
junto à pinguela bem flexível
( que ele próprio construíra... )
O bichanão
sentava no meio dela...
Dois ajudantes (em pé), um de cada lado
do bichano,
impulsionavam, ao comando do Furunha
( plantado, em pé, no meio do corgo ), —
o sobe-desce-sobe-desce-sobe-desce-sobe...
em cadenciados furunhamentos...
Fazia-se um silêncio santo:
a respiração suspensa,
babava-se ante tanta tecnologia...
e presteza-gozo.
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Findo o furunhamento hi-tec,
os moleques, na ponta dos pés,
sobre a pinguela e nos barrancos —
depenavam seus sabiás
( lentamente e em silêncio )
até que um deles
pinchasse duas ou três pequeninas pérolas
no seio manso das águas...
Aí rompiam o silêncio
em urras, bravos ao campeão:
E o carregavam nas costas
até a primeira panela rasa
com o fundo de areia rosa...
onde todos, sentados, em círculo,
ouviam do campeão a ordem
para depenarem-se com calma —
até às pérolas, ou o orgasmo oco
e seco
de quem ainda não fabrica mel.
( Havia quase sempre
dois meninos engomados,
literalmente engomados,
sapatos e meias claros,
que acompanhavam sérios
— interessadíssimos —
com os braços cruzados
e um tanto ao de longe...
como se anotassem tudo,
adorassem o que viam:
seus olhos lampejavam,
suas línguas molhavam-lhes toda a boca...
mostrando sempre no olhar
muita, mas muita vontade
de se sujarem —
cabeça, tronco e membros...
E sabe Deus que outras lombrigas.
LA 011/002