CAMINHO-CAMINHANTE

 

LAERTE ANTONIO

 

 

                     Agora Escreverei...

 

Agora escreverei sobre as águas

o poema que não tem graça nenhuma,

a não ser por ser escrito sobre as águas

num momento que fora bom ser engraçado,

se se pudesse chorar pelo seu nenhum chiste...

Algo assim como um beijo de titânio

sobre a boca da noite...

Ou o espirro de uma estrela

a semear-se nos longes do universo,

pelas portas niqueladas dos fundos...

Algo como fazer amor na ponta de um espinho

e ter um gozo espermatizado de hipopótamo

tingindo o rio de amarelo...

Algo como perguntar a alguém:

Que faço com o amor que me atiraste nas mãos —

se a tua parte dele já não queres?

Que faço, se minha parte nele é agora tão insuportável,

e dela não me posso desfazer, embora sei me fora bom?

Sim: o amor traído fica insuportável —

alguma coisa como brasa ou gelo

a rolar nas mãos do sentimento,

do sentimento estupefato e, agora, muito mais sozinho:

semelhante a um poema que alguém atirou

pela janela do coração lá em baixo...

bem lá em baixo, andares e andares e an...

e que caiu nas mãos de um arlequim

que, apesar de profissional, chorou de molhar os sapatos...

e assoou pelo nariz mil e mil sonhos

da cor da Aurora Boreal e das corolas

que o vento corre a masturbar

              e espadanar seu gozo no chão da noite.

 

 

 

Caminho-caminhante

 

O que tem sido a vida,

senão termos passado

por angústias e angústias

no fervilhar de uma luta

pelo contrário disso?

 

Que tem sido, senão luta

por não sermos tragados

enquanto nessa batalha

empreendemos aventuras

de ser felizes —

modos de distrairmos

a dor?

 

Se vale a pena?

Mesmo que não,

as penas se impõem.

Viver é uma maneira

de nos justificarmos

com a vida —

que nos põe no mundo

e ordena:

“Trabalhai-vos,

que não vos quero “isso’’.

 

“Vesti-vos de degraus

essencializados

de assim em assim...

e saltos em si mesmos...

Degraus interiores

quanto exteriores.

 

“Aprendei que o criar

tem sido vosso.

A vida é o mestre,

o viver, — o discípulo.

Assumi vossas lágrimas

e vosso riso —

darão uma boa argamassa

para os degraus

do vosso transcender-vos.

 

“Caminhai, e tende pressa

em sair do que sois

para mais ser:

construí pontes de misericórdia,

e chegareis.

Tende pressa por vós mesmos.

Quanto a mim, sou perfeita em vós —

e pura graça.

Deixai-me ser-vos’’.

 

 

            Do Avesso

 

Não se assuste,

que a hora está do avesso.

Já-já a viram,

ou seu pano se desfia.

Não durar é a beleza

contra tudo o que apequena.

 

A hora só está do avesso.

Nosso caminho, agora,

tem de ser interior:

cavaremos por detrás da luz —

enquanto a hora passa

pelo buraco da agulha

que cose as nossas esperanças.

 

 

        Olhos Feridos

 

Pobre poesia.

Tua riqueza

é não calares —

não aceitares

a humana pobreza.

 

Pobre poesia.

Tua força interior,

tua fraqueza sublime,

tua beleza de sonho

recostado na pedra —

serão sempre uma maneira

de — com os olhos feridos —

dizeres não à dor

e a tudo quanto impede

o sonho-mais da vida.

 

 

       Oração

 

Senhor,

desamarrai-me

de mim, do mundo,

do tempo...

Do bem,

do mal.

Do amor,

do ódio.

Da consciência ( por mim tecida ),

do auto-engano.

Dos genes da carne

que aprisionam o sopro.

Das trevas,

da luz ( que é seu contrário ).

Do saber,

da ignorância.

Da dialética

que é esse masturbar-se

com genitálias em fractais...

Do apego,

do desapego.

Da carne,

da alma.

 

Ó Pai, tornai-me

a via-andante

da vossa luz

verbalizada em mim

pelo Filho.

O dom do vosso pão,

o sonho do vosso vinho

me sejam o estar voltando

( por-vós-em-vós-convosco)

para Casa.

 

 

         Pão Do Deserto

 

Não te impacientes:

o que não sabes

te virá do deserto —

ele fará lembrar tua alma.

Lá no deserto ( em ti )

sopram os ventos

de todos os futuros.

E o Espírito modela ( em ti )

a verdade que — uma só —

assume todos os tamanhos.

As pedras te assarão do pão

que hás de metabolizar

no corpo, na alma, no espírito.

 

Tuas sandálias não se gastarão

pelo deserto de ti mesmo.

E as areias que pisares

se tornarão no maná da tua fome —

o qual não guardarás

para o dia seguinte:

viverás da verdade

assimilada a cada dia —

e esta será sempre

o quanto podes suportar.

 

Não tenhas medo do deserto —

ele te traz a vida

pelas frestas do teu sonho.

As areias te ensinarão

que mesmo as pedras se renovam

enquanto gravam entre os ventos

as pegadas da vida.

 

O deserto te abrirá

a arca do teu ser —

da qual irás tirando

coisas novas e velhas.

 

No deserto ouvirás a voz

que ensina a todas as células

o caminho de volta

para a Vida.

 

O deserto te fará

a tradução do mistério

em murmúrios de luz,

em sussurros de sombras.

 

Do deserto te virá

tu mesmo: enfim transcendido

em nova criatura.

 

 

Solitudo-inis

 

A solidão machuca:

sociopatologia —

falta de interação

e solidariedade.

 

A solitude é amiga:

oficina de recriar,

clima-germe de fazer-crescer —

jeito de trabalhar(-se).

 

A solidão parece

falta de amor recíproca.

A solitude —

um modo introvidente

de poder fazer-amando.

 

 

               Um De Muitos

 

Lá não sei onde, bifurquei-me um dia

e segui duplo por caminhos outros

de hoje me estar aqui sem já saber

qual de mim dois é quem, ou se sou ambos —

 

que já não se recordam de pulsar

os dois ou um num mesmo coração —

sim, porque o amor transforma o sermos muitos

num que sabe que a vida é dom comum.

 

De lá pra cá deixei-me ler a luz

que abraça com amor a madrugada

até que ambos se tornem claro dia —

 

que em si realiza o sonho de fundir

num só encanto o encanto de ser muitos

              traduzidos na glória de ser Um.

 

 

 

Velhas Mãos

 

Olhei para as minhas mãos:

estavam velhas e sozinhas.

Tinham passado por elas

multidões de dias e noites.

Finas e frágeis,

a pele flácida e pintada —

tinham lidado com a vida

e dado feição aos seus próprios dias.

Conheciam o bem e o mal

e haviam aprendido

a discernir entre os dois.

Agradeci no coração

pela bênção desse discernimento.

 

Narravam tudo de mim.

Ninguém mais do que elas

conhecia meus pensamentos,

sabia meus sentimentos

e captava as entranhas

do meu ser físico e moral:

eram meu ser inteiro —

antenas e canais,

superfícies e funduras,

alegrias e tristezas,

planuras e mistérios —

sabiam de meu bem,

sabiam de meu mal.

 

Olhei-as: velhas e sozinhas.

Haviam crido.

Haviam desacreditado,

sem descrer.

Haviam se enganado.

E entre tantos feitos

e negligências e omissões —

construído-desconstuído-reconstuído.

Haviam segurado golpes,

desfechado outros.

Haviam assinado,

endossado, pactuado —

segurado esperanças.

E agasalhado sonhos

e acariciado utopias.

Haviam segurado o mundo.

Haviam retido nada.

Pensado que podiam tudo,

depois, visto, aliviadas,

que não detinham nada —

a não ser terem efetivamente nada.

E ficaram sabendo por si mesmas

que o seu fazer

é toda a sua alegria

e toda a sua tristeza.

E que não é porque as ações

começam em outros “departamentos”

que elas não sejam tais ações:

entre fazer e quem faz

a distância é nenhuma.

 

Olhei-as: cansadas e vazias.

Estavam bambas, mas não medrosas.

Feias, mas não envergonhadas:

sempre que se soubessem arrogantes —

curvavam-se em oração.

Mãos que riam e choravam,

fizeram e se alegraram,

fizeram e se arrependeram —

e arrependidas buscavam transcender-se,

batendo às portas de Deus.

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Mãos a quem foi dado aprender

terem uma só coisa de especial:

serem iguais a todas as mãos do mundo.

Mãos a quem foi dado aprender

que a maior plenitude

que pudessem aparar para si mesmas

era estarem vazias —

jamais tentarem reter em si

o que existe para fluir.

 

Olhei-as: velhas e vazias.

E agradeci a Deus

pela leveza,

não de nada terem,

      mas de já não segurar.

 

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